Caríssima Mary, andamos conversando, mas somente agora, enfim, te escrevo. Pensei muito em você outro dia. Estava eu enviando um arquivo pela internet, coisas de trabalho… Internet… É um tipo de correio, bem grande e bem rápido. Foi após gravar imagens reais com olhos artificiais, conhecidos como câmeras, guardar essas imagens em memórias fora da cabeça, chamadas de discos rígidos, transformar essas imagens em um filminho, ou vídeo, quando a gente pode rever o que se passou, e então estava enviando o resultado desse processo todo, como se fosse num envelope, como se fosse por um carteiro invisível, quando este me lançou uma pergunta escrita na tela do computador (máquina que substitui o papel, na qual muita gente, bilhões de pessoas, escreve ao mesmo tempo — e cabe!): enfim, a pergunta, se eu não era um robô (coisa que tem forma humana ou faz coisas simulando humanos). Parece ficção futurista, eu sei, mas foi você que começou…
A gente, numa hora dessa, Mary, perguntado assim do que parece óbvio, se sente um aposentado tendo que ir a um lugar determinado pelo Governo, para provar que está vivo. A Coroa inglesa também fazia isso com vocês aí?
Para responder se não era mesmo um robô (sem ofensas, me dizia a mensagem), precisava apertar, com a seta, pelo mouse, como se fosse um dedo, um botão azul em que estava escrito: sou 100% humano.
Não sei bem por que, mas hesitei.
Quer dizer, eu sei. Foi por causa de você, Mary. E dos personagens que criou: Doutor Victor Frankenstein e a Criatura a que deu vida.
Definição de humano pela biologia, definição de humano pela sociologia, definição de humano pela filosofia, definição de humano segundo os cachorros dos vizinhos, definição de humano segundo a Polícia Militar, definição de humano de acordo com o Aurélio Buarque de Holanda, definição de humano para o Chico Buarque de Holanda, definição de humano na espera de um Pronto Socorro, na sala VIP de uma concessionária BMW, definição de humano segundo uma humana, definição de humano em Alepo, em Nova York, numa prisão do Piauí e numa prisão da Noruega, definição de humano no frio antártico, atravessando o Saara num camelo, definição de humano às seis da manhã na estação da Luz, em São Paulo, e às onze da noite em Bangu, no Rio de Janeiro. E, agora, estatísticos para escalonar de 0 a 100 por cento cada modelo.
Mary, quis tanto perguntar a você qual a definição de humano, aqui desse lugar tão distante de ti, o Brasil do ano 200 D.F. (Depois de Frankenstein). Mas imagino que me diria: foi justamente o que já contei e você leu.
Evolução antes da Evolução
Frankenstein — Ou O Prometeu moderno foi publicado no primeiro semestre de 1818. Há registros sobre ter saído logo no primeiro dia do ano. Na edição que li, com texto original em inglês ao lado da tradução feita por Doris Goettems, da editora Landmark, há outra informação, de que a primeira edição é de 11 de março. É um detalhe, em nosso caso, curioso mas não fundamental saber a data de verdade. De qualquer forma Mary Shelley não assinou a obra logo de cara, saiu anônima. Só mais tarde ela assumiu a maternidade do texto. E, na edição de 1831, até conta, em prefácio, a história de como criou Frankenstein.
Mary era casada com o poeta Percy Shelley. Em 1816, o casal viajou à Suíça. Mary e Percy foram por um tempo vizinhos de outro poeta, Lorde Byron. Um dia, eles conversando longamente sobre tudo, surgiu a proposta para que cada um escrevesse um conto de horror. “Dediquei-me a pensar em uma história — uma que rivalizasse com as que nos incitara a realizar essa tarefa. Uma que falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um eletrizante horror — das que fazem o leitor olhar em volta amedrontado, que gelam o sangue e aceleram o coração.”
Mary conta nesse texto de apresentação que, em outra conversa, ouviu os homens falarem dos experimentos do Dr. Darwin, suas hipóteses de como surgia a vida e de experiências intrigantes com massas guardadas de gente morta que teriam se mexido de repente… Esse Darwin seria o avô do Charles, o famoso rapazinho profundamente cristão que bagunçou a si e ao mundo a partir de 1859 (ou seja, bem depois desse momento Frankenstein da história), com sua Teoria da Evolução das Espécies, achando que estava matando Deus antes de Nietzsche. Erasmus Darwin era uma espécie de avô malucão de Charles, cientista respeitado e poeta erótico… no século 18.
“A ideia aprisionara minha mente”, escreveu Mary sobre o que viria a dar forma num conto e, incentivada pelo marido, alongou para o romance que é tido como mãe do que chamamos hoje ficção científica na Literatura.
Sobre o que fica
Mary, não fique chateada, mas acho que seu principal desejo, causar horror, não durou 200 anos. Talvez tenha causado esse impacto em sua época, mas não nesses meus tempos. A coisa aqui tá feia, diria o velho Chico Buarque. Mas fique feliz com o que posso te dizer: sua história é ainda maior.
Veja, ela é uma grande e fortíssima metáfora. O cinema, a televisão, invenções que você não conheceu, tentaram impedir, achatando e simplificando os significados possíveis de seu romance. Mas o livro é forte, resistiu. Diversas edições habitam as livrarias brasileiras, com tradutores diferentes. Infelizmente, as versões simplificadas é que dominam a cultura popular, em vez dos livros. Não é nada pessoal, praticamente tudo é assim nesses meus dias.
Comecei a ler achando que, impregnado por essas distorções, logo apareceria um cara verde, rosto quadrado, tamanho de jogador de basquete (ah, querida, sei que vai superar os mistérios das minhas referências), feito de partes de outros humanos mortos, feito vivo pelas mãos de um cientista muito obscuro, usando raios de uma tempestade — e eis que o monstro se ergueria de uma espartana maca, sob a gargalhada nervosa do criador.
Mas as primeiras partes do romance não têm nada disso. Nem depois. A Criatura estava no chão de uma casa afastada, escura, num ambiente muito longe de se parecer com uma doce maternidade. E seu aspecto, como você sugere, insuportável aos padrões e limites estéticos da sociedade.
Falando do início do romance: estranhei a troca de cartas entre irmãos, a partir do sujeito chamado Walton e sua irmã. Ele, numa empreitada para explorar o Polo Norte. Dura umas 13 páginas iniciais essa conversa de sonho, contratação de tripulantes, até o encontro que muda tudo. Sua escolha, Mary, foi por fazer desse Walton o narrador principal, relatando em detalhes o que ouviu do estranho que resgatou à míngua, boiando no mar gelado, um tal Victor Frankenstein… ah! Enfim! A partir da última carta da parte inicial, vem o Capítulo 1, com Walton contando, como se fosse Victor, o relato que ouviu por dias, cercado por gelo e fracasso.
Mas por que sentiu que era necessário pôr a história dentro de outra? Passados 200 anos, Walton (e sua desolada empreitada) praticamente não é lembrado como o cara que contou a história, tendo ouvido do próprio cientista. Ou tinha aí uma intenção? Queria por acaso incorporar a dúvida, fazer a gente desconfiar do narrador? No fim essa dúvida é desfeita, mas é boa enquanto dura.
Que danada, você! Desculpe a intimidade… É que é admirável! Há buracos de verossimilhança, que incomodam por umas linhas e somem pra gente mergulhar logo nas questões que realmente interessam e são pulsantes na sua escrita. Anotei num canto de página: cruel, imperfeita, genial.
Como nasce um monstro
A partir do capítulo 1, supõem-se que Walton anotou com fidelidade tudo o que lhe contou Victor Frankenstein, um suíço de Genebra. E o texto está em primeira pessoa, como se o próprio cientista estivesse escrevendo sua biografia mortal. Walton torna-se uma espécie de ghost writer.
Monta-se o retrato da querida família de Victor, das pessoas que ama e que vai perder. São duzentos anos, não há spoiler possível, certo? Quando segue para Ingolstadt (Alemanha), estudar, cresce nele a vontade de fazer algo realmente relevante para a ciência:
Um dos fenômenos que atraíra especialmente minha atenção era a estrutura do corpo humano, e, na verdade, de qualquer animal dotado de vida. De onde, eu me perguntava muitas vezes, provinha o princípio de vida?
Parava para examinar e analisar em todas as minúcias as causas, por exemplo, da transformação da vida em morte e da morte em vida, até que, dentre as trevas, uma luz repentina irradiou-se sobre mim — uma luz tão brilhante e maravilhosa, embora tão simples que, enquanto me sentia atordoado pela imensidão da perspectiva que ela representava, surpreendia-me que entre tantos homens de gênio que dirigiam suas pesquisas para a mesma ciência, só a mim estivesse reservada a descoberta de um segredo tão assombroso.
Aprenda comigo, se não pelos meus ensinamentos, ao menos por meu exemplo, como é perigoso adquirir conhecimento, e quão mais feliz é o homem que acredita que sua cidade natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que a sua natureza permite.
Em diversas frases, a angústia desse homem e uma certa recusa em parar para pensar verdadeiramente no que fazia é posta na mesa, ao lado dos pedaços de corpos que ia catando para a experiência:
Muitas vezes minha natureza humana afastou-se enojada com minha ocupação.
Desejava adiar tudo que se relacionasse aos meus sentimentos de afeição até que a grande obra, que consumira todos os meus hábitos naturais, fosse completada.
Victor (pelo relato de Walton) tanto refaz o momento daquela máxima criação quanto faz reflexões a respeito, na condição de moribundo, tudo vivido, no navio preso no gelo do Polo Norte. Ele talvez nutrisse uma ingênua e deliciosa ilusão de que ainda poderia salvar a humanidade e sua queda fatal por monstruosidades, se o escutassem bem.
Se o estudo ao qual você se dedica apresenta uma tendência a enfraquecer suas afeições e destruir seu gosto por aqueles prazeres simples, aos quais nada se pode misturar, então esse estudo com certeza é ilegítimo, ou seja, não é adequado à mente humana. Se esta regra fosse sempre observada, se nenhum homem permitisse que um objetivo, qualquer que fosse, interferisse com a tranquilidade de seus afetos familiares, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado deu país, a América teria sido descoberta mais gradativamente, e os impérios do México e do Peru não teriam sido destruídos.
Qual o nome do monstro?
Na tal “noite sombria de novembro”, depois que “um movimento convulsivo agitou seus membros”, nasceu um dos personagens mais famosos da literatura em todos os tempos. “Havia escolhido suas feições para que fossem belas, Belas! Santo Deus! Sua pele amarela mal cobria a atividade dos músculos e artérias abaixo; seu cabelo era escorrido, de um negro lustroso; os dentes, de uma brancura perolada”. O tamanho, dá a entender, gigantesco, de força descomunal. Victor foge, com nojo e medo. Fica doente, delira, quase morre. Carolina Vigna já escreveu aqui mesmo no Rascunho que você, Mary, cresceu entre ideais feministas, porque sua mãe foi ativista no século 18. Esse Victor Frankenstein traz um ser à vida e o abandona porque o acha feio. Mary, veja como a Carolina mostrou o quanto é atual ainda o que você escreveu:
Trecho de ensaio publicado no Rascunho número 192, de maio de 2016: “Shelley sabia que se fosse uma mulher negando a sua criação, o romance não seria crível. Ainda assim, repare: um homem cria uma vida; a nega; como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre sua cria, a considera uma ameaça; é perseguido por isso e morre. Quantos pais negam filhos com algum handicap, como paralisia, com Síndrome de Down, surdez ou qualquer outra condição que exclua esta criança da ‘norma’ (que não, é claro que não são monstros, presta atenção no que é importante aqui, por favor)? Aliás, não precisa nem pensar nesta parcela específica das crianças. Qualquer criança. Segundo o Instituto Data Popular, em pesquisa de 2015, o Brasil tem 67 milhões de mães, sendo 31% solteiras. São 20 milhões de mães solteiras. Eu vou repetir: são 20 milhões de mães solteiras. Acho difícil de acreditar que todas estas mulheres optaram por isso”.
Essa é uma das forças de sua criação, cara escritora, o grande poder da Literatura. Dizem por aqui, 200 anos depois, que se lê pouco. Mas os livros ainda existem, em papel e outros jeitos inimagináveis talvez por você, que parou de viver em 1851.
Mas, Mary, Mary, Mary, você dormiu bem na noite em que deu voz à criatura que perseguia o criador? De repente um pedaço de carne levanta, respondendo à fórmula secreta de vida, do cientista que você escreveu, e cerca de dois anos ou algumas páginas depois, ele aparece… falando. E falando bonito. De cara, Mary, isso me afastou do livro. Mas, danada, danada!, que poder é esse que escorria por seus dedos no papel, os lamentos do ser que Victor chama de monstro, porque feio, são lamentos profundamente humanos, de abandono, de vontade de perdão, de carência.
A voz dessa Criatura, como seria? Como soariam estas frases? “É com muita dificuldade que me lembro dos primórdios da minha existência”; “Já estava escuro quando acordei; também sentia frio e tinha certa sensação instintiva de medo por me encontrar tão sozinho”; “Não conhecia e não podia distinguir nada, mas, sentindo a dor me invadir por todos os lados, sentei-me e chorei.”
Mary, diga-me, você amou a Criatura enquanto a descrevia?
Quando ele vai viver numa cabaninha abandonada e observa a vida de uma família humana, aprendendo com essas pessoas, de longe, até a falar e ler, vem uma esperança de que seja acolhido com compaixão. Ele nota suas queixas da vida.
“Por que seriam infelizes aquelas criaturas gentis? Possuíam uma casa adorável (pois assim parecia aos meus olhos), e todo o luxo; tinham fogo para aquecê-las quando estava frio, e deliciosas provisões quando sentiam fome; vestiam-se com ótimas roupas e, mais ainda, desfrutavam da companhia e da conversa umas das outras.”
A gente é difícil de entender, né, Mary? Quando tenta uma aproximação, é novamente rechaçado e vai atrás, com ira, de seu criador. Por que, Mary? Não há compaixão nos humanos?
Foi duro que você tenha feito o ser renegado matar o irmãozinho do Victor. E depois o amigo e a amada. Foi dura a conversa entre os dois, implorando que fizesse viver outro ser como ele, mas mulher. Uma companheira, um sonho de não ser rejeitado (ou uma ilusão adolescente de paixão eterna, onde duas pessoas se bastam uma à outra). Tampouco teve esse desejo atendido. Uma desgraça após a outra. Infelicidade sem fim.
Sem nome, nem se identificando como humano nem com mais nada vivo ou morto que conhecesse, ele se deparou com a Literatura. Leu Plutarco e Goethe.
“O aumento do saber só me fez ver com mais clareza o pária infeliz que eu era.”; “Eu, como o filho do demônio, suportava um inferno dentro de mim.”; “Não havia um só entre a miríade de homens que existiam no mundo, que se compadecesse ou me ajudasse; e deveria eu ser bondoso para com meus inimigos? Não: a partir de então, declarei guerra sem fim contra a espécie, e, mais do que tudo, contra aquele que me criara e lançara nesse insuportável tormento.”
Passei essa carta a você evitando ao máximo chamar de monstro o ser que Victor criou. Frankenstein, que dá título ao seu livro, é nome do cientista e não da criatura. Essa é uma distorção comum entre nós, hoje em dia, aqui de onde te escrevo. Frankenstein virou sinônimo de monstro, o nome do monstro. Era mesmo o nome do monstro, não é, do verdadeiro monstro?
Sendo assim, Mary, que faço eu quando a coisa aqui me pede para dizer se sou 100% humano? Sou 100% humano como Victor Frankenstein? Se a Criatura que teve o olhar da gente renegado, por feiura e falta de entendimento, estivesse no meu lugar, ela poderia responder sim, 100% humano? E se não for 100% humano, isso é realmente um problema?
Bom, eu precisava terminar o trabalho e apertei o botão azul. Sem convicção.
Um grande abraço pra você, com admiração, André.