Quase, ou seja, tudo

Em “O paraíso é bem bacana”, de André Sant’Anna, a fala brasileira se realiza literariamente
André Sant’Anna: romance de fôlego para uma história mirabolante.
01/04/2006

Há pouco tempo andei escrevendo um artigo, Ainda não chegamos lá, sobre o futebol como tema literário. Nós, brasileiros, que na arte da bola somos quase imbatíveis, na arte de reproduzir em palavras essa arte somos pernas-de-pau. Nossa literatura, com raríssimas exceções, não conseguiu transpor para a ficção o universo futebolístico, seja em que aspecto se pensar (o torcedor, o time, os dirigentes, etc.). Pois agora surgiu uma exceção que, claro, não desmente a regra: O paraíso é bem bacana, romance caudaloso de André Sant’Anna.

E se o leitor, apressado como eu em ver um assunto tão em pauta no nosso cotidiano reconhecido como autenticador de nossa realidade no formato livro, vai se dar bem. E mal.

Bem porque Sant’Anna captura (é exatamente esse o verbo, num livro tão cruel porque não toca o real com a hipocrisia do bom gosto) os descaminhos de um aspirante a craque que fica entregue ao próprio azar, seduzido por paraísos artificiais e, por isso mesmo, infernais.

Mal porque Mané (haveria nome mais apropriado, nome que já virou adjetivo de sujeito errado?), mal saído dos juniores, levado à Alemanha para jogar no Hertha Berlim, é convertido ao islamismo, e na busca — inevitável — de uma redenção para sua trajetória até ali sempre à deriva (menino pobre, negro, filho de pai desconhecido e mãe conhecida como alcoólatra e prostituta malsucedida), encontra, no suicídio, seu ato mais corajoso para uma existência justificada pelo medo diário.

Medo que paralisa qualquer ato de confiança num talento que lhe é inato porque o artista da bola em questão está submetido, desde a infância, a um sentenciamento social que também lhe é inato.

Mané passará as quase 500 páginas do romance delirando com 72 virgens perfeitas, amorosas, a ofertar-lhe prazeres à carne e ao espírito debilitado, porém capaz, num derradeiro gesto, de mergulhar na melhor das fantasias. A verdade é que o rapaz encontra-se num leito de hospital, com membros decepados, em estado grave. A visão dos estragos causados pela bomba que ele levou amarrada ao corpo gera ânsia de vômito em quem olha.

Alheio à sua miséria, Mané caminha para a morte gozando o idílio de um mundo onde só o Alá que ele recebeu de peito aberto e mente nebulosa pode prometer.

Eis o sumo do fruto proibido que André nos esmaga na boca.

Poucos livros assim
Em poucos livros assim, tenho visto um país, através de seus párias despidos de qualquer caricatura, isto é, suas personagens mais denunciadoras (portanto, mais fiéis na demonstração do que o país tenta esconder ou amenizar), construído em blocos de depoimentos de diversas procedências, amigos, conhecidos, colegas de time. Tudo costurado pelo delírio do agonizante que vive — enquanto luta entre a vida e a morte — seu único momento de alívio e prazer.

Mané dos Santos passa a se chamar Mané Muahmmad. Não renuncia ao prenome que registra a origem que o condena; ao mesmo tempo, assume um complemento de fundo religioso (somente uma seita de fanáticos para mover o destino precário de alguém que passou a infância e a adolescência fugindo de tentativas de estupros e de agressões físicas). A fuga é seu andar; o medo, seu escudo; a raiva calada, o adubo a ajudar que germine a flor do ódio que acabará, afinal, voltando-se contra ele mesmo.

Mas não. Esta frase curta, aliás, é uma das inúmeras recorrências (entre as quais filho-da-puta e outras) que tornam o romance elíptico, polifônico e com uma costura invejável.

Costura, fora a densidade psicológica das personagens (personagem é tudo, sobretudo neste caso), é caso raro entre nós. Ironia: exatamente pelo tom rasteiro da linguagem e da visão de mundo dessas figuras acossadas por seus dilemas de nenhuma transcendência e sempre urgentes, vitais.

A recorrência de expressões, de frases, de cenas, num torvelinho lento, num movimento contínuo e poderoso (que se incorpora, como música, ao nosso ouvido e à nossa imaginação, até mesmo pelo reconhecimento de sons tão tristemente familiares), torna O paraíso é bem bacana um — desculpem o aparente exagero — monumento narrativo. Se literatura é forma, eis aí a forma em estado “bruto” (haja carpintaria para atingir essa brutalidade). Se literatura é forma a serviço de um conteúdo, haja conteúdo em algum romance desapercebido por todos, já que o contido no romance de André é o que há de mais contemporâneo, urgente, grave: questões raciais (na prática), futebol, essa fábrica de dinheiro (talento indiscutível porém frustrado e carregando, consigo, todo o peso da frustração, a atingir a muitas pessoas, além do próprio Mané), sexualidade desenfreada e, simultaneamente, reprimida. Além de terrorismo e guerras religiosas.

O título, no seu registro ingênuo, dá bem a dimensão do quão longe foi André Sant’Anna nesse livro de fôlego. Se faltou fôlego ao protagonista, que interrompe a própria ascensão jovem ainda, sobrou ao escritor, levando-o a um admirável feito na literatura brasileira, normalmente acusada de tímida, em conteúdo e em extensão, e acredito que sobrará fôlego ao leitor, como sobrou a mim, lendo e relendo quase 500 páginas que, a partir de agora, se não servirem de referência ao que de melhor somos capazes de produzir, então, em termos de literatura, somos mesmo, criticamente, uns manés.

O paraíso é bem bacana
André Sant’Anna
Companhia das Letras
454 págs.
André Sant’Anna
Nasceu em Belo Horizonte, em 1964. É filho do escritor Sérgio Sant’Anna e atualmente mora em São Paulo. É autor também de Amor (1998) e Sexo (1999).
Paulo Bentancur

É escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros.

Rascunho