Se você passou a vida vendo os filmes de cores berrantes e personagens outsiders de Pedro Almodóvar, certamente irá ao encontro de O último sonho com a voracidade de um condenado à morte em sua última refeição. Para esse público, o cineasta espanhol não esconde nada. Logo de cara, em uma espécie de making of das doze narrativas do livro, Almodóvar revela de onde vieram ideias para alguns de seus clássicos, como Tudo sobre minha mãe e Má educação.
Fosse “apenas” isso, já estaria bom. Mas Almodóvar não prega apenas para os convertidos. As histórias são muito bem escritas, envolventes e com o mesmo toque de estranheza que marca seus filmes. Uma estranheza “natural”, longe do estilão freak e exagerado de Tim Burton (bom demais, também), seu colega de geração. As criaturas de Almodóvar, na literatura e no cinema, são estranhas por natureza, porque a natureza humana é estranha.
Almodóvar usa tudo isso a seu favor. Ele instaura o caos na cabeça do leitor ao classificar os contos como “autobiografia fragmentada”. Mas na página seguinte diz que, desde criança, sempre se viu como “escritor”. E alguns parágrafos depois faz um link com sua filmografia: “Estes contos são um complemento aos meus trabalhos cinematográficos”. É literatura ou roteiro de cinema? Diletante ou escritor? Autobiografia ou fabulação? É tudo isso e um pouco mais… Porque Almodóvar trafega por diversas frentes do texto literário.
Vida e morte de Miguel é claramente um pastiche do Benjamin Button, o conto de F. Scott Fitzgerald que virou filme com Brad Pitt, com o ciclo da vida todo bagunçado na pele do personagem-título. Assim como em A cerimônia do espelho Almodóvar faz sua própria releitura das histórias de vampiro, com uma pegada que lembra a literatura gótica de Mary Shelley e os escritores que orbitavam em torno da figura de seu marido, o poeta inglês Percy Shelley. Na história de Almodóvar, um homem rico, atormentado pela culpa, isola-se em um mosteiro e passa a levar uma vida repleta de sacrifícios. A maneira como o conto é conduzido, cheio de tensão e mistério, encheria o senhor Poe de orgulho.
Por essas duas narrativas, vê-se que Pedro Almodóvar é também um fabulador, que não se escora apenas em seus próprios fantasmas, na sua agitada vida de cineasta global nem no jet set da indústria da qual é uma das peças.
Autoficção
Mas claramente ele também abraça a autoficção. O conto-título do livro é um relato comovente em primeira pessoa sobre o dia da morte de sua mãe, em um hospital de Madri. No texto ele faz referência ao filme Central do Brasil, de Walter Salles, ao lembrar que a mãe havia começado um negócio de leitura de cartas para os vizinhos analfabetos de seu povoado na Espanha. E era o pequeno Pedro que, aos oito anos, escrevia as cartas, muitas vezes “editadas” pela mãe para trazer à tona bons sentimentos a quem mandava ou recebia as missivas.
No sábado, quando saio para a rua, descubro que faz sol. É o primeiro dia com sol e sem minha mãe. Choro por debaixo dos óculos. Ao longo do dia, isso se repetirá várias vezes.
Apesar de ser uma ideia muito difícil de ser provada na literatura ou em qualquer campo da arte, os textos de Almodóvar transmitem uma “profunda sinceridade” ao leitor, principalmente quando ele se aproxima do relato confessional.
Embora eu não seja o típico filho generoso em visitas e gestos carinhosos, minha mãe é uma personagem essencial em minha vida.
O mesmo estilo visceral que fez de Karl Ove Knausgård um improvável best-seller após um arranque pouco inspirado como escritor.
Algumas obsessões do cinema de Almodóvar também estão presentes em O último sonho. A principal delas é a religião, ou o embate entre o sagrado e o profano, com padres pedófilos, prostitutas tementes a Deus e outros conflitos envolvendo fé, culpa e o aprendizado em instituições católicas.
O conto que abre o livro, A visita, é o mais emblemático nesse sentido, misturando questões de gênero às atrocidades que padres cometem em nome da religião contra meninos e meninas em “colégios-prisão”, conforme Almodóvar define La Mancha, a escola gerida por salesianos onde passou a primeira infância.
Além disso, as mulheres estão sempre no primeiro plano de Almodóvar — como em seu cinema. Confissões de uma ex sex symbol apresenta a personagem “transbordante” Patty Diphusa (que já aparecera em uma coletânea de contos e crônicas publicadas no Brasil pelo selo Tusquets), uma espécie de Rê Bordosa (a célebre personagem do mestre dos quadrinhos Angeli), que entre carreiras de cocaína e discos de rock, mete-se em uma trama pynchoniana em Honolulu, envolvendo o roubo da joia de uma família de banqueiros. O conto tem a cara dos anos 1980, com a ascensão dos yuppies e de novos vícios.
Os dois últimos textos do livro são brilhantes e imperdíveis por razões distintas: Memórias de um dia vazio é um saboroso relato sobre Nova York nos anos 1980 e sobre a figura de Andy Warhol, uma espécie de duplo americano de Pedro Almodóvar em muitos sentidos. Só essa relação, de proximidade mas também de distanciamento, renderia muito assunto. Mas deixo pro leitor descobrir a opinião de Almodóvar sobre a homossexualidade no armário de Warhol e como isso moldou sua personalidade pública.
Com um misto de excitação e tristeza li Um romance ruim: o texto que fecha o livro e em que Almodóvar é tão impiedoso consigo mesmo quanto a mais maldosa de suas personagens.
Ninguém é tolo a ponto de pensar que, ao escrever um bom roteiro, está destinado a escrever um bom romance, muito menos um grande romance.
Almodóvar cita exemplos de grandes roteiristas que não vingaram na literatura (Tarantino, sorry) e de grandes romances que naufragaram no cinema. Continua implacável em mostrar ao leitor que ele mesmo não conseguiu escrever um grande romance.
Se não me sinto capaz de escrever um grande romance, poderia tentar um outro tipo de romance, cuja classificação não se atenha à sua qualidade e grandeza.
Fiquei pensando que se essa ideia vigorasse na literatura, o mundo estaria salvo de milhares de romances ruins. Mesmo assim, de verdade, espero que o senhor Almodóvar tenha menos autocrítica e um pouco de disposição para escrever um romance. Que não seja um grande romance, mas um romance “possível”. Eu vou ler.