Em 1921, viajando de Paris à Itália, Edmund Wilson escreve em seu diário: “O que há de melancólico na felicidade não é ela não existir, e sim ela não durar (em resposta ao diálogo de Torquato Tasso, de Leopardi)”[1]. Na verdade, o texto de Giacomo Leopardi que ele comenta intitula-se Diálogo de Torquato Tasso e seu Gênio Particular e faz parte dos Opúsculos morais. Aparentemente, Torquato encontra-se no mosteiro de Ferrara, onde de fato permaneceu internado durante meses, vítima dos delírios persecutórios que o levariam à loucura. Ali, em sua cela, recorda-se da mulher que ama em segredo, Eleonora, irmã do duque Alfonso II d’Este. A lembrança é o mote para um diálogo sobre o prazer, o sofrimento e a fruição da vida, “composta e tecida”, segundo o Gênio, “em parte de dor e em parte de tédio”, só encontrando descanso “quando cai de uma paixão em outra”[2].
A escolha da leitura e o comentário de Edmund Wilson são compreensíveis. Ele acabara de rever, em Paris, a poeta Edna Saint Vincent Millay, grande paixão de sua vida, de quem se lembraria, anos depois, como a que “ligou a ignição de duas coisas dentro de mim, minha paixão intelectual e meu insatisfeito desejo, que explodiram juntos numa chama de êxtase que permanece como um dos pontos altos de minha vida”. O reencontro em Paris, contudo, fora sombrio. Edna, que além de bissexual era adoravelmente promíscua, já se tornara amante de George Slocombe, e Wilson não se dispôs a reviver o ménage à trois que havia experimentado com ela e o poeta John Peale Bishop[3]. Em carta a Bishop, na qual relata o encontro, ele diz: “Ela não consegue mais me intoxicar com sua beleza nem jogar bombas em minha alma; quando olhei para ela, foi como se olhasse para dentro da cratera de um vulcão extinto. Ela me entristeceu; curiosamente, entristeceu-me constatar que eu a amara tanto e agora não a amava mais”. Distanciando-se de Paris, Wilson não resiste, no entanto, ao comentário amargo e deprimido sobre o fato de a felicidade não durar — um sentimento desalentador, sempre importuno, mas renitente; e sofrido, com certeza, por todos nós, tenhamos ou não vivenciado uma intensa paixão.
A última chance
É exatamente esse caráter transitório da felicidade a principal marca do romance A trégua, de Mario Benedetti. O narrador da história, Martín Santomé, escreve um diário cujo tema inicial concentra-se na espera de sua aposentadoria e numa curiosa visão da existência. Aos 49 anos, prestes a completar cinqüenta, viúvo, a seis meses e alguns dias de se aposentar, ele se sente indeciso quanto ao futuro, e também ingênuo e imaturo, como que preso à juventude, mas só aos defeitos dela. Trata-se de um homem detalhista, capaz de analisar as pequenas curvas de sua letra e, num exercício de incipiente grafologia, os estados de ânimo que, em sua opinião, elas revelam. Ama a rotina do trabalho — ele é um burocrata do comércio, cuja mesa, voltada para a parede, oferece-lhe apenas a visão de uma folhinha —, principalmente porque ela lhe permite pensar ou sonhar. Durante o expediente, divide-se em dois: um que trabalha de forma mecânica e outro, “sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria”.
Ainda que seja um crítico arguto das pessoas, da sociedade e de si mesmo, ele nunca se revolta: “Já aprendi que meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. Às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões”. De uma ironia deliciosa, bem-humorada, capaz de elaborar descrições sutilmente ferinas dos médicos, dos jornais, da corrupção, da política em geral e da cidade de Montevidéu, Santomé possui, ao mesmo tempo, um penetrante senso ético, que o faz criticar o comportamento dos outros, mas sem arrogância, ciente de que ele não é melhor ou superior. Em relação a Deus, pondera, com jocoso ceticismo, que Ele “talvez tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa”.
Sofrendo a contradição que todo ser humano minimamente consciente experimenta — a de se saber (ou de se acreditar) superior ao seu destino —, ele se reconhece, entretanto, como um procrastinador: “A segurança de me saber capaz para algo melhor me deu o controle da postergação, que no fim das contas é uma arma terrível e suicida. […] Postergar: esse é o meu vício, aliás incurável”. Sua capacidade de autoconhecimento permite-lhe distinguir, inclusive, o processo de insensibilização pelo qual a vida o obrigou a passar, e lembra-se, sem qualquer pudor, do que lhe disse uma de suas eventuais amantes: “Você faz amor com cara de empregado”. Ou das palavras da filha, Blanca: “Acho que você se resignou a ser opaco, e isso me parece horrível, porque eu sei que você não é opaco”.
Em meio aos encontros e divergências da vida familiar, na qual ele se revela às vezes um cinqüentão controlador, às vezes um incompreendido pelos filhos, e quase sempre um pai que não tem certeza sobre qual a melhor palavra a ser dita ou o gesto mais apropriado, ele anseia apenas pelo ócio que a aposentadoria lhe concederá, e guarda a esperança de que ela o liberte para a derradeira chance de encontrar a si mesmo.
Um clarão instantâneo
A forma do diário permite a Mario Benedetti a criação de um protagonista-narrador que jamais teme a auto-análise, a autoconsciência. Há temas, portanto, recorrentes, frutos dessa honestidade em esmiuçar as verdadeiras causas — e também as conseqüências — de suas escolhas. Santomé não poupa nem mesmo o passado, recuperando as lembranças de sua falecida esposa, Isabel, com incrível coragem. Em momento algum — o que realmente seria um recurso fácil — ele idealiza o casamento, mas repensa, um a um, todos os limites, todos os problemas, chegando a confessar sua incapacidade para reconstituir a imagem de Isabel. Lembra-se, isto sim, da textura e do calor de sua pele, do relevo de seu corpo. “Por que as palmas das minhas mãos têm uma memória mais fiel do que a minha memória?”, ele se pergunta, somente para constatar que seu sentimento não é saudade, mas, antes, a certeza de estar preso ao desejo que, abruptamente interrompido pela morte, não pôde se consumir.
Ele reencontrará o amor — e a libertação do tédio e da indiferença — em Laura Avellaneda, uma jovem de 24 anos contratada para ser sua subalterna. A princípio, ao analisá-la, ele demonstra certa misoginia — apesar das relações sexuais apressadas e ocasionais que mantém com desconhecidas —, mas sua avaliação muda gradativamente. A lenta aproximação de Laura — ou apenas Avellaneda, como ele apreciará chamá-la — e a forma com que o narrador descreve esse processo, são outras das inúmeras qualidades de A trégua. Não há saltos ou situações artificiais, mas um vagaroso apaixonar-se, que evolui do olhar observador às pernas da jovem, passando por uma difusa atração, até chegar à consciência, no feriado de 1º de maio, da saudade daquela “figurinha triste, concentrada, indefesa”. No dia seguinte, quando a reencontra, seu amor é confuso: “Sinto-me nervoso como um adolescente, é verdade, mas quando vejo minha pele que começa a se afrouxar, quando vejo estas rugas dos meus olhos, estas varizes dos meus tornozelos, quando sinto de manhã minha tosse de velho, absolutamente necessária para que meus brônquios iniciem sua jornada, então já não me sinto adolescente, mas ridículo”. E a partir desse trecho, a dolorosa percepção que Santomé demonstra do próprio envelhecimento chega a ser comovente.
Assim, apesar de, passo a passo, tudo se tornar um deleite — “Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que isso é a vida”, escreve Martín Santomé —, esse amor outonal também terá sua cota de angústia, nascida daquela clara noção que o narrador possui da diferença de idade entre ele e Avellaneda, o que o fará mover-se impulsionado pela urgência, permanecendo alerta, temeroso de que a felicidade lhe escape. A paixão é submetida, dessa forma, a um duro senso de realidade, mas que nunca impede o desfrute do prazer ou o ímpeto de sonhar.
Enquanto experimenta todas as formas de amar e vive a emoção de ter alcançado Avellaneda, de tê-la tornado realmente parte de si, Santomé jamais abdica de duas certezas — a solidão o espreita e a felicidade está acorrentada à fruição do momento:
Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia de cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações.
Quando a tragédia ocupa o lugar da redescoberta da ternura, a angustiosa constatação de Edmund Wilson e Giacomo Leopardi — a verdade da qual Martín Santomé sempre suspeitou — instala-se de maneira irremediável: o momento de felicidade não dura, é impossível conservá-lo. O silêncio de Avellaneda, a partida sem despedidas, interrompe bruscamente os esforços do narrador para “gastar a plenitude […] sem nenhuma reserva”. E é perfeito que ela parta silenciosamente, ainda que muitos dos leitores de Benedetti tenham lhe pedido o adeus da personagem. Anos depois, ele o escreveria na forma de um poema — Ultima noción de Laura — dedicado a sua amiga, a atriz Ana Maria Picchio, que interpretou Laura no filme A trégua, dirigido por Sergio Renán.
O enredo do romance, contudo, fecha-se apenas depois de um inesperado diálogo, cujo conteúdo integral não será revelado ao leitor. Para nós, condenados a não saber tudo, restará apenas partilhar da verdade: uma só trégua, um único momento de felicidade, que se nega a perdurar, é muito pouco para a vida inteira de desapontamentos, vazios e interrogações sem resposta.
Notas
[1] Wilson, Edmund. Os anos 20. Editora Cia. das Letras, SP, 1987.
[2] Leopardi, Giacomo. Poesia e Prosa (organização e notas de Marco Lucchesi). Editora Nova Aguilar, RJ, 1996.
[3] Meyers, Jeffrey. Edmund Wilson – uma biografia. Editora Civilização Brasileira, RJ, 1997.