Que poesia é essa?

A poesia brasileira contemporânea é apenas uma abstração, composta de três enigmas propagados com despreocupada frugalidade
01/12/2004

“Pobre cultura a ditadura pulou fora da política
e como a dita cuja é craca é crica
foi grudar bem na cultura
nova forma de censura
pobre cultura como pode se segura
mesmo assim mais um tiquinho
coitada representada por cada feiúra sem compostura
onde era Pixinguinha Elizete Macalé e o Zé Keti
ficou tiririca pura só dança da tanajura
porcaria na cultura tanto bate até que fura
que pop mais pobre
pobre pop.”
(Itamar Assumpção)

Ela está em colunas semanais de perspicazes comentaristas, suplementos arrojados, manifestos fundadores, caprichadas antologias e debates em festivais pitorescos. Parece até mesmo que existe por si, verdade física, inabalável e charmosa, apesar das polêmicas usuais. Mas basta nos debruçarmos com um mínimo de rigor analítico sobre sua complexidade, confrontando a permanente irresolução dos problemas que suscita, para concluirmos que a poesia brasileira contemporânea é apenas uma abstração, composta de três enigmas propagados com despreocupada frugalidade. Trata-se de uma conveniência mercadológica típica da mediocridade intelectual que dissimula seus dogmas enquanto os gera e perpetua.

Ao estabelecer a superioridade de certos autores e obras em detrimento de outros, sem destrinçar os enigmas implícitos nas suas escolhas e interpretações, a parcela irresponsável da crítica disfarça o que esta prática redutora tem de mais arbitrário: não esclarece os critérios utilizados para preterir determinadas manifestações como destituídas de uma inerência poética, em meio a tantas linguagens, tantos suportes e referenciais multidisciplinares possíveis; aborda criações situadas numa periodização apenas conveniente, induzindo a um imediatismo excludente e enganador, atribuindo características estéticas distintivas que parecem justificar o recorte temporal em questão; e concentra suas atenções apenas naquela parcela da produção que dispensa análises desafiadoras, ignorando todo o restante e dando vapores de indiscutível ao que foi preestabelecido em reuniões de pauta e coquetéis.

A abstração inevitável
Cada qual tem suas noções muito particulares do que pode ser essa entidade intangível, a poesia. Já se disse, antes e depois de Ezra Pound[1], que a palavra serve para designar tanto o muito bom quanto o absurdo; pode ser o mágico e o sublime, mas também um equívoco ridículo, um devaneio, um galanteio erótico de alcova. Entretanto, a tarefa de defini-la com singeleza léxica é espinhosa, como atestam os próprios dicionários: “arte de escrever em versos”, “composição de pequena extensão”, “inspiração”, “lirismo”, “entusiasmo criador,” e assim por diante. Eis o estado vegetativo que, infelizmente, o jornalismo cultural prefere incentivar.

A permanência deste simplismo normatizador demonstra que o senso comum ainda não assimilou as conquistas estéticas do pós-modernismo, oriundas das investigações simbolistas, cubistas, surrealistas e dadaístas, das “subdivisões prismáticas da idéia” (Stéphane Mallarmé) e dos métodos ideogrâmicos (Pound), do palimpsesto (James Joyce) e de “pulverização fonética” (e. e. cummings), que levariam a inovações tipográficas e espaciais no concretismo do grupo Noigandres e em sua contrapartida orgânica e subjetivista, o neoconcretismo.[2]

Há pelo menos meio século debate-se a fragilidade do verso, da palavra e da própria letra enquanto alicerces formais do poético. O elemento visual foi assimilado além dos limites da simples figuração expressiva, com a textualidade submetida ao efeito plástico da composição (poema-embalagem), os símbolos gráficos substituindo as cadeias discursivas tradicionais (poema semiótico) ou mesmo destituídos de valor semântico determinante (poema-processo e poema-colagem), culminando num estágio de interdependência sígnica entre verbal e visual (poema montagem) que chega a subverter o artificialismo sedutor da publicidade.[3]

A linha evolutiva acima constitui um percurso dentre muitos. Não cabe aqui discutir toda uma impossível ontologia poética, mas ressaltar que o problema está longe de ser resolvido, mesmo nos subterrâneos acadêmicos. Desde Platão e sua famosa Mimesis, esse tipo de veleidade ocupa as mentes de seletos grupos de ociosos em todas as línguas, com os mais variados enfoques e finalidades. Alguém poderia argumentar que o exercício é irrelevante, tautológico, e terá a sua razão. É um embate intelectual abstruso, talvez improdutivo, mas todo aquele que se considera digno de decidir o que é e o que não é poesia deveria saborear esse tipo de entretenimento pelo menos algumas horas na vida. Principalmente porque suas lacunas e deturpações guiam os juízos cotidianos rumo a consensos limitados.

Império do gosto
Nos círculos restritos de análise, os especialistas se revezam em estabelecer o estatuto poético com base em duas fortes correntes legitimadoras, inspiradas pelo formalismo russo do início do século passado e por sua versão relativizadora e individualista, a teoria da recepção.

O formalismo de Vítor Skloski, Roman Jakobson, Osip Brik e outros instituiu a lingüística como parâmetro para distinguir entre a linguagem prática e a literatura, inicialmente por meio de conceitos como “desvio”, “estranhamento” e “procedimento”, depois substituídos por “função”, “sistema” e “dominante”. Para tanto, seria necessário momentaneamente abstrair o conteúdo da obra e analisá-la a partir dos componentes formais e suas inter-relações. As várias funções lingüísticas observáveis no discurso (estética, referencial, expressiva, poética) determinariam seu caráter predominante a partir de certo rigorismo hermenêutico.[4]

Apesar da imensa contribuição da escola formalista (principalmente em seu convívio com as diversas vanguardas artísticas), já está mais ou menos evidente que a literatura não pode ser avaliada apenas sob critérios de aparência científica, porque pressupõem uma materialidade específica que a criação não necessariamente oferece e uma homogeneidade de discursos, com elencos previamente cristalizados de recursos semânticos, que simplificam sobremaneira as potencialidades inovadoras do artista, inclusive no que se refere à metalinguagem. O formalismo se revela transcendentalista quando empresta à obra literária uma imanência poética pronta para ser descoberta por alguns privilegiados.[5]

O papel do receptor já havia sido antevisto, embora subdimensionado, pelos próprios formalistas. Logo se mostrou um erro mistificador ignorar as relações entre a produção literária e o contexto histórico-social que envolve tanto o escritor quanto seu público. A carga ideológica embutida na escolha e na manipulação dos códigos e suportes, a importância transformadora das experiências pessoais e a ação dos meios técnicos de produção e divulgação da obra tornaram-se indispensáveis para a apreciação desta em sua totalidade.[6]

Da mesma forma que uma peça literária não é apenas a que se imprime na bidimensionalidade da página, com caracteres reconhecíveis, segundo determinada organização e num plano quadrangular, tampouco será somente aquela que utiliza um discurso não-pragmático construído sobre estruturas retóricas consagradas. Inexiste uma “essência” na literatura, muito menos na poesia. Qualquer escrito pode ser lido poeticamente, e há inumeráveis exemplos disso, da publicidade aos textos religiosos, passando também pelos embustes literários. Manuel Bandeira, José Paulo Paes e Peter Handke já demonstraram de variadas maneiras que recortes de jornal, escalações de times, trabalhos acadêmicos, bulas de remédio e até placas de trânsito podem engendrar arranjos lingüísticos especiais, transformadores e permanentes.[7]

Talvez essa indiscutível liberdade explique o atual relativismo de juízos que privilegia as escolhas pessoais sem maiores fundamentos. Pensando bem, é preferível que o enfoque seja este, se a atitude oposta vier embutida de preconceitos, chavões e tabelas de valorização estética. Mais de trinta anos depois da arte pop, em plena superação da crise do conceitualismo, aqueles que enquadram a poesia nos mesmos paradigmas de seus tataravós mostram-se reacionários ou ignorantes. Ademais, quando lembramos que a criação artística é destruída, consumida, reconstruída e retransmitida pelas sociedades, fica evidente que as noções de qualidade são passageiras e variáveis, tornando frágeis nossos gênios de ocasião e as próprias opiniões a respeito.[8]

Mas a supremacia do juízo pessoal serve também como salvo-conduto para arbitrariedades, ressentimentos e deturpações. A análise da poesia tornou-se dependente da maneira pela qual alguém resolve abordar, interpretar e abstrair um objeto, um texto, uma locução, um fragmento extraído do cotidiano com expressa motivação “estética”. O subjetivismo massificador consagra qualquer popularidade, dando à entidade Mercado o poder de cimentar veredictos.

Contemporânea?
Nem mesmo tal controvérsia, que julgamos relativamente atual, é recente. Aristóteles já ponderava sobre o papel ativo do leitor, o transcendentalismo formalista remete à busca romântica por expressões livres das idealizações neoclássicas, e mesmo um pensador nascido no século 19 como Benedetto Croce defendia o primado do “gosto” crítico para a análise artística.[9]

Em termos de produção literária, haveria algum modo de atuar “contemporâneo”, em oposição a correntes do passado?

O culto à personalidade do artista, por exemplo, se manifestava no advento do Romantismo, final do século 18, quando a atenção passou do objeto, a poesia, para o sujeito, o inspirado, dotado de sensibilidade superior, ou daquilo que mais tarde ganharia a alcunha de “talento” (a egolatria é tão carcomida quanto os ossos de Schiller).

A superioridade da imaginação em suas diversas formas, incluindo a confissão, o sonho e o delírio, aparecia em autores precedentes como Ésquilo e Camões, e nunca deixou totalmente de ser uma assimilação subjetiva das práticas miméticas antigas. Portanto, nada de surpreendente ou contestatório no verso livre ora predominante, que remete ao simbolismo e ao surrealismo, a Sousândrade e Walt Whitman, aos desbravadores de 1922 ou à maestria de Carlos Drummond de Andrade — mas que também acusa, em muitos casos, a prática da escrita automática e aleatória, de acepção mais catártica (numa espécie de “crônica emocional” do artista), sem necessariamente aplicar o rigor estilístico e a profundidade dos grandes libertários.[10]

Mesmo sua contrapartida, porém, é de antanho. A primazia do engenho e do intelecto sobre a possessão criativa teve defensores em Aristóteles, Teofrasto (doutrina peripatética) e Horácio. O racionalismo clássico, desde o século 16, sofre profundas influências dessa corrente intelectualista, que vai atingir inclusive contemporâneos do próprio Romantismo, como Edgar Allan Poe. A contínua pesquisa formal, valorizando critérios rígidos de estruturação dos elementos constitutivos da obra literária, marcaria a obra dos modernos (Charles Baudelaire, Paul Valéry, Mallarmé), chegando a André Gide, Vladimir Maiakóvski, W. H. Auden, T. S. Eliot, Jorge Guillén, os concretistas, João Cabral de Melo Neto e outros “artífices” da palavra. Estes, entretanto, também nos legaram certo hermetismo de caráter pretensamente intelectual e poundiano, prenhe de referências e vocábulos estrangeiros, secreto e algo esnobe.[11]

Portanto, as diferentes estéticas em vigor são tão variadas quanto suas fontes históricas, o que equivale a dizer que tudo o que parece recente pode redundar esteticamente antigo. Mas não necessariamente velho: a contemporaneidade da criação artística deve ser ponderada sob a ótica da reciclagem ininterrupta de tradições. O contemporâneo não é exclusivamente o cronologicamente novo. Raramente, aliás, o é. Tampouco é um tipo diferenciado de produto, ou uma estética determinada, para infelicidade dos antologistas de ocasião.

Como definir escritores por critérios temporais? Haveria identidades apenas entre os que se encontram vivos em determinada época, os de certa idade ou os que comungam de hábitos boêmios comuns? Por que ignorar os falecidos recentemente, os de passamento precoce e os de reconhecimento póstumo? Maria Lúcia Alvim, Ivan Junqueira, Ferreira Gullar, Wlademir Dias-Pino, Paulo Leminski, Hilda Hilst, Roberto Piva, Carlito Azevedo, Regis Bonvicino e Cláudio Willer jamais serão “contemporâneos”?

A dicotomia entre ousados e tradicionais é “uma questão de pura cronologia”.[12] Mesmo correndo o risco de tropeçar num certo vanguardismo sempiterno auto-indulgente, é muito importante insistir nos perigos de se isolar cronologicamente as manifestações artísticas, em seu caótico borbulhar de referências. Para a cultura, o tempo é mera ilusão: “o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo”.[13]

Brasileira?
Mas esse imbróglio teórico não impede que abordemos a atividade do poeta brasileiro naquilo que tem de objetivamente determinável, e que independe de critérios vagos ou ultrapassados de análise. E é muito importante voltar as garras do pragmatismo para o debate, porque sempre esbarramos em parcelas ignaras da crítica literária, comodamente dividida entre iconoclastas e saudosistas, que tendem a repetir o estúpido disparate de que a poesia nacional vive na indigência criativa — entre outros motivos, para ocultar sua própria incapacidade psicológica e instrumental de elucidar as verdadeiras questões da lírica atual.

A poesia brasileira nunca esteve tão bem. Provam-no o surgimento constante de periódicos especializados, muitos dotados de linguagem visual inovadora (Inimigo Rumor, Poesia Sempre, A Cigarra, Azougue, Babel, Sebastião, Agulha, Paralelos, Cacto, Coyote, Etcetera, O Carioca, Rodapé, Teresa, Ácaro, Calibán, Suplemento, Continente Multicultural), a própria multiplicidade de colaborações publicadas, o crescente interesse das novas gerações e o sucesso de alguns veículos alternativos e de fácil acesso, como o sítio Jornal de Poesia e inúmeros endereços eletrônicos mantidos por escritores.

Existem dezenas de milhares de autores brasileiros vivos, anônimos como seixos, atuando com diversos graus de paixão, empenho e apuro estético, nos mais recatados meandros do país. Acontece que suas criações passarão despercebidas pelo tempo. A esmagadora maioria jamais encontrará qualquer respaldo financeiro ou crítico, quando muito uma atenção local, restrita a grupos de diletantes. São heróis que, dispondo de algum recurso, talvez consigam digitar, revisar, compor, imprimir, encadernar e distribuir seus livretos para familiares e amigos. Mesmo que labutem ardorosamente, gastando pequenas fortunas em caprichadas edições semiprofissionais e em centenas de selos postais, amargando horas nas salas de espera das editoras e redações que ainda se dispõem a receber estranhos, seu cruel destino será o mais silencioso ostracismo.

O novo autor acaba sendo jogado num redemoinho opressor: desconhecido, não consegue receber o cunho editorial; fora das editoras, permanece inédito para o mercado, e é ignorado pela grande imprensa; continua anônimo, sem fortuna crítica, sem reconhecimento de qualquer espécie e… sem editora. Para se ter uma idéia do alcance dessa injustiça, basta procurar alguma “edição de autor” dentre os finalistas de qualquer prêmio literário importante, do Jabuti aos congêneres menos festejados, nos últimos dez ou quinze anos.

De um lado, a horda de criativos batalhadores que, não obstante sua dedicação e confiança, sequer dispõem de elementos para saber se estão no ofício ou no caminho corretos; de outro, toneladas de papel sem préstimo, abandonadas em arquivos poeirentos, gavetas fantasmas, fundos de prateleiras e principalmente sacos de lixo.

Isso ilustra que tão inaceitável quanto propagar a burla de uma crise da poesia é a idéia de que se possa elencar os nomes mais importantes em determinada linhagem, mesmo remotamente e em qualquer vertente do fazer literário. Por simples indução estatística, numa amostragem de milhares de potenciais escritores, é puerilmente ridículo imaginar que os oitenta autores conhecidos representem qualquer extrato qualitativo de nossas letras. E não temos sequer como avaliar estes pouquíssimos eleitos, dimensionando-os historicamente, pois desconhecemos os outros noventa e nove por cento; em outras palavras, desconhecemos a literatura brasileira. Umas poucas obras-primas ignoradas (com o devido escorregão balzaquiano) já seriam suficientes para caracterizar um desperdício irrecuperável do qual jamais teremos noção, quiçá arrependimento.

Vulgaridade
A indústria cultural, para utilizar a conhecida crítica de Horkheimer e Adorno, cria seu vocabulário próprio, impondo parâmetros de habilidade e competência que devem ser observados para ganhar receptividade comercial. Institui uma confusão entre “novo” e “vanguarda”, entre arrojado e contemporâneo, que logo se fundem no definitivo e no exemplar.[14]

Grande alavanca dessas tendências, a imprensa desempenha um papel crucial na legitimação do artista, no seu estabelecimento enquanto ente criador, social e profissionalmente reconhecido. Imerso na cultura do espetáculo, o jornalismo precisa estabelecer com a arte uma relação mercantil, entre divulgador e produto, e chega a ser previsível o investimento em figuras que têm o privilégio de exibir algum atributo mercadológico (é sintomática a profusão de anglicismos como teen, pop, fashion, cool, outsider), quando não apenas um recorde de vendagem ou qualquer façanha similar.

Mas a máquina do entretenimento sabe ser seletiva quando precisa, utilizando as prerrogativas mais arbitrárias da teoria da recepção, negando o aspecto ideológico e historicamente marcado de suas escolhas e instituindo critérios de gosto e simpatia pessoal para impingir qualidades artísticas.[15]

A força midiática da vulgar novidade, do polemismo desnorteado e da excentricidade circense ganha estigma de frescor, sapiência e mistério, enquanto o parnasianismo colegial, abstrações ilegíveis e exercícios de inconformismo epidérmico passam por conquistas da nobreza estilística. Como há cada vez menos ensaístas escrevendo para grandes veículos de comunicação, a resenha inculta e meramente reprodutora se transformou no padrão de excelência, causando um certo relaxamento nos critérios de avaliação de poetas e leitores, e se aproveitando dessa falta de comprometimento.

A própria escassez de autores disponíveis ao público ajuda a sustentar um comentarismo ególatra, alienado e ocioso, que precisa reproduzir suas discutíveis constatações na forma de conceitos perenes, para disfarçar a preguiça intelectual e o pedantismo bairrista. É muito mais fácil resenhar um best seller do que se debruçar sobre calhamaços de perigosas novidades. É mais cômodo esfregar os dedos numa bela encadernação em brochura do que na aspereza de garatujas mimeografadas. E dorme-se melhor pressupondo que as cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro concentram o sumo das artes nacionais, do que remoendo a assustadora heterogeneidade deste país continental e a gradativa imbecilização dos centros urbanos (de qualquer forma, é onde se encontram favorecimentos, empregos, convescotes seletos e outras afinidades menos confessáveis).

Às armas
Em resumo, os possuidores do “discurso competente” (ressalvadas as honrosas exceções, quase restritas a espaços alternativos) não podem dimensionar esteticamente a produção literária brasileira, porque seus critérios e métodos são viciados e incapazes de esmiuçar os mais primevos conceitos envolvidos num universo tão complexo, desconhecido e marginalizado. A crítica preponderante nos grandes órgãos informativos não aparenta possuir bagagem teórica para discorrer sobre o cerne poético, passou incólume por décadas de revolução estética, não conhece a quase totalidade dos autores brasileiros e finge esquecer que seleções baseadas em recortes transitórios, afinidades estéticas e tendências políticas só servem para releases e vestibulares.

Mas seria muito fácil, e perigoso, jogar às feras a ínfima parcela de escritores notórios, como se fossem culpados pelo próprio êxito e devessem, em nome dos Brancaleones rejeitados, negar as enormes possibilidades da cultura de massas. Algumas tribos de puristas parecem acreditar que vender corrompe. Gostam de cultivar a ressaca da própria irrelevância, e contribuem para a infâmia com sua parcela de obscurantismo, condenando a priori os autores bem-sucedidos, como logros de marqueteiros espertos. Num simples golpe de ressentimento (“por que não eu?”), o sucesso, qualquer sucesso, se transformou em estelionato cultural e a inovação, qualquer inovação, acusaria jogadas publicitárias.

Essa consciente acomodação ao limbo é o que de mais deletério pode se abater sobre os novos escritores. Cerceia a audácia transformadora, impede a criação de vínculos com o público e, muito pior, permite ao lixo cultural se manter e proliferar onde abundam recursos e visibilidade.

Não é possível utilizar os mecanismos de reprodução da cultura sem de alguma forma contribuir para o funcionamento da engrenagem política, ideológica e econômica que possibilita sua contínua sobrevivência. Mas atuar em esferas alheias ao sistema hegemônico constitui uma quimera, levando a resistência a ser empreendida no interior do próprio sistema, atingindo o público consumidor com maior eficácia.[16]

O autor seguro de suas potencialidades, que se dispõe a enfrentar os percalços dessa trajetória ingrata, precisa manter uma vigorosa disciplina para não descambar no achismo predominante e alimentar sempre o espírito questionador, para contrapor os idólatras e profetas que se digladiam dentro e fora da máquina. Precisa ser, acima de tudo, pretensioso e inconveniente. Abraçar a indústria cultural como uma inevitabilidade em escala planetária e deixar de repreender a profissionalização, o entretenimento e o êxito financeiro como fatos negativos. E as seitas acadêmicas cedo ou tarde serão jogadas de encontro às manifestações culturais oriundas desse sistema tão pobre e injusto.

“É sobretudo através dos autores vivos que os mortos mantêm sua vida.”[17] O poeta não pode se colocar à parte do processo, não pode se deixar esquecer sob o duvidoso pretexto de não se imiscuir. Deve lutar para transformar o que deve ser transformado, inclusive a si mesmo, e estar certo de que o engajamento cego e a omissão radical constituem faces da mesma submissão. Nem toda transparência discursiva é retrógrada, nem todo conteúdo é burguês ou conservador.[18]

“O poeta contemporâneo tem de ser perigoso como Dante foi perigoso; uma força respeitável frente às demais forças sociais”.[19] Isto implica conhecer os instrumentos de empobrecimento cultural, se apossando deles como for possível — sem medo de responder pelo legado de seus compromissos —, nem que para tanto precise operar junto a múltiplas disciplinas, como as artes plásticas, o cinema, o teatro, a eletrônica. Significa assumir com orgulho a diversidade de influências disponíveis, em todas as esferas de conhecimento, num ambiente em constante mutação, e mesmo de saturação de referenciais.

Significa finalmente reconhecer o fenomenal poderio da música popular, alicerçada nas mais remotas tradições dos ditirambos gregos e na própria sonoridade da lírica medieval.[20] Abracemos este patrimônio cultural brasileiro antes que o grotesco o infecte por completo. E expurguemos preconceituosos elitistas como Bruno Tolentino, que se divertem em menosprezar Chico Buarque, Torquato Neto, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Antônio Cícero e outros, qualificando-os pejorativamente “cancioneiros”, como se esse tipo de rótulo lhes anulasse a indiscutível perenidade.

A hegemonia da obsolescência crítica não é apenas um sintoma de acomodação, antes expõe suas estratégias. O triunfo da banalidade, do estereótipo e do narcisismo oportunista sobre a responsabilidade histórica e a contestação libertária pavimentam o caminho para uma sociedade na qual os intelectuais são lunáticos dispensáveis.

Referências bibliográficas

[1] Ezra Pound, A arte da poesia, São Paulo Cultrix, 1991, p. 67

[2] Teresa Cabañas, A poética da inversão, Goiânia, UFG, 2000

[3] Philadelpho Menezes, Poética e visualidade, Campinas, Unicamp, 1991

[4] Terry Eagleton, Teoria da literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1983, pp. 2 a 5; Luiz Costa Lima, “A questão dos gêneros”, Teoria da literatura em suas fontes, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, pp. 251 a 253; Wolf-Dieter Stempel, “Sobre a teoria formalista da linguagem poética”, id., p. 412; Roman Jakobson, “O dominante”, ibid., p. 488

[5] Henri Meschonnic, “Pela poética”, Teoria da literatura em suas fontes, pp. 32 a 34; Luiz Costa Lima, op. cit., p. 256

[6] Salete de Almeida Cara, A poesia lírica, São Paulo, Ática, 1998, pp. 68-69; Luiz Costa Lima, op. cit., p. 253; Henri Meschonnic, op. cit., p. 27

[7] Salete de Almeida Cara, op. cit., p. 54; Wolf-Dieter Stempel, op. cit., p. 416; Henri Meschonnic, op. cit., p. 41; Philadelpho Menezes, op. cit., p. 144

[8] Terry Eagleton, op. cit., pp. 9 a 13

[9] Luiz Costa Lima, op. cit., pp. 241 a 256

[10] Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Almedina, 1973, pp. 146, 150 e 171

[11] Id., pp. 187 a 199

[12] Paul Valéry, “Discurso sobre a estética”, Teoria da literatura em suas fontes, p. 16

[13] Augusto de Campos, citado em Caetano Veloso, Verdade tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 228

[14] M. Horkheimer e T. W. Adorno, “A indústria cultural”, Dialética do conhecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997

[15] Terry Eagleton, op. cit., p. 17; Luiz Costa Lima, op. cit., p. 265

[16] Linda Hutcheon, Poética do Pós-Modernismo, Rio de Janeiro, Imago, 1991, pp. 281 e 289; Teresa Cabañas, op. cit., p. 41

[17] T. S. Eliot, “A função social da poesia”, A essência da poesia, Rio de Janeiro, Artenova, 1972, p. 37

[18] Philadelpho Menezes, op. cit., p. 55

[19] Mário Faustino, Poesia-Experiência, São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 37-38

[20] Salete de Almeida Cara, op. cit., pp. 11e13

Guilherme Scalzilli

É historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela), entre outros livros.

Rascunho