Quebra-cabeça

“Avalovara”, de Osman Lins, pertence a um filão de obras que, apesar de clássicas, são lidas no máximo superficialmente
Osman Lins, como Samuel Johnson, pratica uma literatura feita com esforço para ser lida com prazer.
01/07/2005

Os teóricos da literatura classificam como clássicas as obras cuja permanência e evidência são perenes, de tal modo que os leitores não conseguem passar por elas sem tentar fazer uma menção, um adendo, um comentário simples que seja, do momento em que terminaram de conhecer o livro. Em outras palavras, essas obras, os clássicos, conseguem essa relevância graças à estima que obtiveram de outros leitores, que, por sua vez, adquiriram-na de outros, em tempos anteriores, seguiram-lhes o mesmo caminho. A trajetória de um clássico é, num certo sentido, traçada ao longo dos anos, sendo que essa perspectiva pode se perder no horizonte. São os leitores, a partir das observações, análises e estudos, que compõem o ambiente para esse tipo de obra. É uma ordem natural. Determinados livros, no entanto, ainda que sejam clássicos, não recebem essa honraria. O motivo? Ora, não são lidos. Ou, o que é pior, são lidos superficialmente, sem que se observem as filigranas, os detalhes fundamentais, mas que não estão sublinhados, e sim sugeridos. Nesse caso, a obra pode ficar, infelizmente, restrita a um pequeno grupo de privilegiados que conhecem um pouco mais a fundo a literatura. De acordo com essa linha de raciocínio, um dos livros que, com mais propriedade, pertencem a esse filão (clássico, mas desconhecido) é Avalovara, do romancista recifense Osman Lins (1924-1978), agora editado pela Companhia das Letras.

Ok, mas a pergunta não quer calar: por que Avalovara é um clássico? Recorro a outros dois autores para explicar melhor. Em Por que ler os clássicos?, Italo Calvino diz que um clássico é um livro cujo conteúdo não se esgota logo após a primeira leitura. Assim, ele nunca acabou de dizer o que tem para dizer. Roland Barthes, em O prazer do texto, é mais conceitual e menos direto, mas sua avaliação também é coerente: para ele, há uma diferença notória entre o texto de fruição e o texto de prazer; daí que, para o segundo, a leitura seja mais ampla, rica em significados, potencializando as interpretações. Osman Lins constrói em Avalovara, livro publicado pela primeira vez em 1973, um belo modelo de texto de prazer e clássico. A um só tempo, faz uso da narrativa não só para relatar uma história, mas faz do gênero uma ferramenta para “provocar” os sentidos do leitor. Para alcançar esse objetivo, molda uma história com temas que se cruzam entre si, tal qual um quebra-cabeça que necessita ser encadeado. Cada tema possui um começo-meio-e-fim. E a peça-chave que irá agregar todas essas histórias é o personagem principal, Abel. Ele participa desses relatos em momentos diferentes, às vezes mais amadurecido, às vezes mais ingênuo, e em todas elas perdidamente apaixonado. Essa certeza pode ser obtida no próprio livro, na sugerida explicação que segue de Antonio Candido, no prefácio do livro: “As linhas (da narrativa) são oito, e o seu desdobramento se traduz na história de um homem e das mulheres que amou”.

Desse modo, o romance se organiza num plano não-linear: Abel, o personagem principal, vaga por quase todas as histórias como se fosse um elo. Nem por isso, no entanto, as narrativas giram em torno dele. A galeria de personagens de Osman Lins atua de modo a criar luz própria também para os coadjuvantes. Para ser mais claro, em cada uma das personagens há um universo próprio, um contexto, de modo que seja até mesmo prescindível do todo. Em contrapartida, essas histórias se completam. Contradição? Pelo contrário. É pela variável de formas e de histórias que o livro se afirma como uma narrativa contundente, sem deixar de ser experimental (naquilo de melhor que a palavra pode ter); arriscada, e ainda assim equilibrada; arrojada, mas, sobretudo, erudita. Esse alto nível, aliás, é uma das imposições que o autor parece exercer em si mesmo no ato de composição do livro. As indicações, sugestões e “iscas” deixadas para o leitor demonstram que ele tinha uma noção clara do que fazia — e de aonde gostaria de chegar. É fundamental que isso fique claro, pois não há como improvisar sem conhecer os elementos necessários para tanto.

Uma explicação exemplar está no livro The spooky art (ainda sem tradução no Brasil), no qual o escritor norte-americano Norman Mailer é enfático ao afirmar que, para fazer literatura, é necessário muito mais do que vontade. Ou, por outra, até pode haver uma espécie de motivação oriunda do instinto, dessas que emulam vozes e dão forças para os motores. Entretanto, é preciso mais. Nas palavras de Mailer: “Às vezes é preciso esperar”. E Osman Lins fez isso. Nota-se nesse romance que o seu formato final foi fruto de um intenso e moroso trabalho de tentativa e erro. Afora isso, como num ensaio, há uma busca por uma interpretação, tanto para o estilo como para a narrativa em si. É então que o autor propõe: “Desenhai, com o auxílio de um compasso, se é de vossa índole ser cuidadoso, ou à mão livre, se tendeis para as soluções mais fáceis, uma espiral. (….) Sobre ela, delimitando-a em parte, assentai um quadrado. Pois o quadrado será dividido em outros tantos”. E a imagem do quadrado representa o retorno cíclico dos temas nele soltos, distantes. Trata-se do início do livro. Portanto, essas explicações ainda não fazem muito sentido, mas passam a ser cruciais quando se descobre a gênese do romance.

O jogo das palavras exatas
No mesmo tema das explicações do parágrafo anterior, que se chama A espiral e o quadrado, o autor escreve acerca de dois homens que viviam em Pompéia, há muitos e muitos anos. Um era servo e o outro, senhor. Este último, amante dos jogos de palavras, propõe ao servo, chamado Loreius, um jogo: promete-lhe a liberdade se ele descobrir uma frase significativa que possa ser lida em qualquer sentido e, ainda assim, possua o mesmo significado, não podendo ser alterada sequer a ordem das letras nessas mudanças. Estabelecidos o desafio e as regras, o escravo passa a matutar noite e dia numa eventual resposta. As burilações o levam a, primeiro, algumas letras e, a partir dessas, às palavras que seguem: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS.  São dois os seus significados: “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos”. E “O lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”. Estava feito. Consumado. O servo tinha a frase do seu senhor, tal qual ele havia demandado, ou seja, manifestando a mobilidade do mundo e a imutabilidade do Divino. O servo, no entanto, sofre um revés e sua frase é vendida ao seu senhor nas suas costas. Desorientado, Loreius se suicida, não sem, antes, repetir a frase: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS.

À medida que o romance avança, o autor concede noções pontuais acerca do romance, a saber: “Conclui-se que a idéia básica do livro assenta sobre elementos nítidos e nem por isso menos esquivos”. E assim: “Busca, porém, descrever apenas relações entre várias mulheres e um homem, delineando-se por esta via profana um trajeto que o protagonista ignora e cujo significado, para o autor, ainda não está definido”. Nesse ponto da resenha, o leitor pode até chegar a acreditar estarem desvendados os segredos dessa espiral. “Acertos e enganos (assim como surpresas e acontecimentos esperados) tecem a nossa vida — e elaboram as narrativas”.

São essas interrogações que pontuam o romance, fazendo com que o enigma não seja apenas da ordem dos acontecimentos. Há um mistério que permeia cada narrativa. Do contrário, como saber quem é Annelise Roos? Sim, ela está presente nas cenas do tema Roos e as cidades, como a mulher elegante e inteligente que seduz Abel. Mesmo assim, nada sabemos sobre ela, a não ser pelos pensamentos excessivamente poéticos e discursivos do protagonista. Aqui, Roos se revela aos poucos, de maneira que só aos poucos remontamos todo o quebra-cabeça. Enquanto isso, em Cecília entre os leões, o panorama é outro. Interior do Brasil, e não Europa. Uma família grande e com os arquétipos pouco civilizados para a elegância do protagonista, que, numa ocasião, se mantém calado ante os insultos e as palavras amaldiçoadas de seus irmãos, juntos, à mesa. Todos se medem por aquilo que não são e o resultado é um misto de ironia e sarcasmo, relembrando em muito as cenas aterradoras de Longa jornada noite adentro, de Eugene O’Neill. Em que pese a eloqüência dessa passagem, nada supera a criança que aguarda uma reação de vida de seu pai, um afinador de pianos que ficou surdo, e de sua mãe, que a oprime mais do que qualquer outra coisa.

No momento em que as explicações de A espiral e o quadrado começam a ficar elucidativas demais, esse tema é substituído por outro, cujo nome é O relógio de Julius Heckethorn. São apontadas, aqui, novas pistas para desatar os nós do romance, mas não são somente enigmas com fim em si mesmos. Antes, são elementos que estão de acordo com a estrutura do romance, de modo a trazer a reflexão ponderada acerca daquilo que está, segundo o costume, fora do eixo. Novamente, a escrita de Osman Lins segue uma tendência de unir a narração a um estilo densamente trabalhado, com uma linguagem plena de significados e símbolos a serem desvendados no ato da leitura. O jogo das palavras exatas, nesse sentido, ultrapassa o âmbito da forma: é também a essência, o objeto da obra. Isso porque Osman Lins se ancora numa literatura de idéias e experimental. Dito de outra forma, ele mescla o fundo melancólico de suas personagens a um rigor estilístico digno de um ourives, um mestre que elabora, assim como uma de suas personagens, cada palavra para obter um significado exato, mais próximo possível do sentimento que ele pretende expressar.

Observando a biografia do autor, é possível ser traçado um sutil paralelo em relação às histórias deste Avalovara. Osman Lins, assim como o protagonista Abel, também esteve em Paris nos anos 60, como bolsista da Aliança Francesa. Na Europa, segue os passos diletantes de um intelectual em formação. Também no livro, Abel, apaixonado, refere-se sempre à sua amada a partir dos lugares que visita. Chambord, Chartres, os boulevards parisienses. Prosaicos ou não, há uma memória involuntária e sentimental presente nas descrições desses lugares. Entretanto, um outro elemento interessante é a ênfase que o escritor dá aos acontecimentos sociais do Brasil e do mundo. São trechos curtos do noticiário político do país, inseridos de maneira aparentemente aleatória, sobre a atuação de João Goulart na presidência ou sobre a presença dos militares. Uma crítica velada, posto que não há juízo de valor ou comentários opinativos na boca das personagens, mas uma seleção de alguns eventos notórios daquele período.

Dentre todas as características do romance, aquela que mais se aproxima do ideal de Osman Lins é a sua busca por uma literatura de alto apuro estético. Ou seja, mais do que se preocupar com a história, e a despeito da importância do enredo, é a escrita que lhe parece ser o interesse mais primordial. A narrativa, por assim dizer, é a matéria-prima de um artesão da palavra; se comparada com um relato oral, não importa somente como aconteceu, mas principalmente a forma como serão contados esses acontecimentos. Faz sentido, desse modo, que Avalovara tenha sido um dos últimos livros de Osman Lins. A obra é reflexo de uma maturidade do autor, da busca por uma literatura de alto nível, que atinja os leitores não por sua facilidade, mas justamente por sua aparente dificuldade. Tal como o escritor inglês Samuel Johnson, Osman Lins pratica uma literatura feita com esforço para ser lida com prazer.

Ao longo do romance, a espiral e o quadrado ficam fortalecidos graças ao retorno cíclico dos temas, muito embora as histórias se desenvolvam, sempre adiante. A organização delas, aparentemente randômica, está de acordo com a expressão formulada pelo servo Loreius. Desse modo, no início de cada tema, há uma dessas letras que acompanham a seqüência da frase. Impressiona, desse modo, a natureza estética da obra de um modo geral, na parte e no todo. Nesta nova edição, aliás, há um índice para que o leitor saiba exatamente onde está cada tema. Tanto peso nessas características não devem fazer com que o leitor perca de vista o teor contundente e profundo da narrativa de Osman Lins. Ele não traz uma moral, um sentido ao seu romance, até mesmo porque as personagens, dentre as quais o protagonista, parecem mais à procura de algum objetivo, de um motivo, do que figuras decididas pelos rumos que devem seguir. Não é por acaso que o narrador, em meio a tantas afirmações, diga que “procurar na vida o rumo é igual buscar, num palheiro, a agulha que pode ter caído em outro ponto”. Há uma ironia com o ditado popular que remete diretamente à reflexão.

As relações com as mulheres, dentro dessa perspectiva, constituem um panorama claro da evolução do protagonista. Abel se envolve com Annelise Roos, na Europa, mas dela pouco obtém em termos de resposta, muito embora seu amor por ela seja grande. A decepção e a melancolia são as marcas das suas desventuras. Já com Cecília, em Recife, seu amor é menos visceral, refletindo uma necessidade de não estar só. É com a terceira, em São Paulo, que há uma realização tanto em termos afetivos quanto em conjunção carnal. De fato, são os relatos que mais páginas tomam do romance, absorvendo o leitor em uma prosa que chega a ser difícil de ser tragada, em virtude das inúmeras digressões e diálogos ensaiados que não se concluem.

Com base em todos esses elementos, o livro de Osman Lins é uma espécie de síntese de sua reflexão e atividade como escritor. Pois na obra há um pouco de cada um dos autores que ele foi, do ensaísta ao dramaturgo, passando, por que não?, pelo intelectual e literato contumaz. O esforço para a construção de sua obra, aliás, é um ponto interessante de sua biografia que pode ser também relacionada a este livro. Consta que o autor, que durante alguns anos foi professor universitário, acabou desiludido com a atividade, posto que nem os professores, e muito menos os alunos, tinham os conhecimentos por ele considerados necessários para o curso de Letras. É esse mesmo espírito instigante e provocador que guia o autor na concepção deste livro.

Avalovara aposta numa corrente fora de moda da literatura brasileira. Ao contrário da maioria dos romances destas plagas, o livro não se circunscreve na atitude prosaica das personagens, nem na banalidade de alguns temas. As discussões comezinhas, os diálogos fáceis dão lugar a uma prosa que é difícil de ser enquadrada, colocando-se como obstáculo para os leitores e para os críticos que decidem enfrentar o livro. Mas, ao contrário do que pode parecer, não se trata de um romance ininteligível, feito para uma certa casta de escritores e intelectuais (a maior prova disso é o sumiço do nome de Osman Lins da roda das discussões e das revistas que se pretendem literárias). Como um texto de prazer, exige uma depuração do leitor, de modo que ele se envolva com a narrativa do mesmo modo que o autor se envolveu no processo de escrita. Embora alguns possam pensar que é um esforço fora do comum, o que deve estar em mente é que se trata de uma obra também fora do comum, daquelas que merecem, como foi dito no início desse texto, a distinção de ser um clássico, seja na versão de Barthes, seja na versão de Italo Calvino.

A propósito, em uma de suas últimas entrevistas, concedidas ao Jornal do Commercio (PE), o escritor revela que a qualidade do que escreve não depende tanto de sua intenção ao fazê-lo. Ao autor só cabe tentar produzir o melhor, mas que isso é absolutamente imponderável, pois foge aos seus domínios. Neste romance, Osman Lins manifesta uma habilidade única, uma espécie de dom concedido ao seu trabalho árduo e meticuloso, de articular uma narrativa lírica na forma e no conteúdo, provando que a qualidade neste caso não é mais obra do acaso se pertencer à lavra de Osman Lins.

Avalovara
Osman Lins
Companhia das Letras
383 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho