Quatro geografias

"Desesterro", de Sheyla Smanioto, busca inovações na linguagem em trama entre o sertão e a violência urbana
Sheyla Smanioto, autora de “Desesterro”
26/03/2016

Desesterro, de Sheyla Smanioto, é um romance desenvolvido em quatro partes, mesmo que não estejam distribuídas de modo organizado nem apontadas durante a narrativa. Quatro personagens femininas, que se destacam na trama, marcam esses movimentos, quatro geografias diferentes.

Penha, a primeira, é a mais velha, mãe de Maria Aparecida e avó de Maria de Fátima. Aparecida, a segunda, apesar de presente na lembrança da mãe, morre ao colocar no mundo uma das filhas. Fátima, a terceira, é mais atuante e também a que tenta mudar o destino das mulheres de Vilaboinha. Criada pela avó, convivendo com uma irmã sem nome, torna-se mãe de Scarlet Maria, a quarta, deixada para trás quando foge de Tonho (marido louco e violento) para São Paulo e vai morar numa favela chamada Vila Marta.

O enredo desenvolve-se em torno dessas personagens, com paisagens do sertão e da cidade grande. A vida no campo é caracterizada pelo abandono do ser humano à própria sorte, pela solidão e pelo sacrifício vivido pelas mulheres, sobretudo quando precisam dar conta da sobrevivência da família. A figura masculina, no romance, é apenas um detalhe, mas revela-se como origem de todo o sofrimento, gerando para a mulher uma espécie de exílio não apenas territorial, mas um exílio de si mesma.

O livro de Sheyla Smanioto mostra-se também um espaço lúdico onde predomina, de modo maior, o exercício da poesia. Uma das características do gênero lírico é a não observância a cronologias, mas sim ao sentimento do eu poético nas suas relações cosmo-ontológicas. Aqui, a narrativa vai aos saltos, ora focalizando a pequena cidade de um sertão agulhado geograficamente apenas como norte, ora ressaltando o espaço urbano com toda a sua violência e complexidade, ora trafegando nos traumas e sonhos das personagens femininas.

Polos opostos
“Em Vilaboinha, lá para as bandas do norte, quase não tem cão nenhum fora o da vó Penha.” O início do livro, como se pode observar, já aponta polos opostos de convivência. De um lado há a figura da avó, mulher já de certa idade, distanciada no tempo, longe da juventude de Maria de Fátima, o que revela ideologias distintas; de outro, há Scarlet, a mais jovem das mulheres. A imagem de cães percorre grande parte da narrativa, mostrando a oposição entre o humano e o animal. Às vezes, com a inversão desta perspectiva, o animal aparece mais humanizado do que o homem. Tonho, marido de Fátima, “mata tudo que é cão na paulada”. Com o decorrer da história, vamos percebendo que os cães transformam-se em fantasmas contra os quais ele já não consegue lutar.

A vida no campo é caracterizada pelo abandono do ser humano à própria sorte, pela solidão e pelo sacrifício vivido pelas mulheres, sobretudo quando precisam dar conta da sobrevivência da família.

A autora, na maior parte da narrativa, tenta criar uma linguagem que dê conta do tema do romance e da voz das mulheres-personagens. O narrador, ou narradora, apresenta-se com características do contador de histórias da cultura popular. Por outro lado, na estrutura, o romance mostra-se artificioso, com várias características que revelam uma intenção totalizante, o que torna perigosa a empreitada. Ainda em relação à voz narrativa, o que se percebe é uma espécie de canto pleno de lirismo, o qual retrata passagens até certo ponto épicas, trazendo a narrativa para uma espécie de epopeia moderna em que o herói já não existe. Caso tentemos localizá-lo, estará, talvez, na figura desgraçada das várias gerações de mulheres. Elas não desistem, não abrem mão de tentar desvendar um universo que não conhecem e não dão mostras de dominar.

Outro tópico caro à autora é a tentativa de inovação no âmbito da linguagem. Vejamos este trecho: “Ele acerta nas costas do bicho e fica ganindo baixinho. O cão, não o Tonho. O cão devagarinho vai morrendo. O Tonho não, ele gosta é de ouvir o latido esparramado do cão no chão com tripa sangue osso suspiro.” Observe-se a inversão sintática na segunda oração com a troca do sujeito num período coordenado, que exigiria a sua manutenção. A autora, com esse artifício, ressalta a violência do homem, tornando-se ele próprio o animal. É digno de nota o par de rimas cão/chão, e a sequência “tripa sangue osso suspiro”, empreendendo ritmo alucinante ao dispensar as vírgulas. Retornando ao protagonismo feminino, é a mulher a dar a sentença: “Se bem que um pouco assim bem antes do cão ter morrido, um bem pouco antes, não dá nem pra dizer quem é cão e quem é Antônio. Fátima tem certeza: — É o cão.”

O circo
Outro ponto que tenta aproximar o livro da cultura popular é a referencia ao circo, presente em diversas partes do romance, principalmente no número muito comum e curioso nesse tipo de espetáculo, a metamorfose, ou seja, a transformação da mulher em gorila. Tal menção, juntamente com a participação do narrador contador de histórias, aproxima o livro do universo popular. Esta aproximação, no entanto, tem o seu preço, gerando alguns problemas. Toda construção linguística tem seus artifícios, e acaba por revelar um nível de elaboração que escapa ao falante da língua, oriundo e habitante das zonas frequentadas pela narrativa.

A literatura brasileira enveredou durante alguns momentos pela tentativa de refazer a linguagem, de criar um idioma brasileiro que se afastasse de suas raízes lusas. Isso começa no século 19 com José de Alencar, depois, acentua-se no Modernismo com Oswald e Mario de Andrade, atingindo seu ponto mais alto duas décadas mais tarde com Guimarães Rosa. Em Desesterro, é possível observar esta filiação, o próprio título do livro é um neologismo, o que revela o desejo de seguir trilha própria, em que o experimentalismo linguístico seja um dos focos principais do livro. É difícil, porém, afirmar o grau de novidade conseguido pelo romance. Experimentos com a linguagem atingiram seu ponto máximo em Grande sertão: veredas, na prosa, se é que se pode classificá-lo assim; e, por outro lado, na poesia (outra definição perigosa) de Manuel de Barros. O livro de Smanioto não veio a público para competir com tais autores, clássicos já há muito, mas contribui para acrescentar a essa linhagem uma ligeira filiação. Na verdade não se trata de um livro fácil. É uma obra que tem como origem os estudos literários, a pesquisa na área da teoria da literatura, o que torna o romance um pouco distante do leitor mediano.

É preciso sublinhar que o ponto alto do livro está no tema, no percurso das mulheres de Vilaboinha e, depois, no percurso de Fátima e sua filha Scarlet na cidade grande, sobretudo na favela de Vila Marta. À medida que se mergulha no universo urbano, percebe-se o germe de uma violência tão arrasadora quanto à de Tonho. A cidade, representada pela favela e pelas máquinas que escavam a vizinhança do barraco onde Fátima mora, mostra que não é possível nenhum tipo de trégua. O que se pode deduzir é que, se há salvação, ela tem como origem o universo artificioso do circo (isto é, da arte), onde metamorfoses sem dores são possíveis, permitindo-se tanto idas como vindas. Não é o que acontece com as mulheres de Vilaboinha. Elas transformam-se, agigantam-se, já não sendo possível nenhum retorno. Ainda bem.

Desesterro
Sheyla Smanioto
Record
303 págs.
Sheyla Smanioto
Nasceu em Diadema (SP). É formada em Estudos Literários, com mestrado em Teoria Literária, ambos pela Unicamp. É autora do livro de poemas Dentro e folha (Dulcineia Catadora, 2012), do curta Osso da fala (premiado pelo Rumos Itaú Cultural, 2013) e da peça No ponto cego (vencedora do IV Concurso Jovens Dramaturgos, 2014). Desesterro é seu romance de estreia, vencedor do prêmio Sesc de Literatura 2015.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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