Quem somos os latinos americanos?

Uma análise cultural dos mais de 500 anos da colonização
“O espelho enterrado”
01/03/2002

A América foi descoberta pelos espanhóis, ainda que Cristóvão Colombo fosse genovês. Já o Brasil foi descoberto por portugueses. Recebeu franceses, bem como holandeses, e expulsou ambos. Entre lá e cá, muita gente aportou no assim chamado Novo Mundo. Desde europeus de quase todos os povos do Velho Continente, até africanos e asiáticos, que se misturaram aos índios que encontraram aqui.

Pouco mais de 500 anos após a sua descoberta, qual é o verdadeiro povo latino americano? Pode-se dizer ainda que os espanhóis e os portugueses deixaram cá alguma coisa de sua cultura? Pode-se afirmar que eles também levaram para suas casas um pouco da cultura destas terras?

Analisar este caldeirão de culturas da América Latina, em especial a de língua espanhola, é a missão de Carlos Fuentes, escritor mexicano, em O espelho enterrado  — reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Lançado no Brasil apenas no fim do ano passado, o livro é uma adaptação (ampliada) do roteiro de uma série de televisão escrita e apresentada por Fuentes por ocasião dos 500 anos do descobrimento da América.

Muito foi dito sobre com o que a Espanha contribuiu para o desenvolvimento da América, além das doenças que praticamente dizimaram os indígenas, da escravidão e a vinda dos negros da África, dos governos autoritários e caudilhescos e de uma organização social em que poucos têm muito, demais até, e muitos não têm praticamente nada. Fuentes reconhece todas estas chagas importadas da Espanha, mas procura também analisar outros aspectos que fogem a uma primeira análise, em especial se se usa um viés marxista de análise histórica.

Fuentes começa a contar a história da América Latina a partir de sua gênese, ainda na Pré-história da humanidade, na Península Ibérica. E o escritor mexicano faz esta longa regressão no tempo por um único motivo: se a América que ele comenta é latina, sua gênese está nos povos que vieram do mundo latino antigo, ou melhor, do mundo romano. Fuentes não ignora as contribuições das culturas indígenas, africanas e de outros imigrantes no que conhecemos hoje como América Latina, mas reconhece como base de tudo a cultura latina que saiu do porto de Sevilha, na Espanha, para conquistar o Novo Mundo.

Afinal de contas, a América de hoje fala ou português ou espanhol, ou seja, línguas latinas. A base de nossas leis é o Direito Romano. E, diriam as más línguas, nossa incapacidade de ser governados também. Neste ponto, Fuentes bate de frente com aqueles que dizem ser o povo latino-americano acomodado. Segundo o escritor mexicano, basta lembrar que a primeira revolta de negros deu-se no Haiti. As primeiras universidades da América nasceram em San Domingo, Lima e Cidade do México. Em 1810, apesar de todas as dificuldades de comunicação pertinentes à época, praticamente todos os países de colonização espanhola se declararam independentes da Coroa de Madri.

É assim que Fuentes vai desmontando os mitos da colonização espanhola, combatendo ponto a ponto e sempre remetendo a situação americana àquela da Espanha. Os reis fracos, a invasão francesa, a decadência do império, a submissão à Inglaterra, os movimentos culturais, todos são analisados dos dois lados do Atlântico. Para Fuentes, era e é impossível ainda dissociar as duas culturas.

O livro, se é rico em detalhar a América até o final do século 19, deixa a desejar quando entra no século 20. A análise das ditaduras, dos sucessivos golpes de estado em praticamente todos os países, a perda do “bonde da história” por parte de nações que tinham um potencial enorme de se tornarem potências, Brasil incluído, não merece detalhada atenção por parte de Fuentes. Sem querer ser simplista, ele acaba resumindo o século 20 a uma conjuntura de pressões internacionais e elites locais desejosas de manter os seus privilégios, e só. Não que isto tire os méritos do livro, apenas o deixa com uma lacuna.

Por fim, Fuentes é um otimista. Segundo ele, apesar das crises, da precária democracia, das fracas instituições políticas, é necessário alcançar o desenvolvimento econômico juntamente com a democracia e a justiça social. E ele acha que os latino americanos temos a capacidade de conseguir isso. Como ele não diz, mas ele acha que temos. A ver.

O espelho enterrado — reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo
Carlos Fuentes
Rocco
400 págs.
Carlos Fuentes
Nasceu no México, em 1928. Filho de diplomata, ele fez seus estudos primários e secundários no México, Montevidéu, Buenos Aires, Santiago do Chile e Rio de Janeiro, e os universitários no México e em Genebra. Ele já publicou os livros de reportagens Os dias mascarados (1954), Cantar de Cegos (1964) e Água Queimada (1981), as novelas A região mais transparente (1958), As boas consciências (1959), A morte de Artemio Cruz (1962), Zona sagrada (1967), Troca de pele (1967), A cabeça da Hidra (1978), Uma família de longe (1980), Gringo velho (1985) e Cristóvão Nonato (1987), as novelas curtas Aura (1962) e Aniversário (1969), volumes de ensaios e também obras teatrais. Em 1987, ganhou o Prêmio Cervantes, o mais importante prêmio literário da língua espanhola.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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