Quem nunca voltou a Perdição?

"Liturgia do fim", de Marilia Arnaud, é a história de uma grande mágoa
Marilia Arnaud, autora de “Liturgia do fim”
10/11/2016

A capa do romance tem uma janela de madeirão, numa casa de pau a pique. Tem também uma pomba do Espírito Santo pendurada — não é mero enfeite, Deus perambula pela história, mesmo que do pior jeito. A questão é que normalmente janelas são olhares para fora. Mas nessa imagem quem olha é quem está fora, vendo a janela. E dentro dela está escuro, onde o capista pôs o nome da autora, do livro, da editora. A capa faz muito sentido assim que se acaba a leitura. É mesmo um olhar para dentro, onde faz escuro. Não é reconfortante que uma coisa feita com o objetivo de vender traga também sinceridade sobre o conteúdo? Na literatura isso ainda é possível.

Liturgia do fim é a história de uma grande mágoa, fincada bem fundo em Inácio, o narrador-personagem, no lugar incerto onde carne e alma doem igual e muito, porque é bem onde deita-se a memória.

O ponto de vista é o de Inácio lembrando de tudo, olhando para trás. E começa a narrativa do dia em que deixa seu lugarejo natal, chamado Perdição. A cidade maior para onde vai pode ser uma cidade grande qualquer, que tem universidade e confortos. E onde ele toca a vida adiante, como se estivesse desatrelado do antes disso — a história revela que nunca esteve. De cara, a construção dessa primeira parte transmite, em metáforas, com descrições de desconforto da viagem, que não era simplesmente uma escolha ir embora.

Passageiro de um dia interminável, viajei por quase dez horas ao lado de uma mulher de cheiro acre que a cada solavanco pendia sua magreza inteira para o meu lado. Nas subidas, o motor roncava, e a fumaça do escapamento invadia o ônibus, sem que eu pudesse fechar a janela com a mulher a tossir e se assoar e escarrar violentamente num lenço de tecido que guardava entre os seios.

Quem lê esse romance tem de controlar a ansiedade. Muitas cenas se explicam apenas algumas páginas depois. Por exemplo quando há uma ligação agoniada da mãe de Inácio, chorando muito. O motivo do telefonema só é explicado, ou sugerido, bem perto do fim do livro. Mesmo assim, não compromete o acompanhamento da narrativa. Na verdade, instiga. E o que não se dá pelos fatos, dá-se pela percepção, pela imagem construída.

Mãe? Atropeladas pelo choro, as palavras de desespero não se ordenavam em sua boca, até que um sentido, a princípio inimaginável, foi ganhando forma e, áspero, contundente, arremeteu-se contra mim e me fez desabar. Maldito pai! Veneno de aguilhões por todo o corpo, talho fundo na alma, morri naquele instante, naquela manhã, e segui morrendo, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, até agora, quando morro ainda, o ar rarefeito, o peito esbagaçado por patas disparadas de pampas e alazões.

Enfim, não é dito nesse instante o que a mãe contou, mas a dureza da notícia é clara.

Da mesma forma, há saltos na história lembrada pelo narrador-personagem. De repente ele está casado, de repente tem uma filha, de repente se separa, já está com cinquenta anos e voltando a Perdição. A autora preferiu gastar linhas em aprofundamento das vivências e sensações de seu Inácio a suavizar a passagem do tempo.

Há de se dizer: o personagem principal é um escritor. Dito assim, parece clichê da literatura brasileira. Mas ao longo do livro essa questão é tratada de uma forma interessante e não é a mais importante, mas um detalhe explorado com pitadas de filosofia.

Foi Ieda quem me disse que amo mais as palavras do que as pessoas. É provável que esteja certa. Todavia, o fato de amá-las não me deu o entendimento do que representam em minha vida. Qual o sentido de viver pelejando com elas? Qual o propósito de passar anos e anos, toda uma existência, escrevendo livros, quando se poderia tão somente viver, quando a vida transcende toda a literatura, sendo a mais pura, a maior, a mais íntegra ficção? O que me deram, afinal, as palavras? Nem paz, nem verdade, nem libertação. Conhecimento, talvez. E para que mesmo serve o conhecimento?

Talvez seja clichê que ele se considere um mau escritor, apesar dos elogios dos amigos e colegas de universidade. Mas longe de comprometer a qualidade do romance.

A grande questão é a relação dele com o pai, Joaquim. Homem bruto. Homem que poderia estar em São Bernardo (Graciliano), em O mulo (Darcy Ribeiro), que lembra a dureza da figura do pai em Na escuridão, amanhã (Rogério Pereira). Violento nas reações contra os filhos, quando se sente contrariado. Religioso, católico, seguidor da Bíblia. Contradições que andam de carro de boi há séculos e ao mesmo tempo pegam metrô escutando música no aparelho celular. Joaquim é um velho conhecido. Mas para Inácio, um enigma mal-resolvido. É por isso que larga a mulher com quem se casou, Ieda, a filha Isabel, os confortos, os livros, o carro, e caminha de volta a Perdição.

É curioso como algumas coisas não escritas possam também ser lidas. Por exemplo, que Inácio se refira apenas brevemente à filha, Isabel. Fala bastante da mulher, demonstra como vê a falta de entendimento dela a respeito dele: “Não inventei um Inácio para Ieda, até porque carecia de ânimo e habilidade para tanto. Apaixonou-se e casou-se com um inventado por ela mesma, e ainda o tornou pai de sua filha”. Pois é, de Isabel, quase nada. Pode-se pensar que a autora esqueceu desse detalhe. Ou que, justo por não escrever muito sobre ela, faz vazar que ele próprio não tenha conseguido estabelecer uma relação como pai mais carinhosa e próxima, diferentemente da que teve com seu pai. Variadas leituras poderão desencavar mais detalhes assim, o que é um mérito do livro.

Quem lê esse romance tem de controlar a ansiedade. Muitas cenas se explicam apenas algumas páginas depois.

Detalhes
Quando se fala em recursos literários, às vezes soa mal, como se estivéssemos nos referindo a martelos, pregos, serrotes. Com todo o respeito a martelos, pregos e serrotes, tudo depende do que se faz com as ferramentas, não é mesmo? Um armário torto ou uma cômoda bonita, de gavetas perfeitas, nivelada, com fechamento impecável das portas. O recurso em questão aqui é a descrição, que pode tornar chatíssimo um texto ou serve para dar cores reais, trazendo quem lê para bem dentro da história.

Pois a principal atividade de Joaquim era a criação de abelhas. Marília Arnaud usa o capítulo seis (são dez ao todo) para mostrar como era fundamental na vida daquela família a entrega do pai àquele cultivo. Faz isso explicando como o velho montou as caixas e pôs lá os bichos, seguindo instruções de um manual.

Com a raiva e a vergonha inchando na garganta, foi à distância, e meio furtivamente, que vi as colmeias se armando, fundo, ninho, melgueira, em tons claros, verde-água, azul-lavado, rosa-pele, amarelo-pálido, e por aí vai, como forma de sinalização para as abelhas em seu retorno a casa.

A autora usa o recurso em outros pontos, como no mais decisivo capítulo oito, com Inácio lembrando seu “itinerário de solidão” na infância, visitando ninhos de pássaros. A criação de imagens a partir dos olhos do narrador-personagem tende a nos aproximar dele:

Conferia os ovos diariamente, os cor de areia com manchas marrom-avermelhadas dos bem-te-vis, os brancos com pintas castanhas dos canários-da-terra, os verde-azulados dos sabiás, os rosados dos inhambus, que curiosamente eram chocados pelos machos, e sob pena de gorá-los, eu não podia tocá-los com uma ponta de dedo até os passarinhos apontarem na casca rachada, uma massa disforme, a pele meio enrugada, quase transparente, um tanto de réptil na natureza de ave, mais para aborto do que nascimento na nudez desemplumada, que me arranhava o olhar e me dava ânsias de vômito.

Eu
Morre a mãe, morre o pai. A dor está mais na vida. Está na incompreensão com a entrega da mãe, postura servil apesar de ser professora, aos caprichos do pai. Está na dureza dele, que se permitiu pouquíssimos momentos de ternura com os filhos. Mas a dor está sobretudo num acontecimento não descrito diretamente em nenhum momento do livro, e que mesmo de forma sugerida, só é entregue ao leitor nas páginas finais. Em respeito a essa estratégia, não será dito aqui o que é, a mágoa que brota da repressão a um grande amor.

Como tudo está posto pelo ponto de vista de Inácio, há que se considerar o aspecto tão humano de certo exagero por parte dele. Em vez de ter criado um furacão interno, outra pessoa poderia bem ter compreendido as limitações de entendimento da vida por parte do pai e tocado de verdade a vida adiante, em vez de retornar a Perdição. No entanto as ações desse personagem são coerentes com o desenho que se monta ao longo das páginas. É um sujeito melancólico. Tornou-se um grande leitor, gosto despertado lá na vida de sítio, a partir de um exemplar de Eu, de Augusto dos Anjos, presente que ganhou da mãe aos quinze anos. Se olhássemos para dentro da janela, estaria lá na velha cabeceira do moleque um abajur e esse livro.

Liturgia do fim
Marilia Arnaud
Tordesilhas
149 págs.
Marilia Arnaud
Nasceu em Campina Grande (PB). Este é seu segundo romance. O primeiro, de 2012, é Suíte de silêncios (Rocco). E também publicou quatro livros de contos, um deles O livro dos afetos (7 letras), além de ter textos em coletâneas do gênero.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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