Bellini e a esfinge, o primeiro romance de Tony Bellotto, tinha algo de curioso: um guitarrista adaptava o modelo do romance noir para as ruas de São Paulo, e criava um detetive carismático, aficionado por blues, bom uísque e belas mulheres. Sem ser brilhante, a história tinha algum charme, e o texto era promissor. Depois vieram uma homenagem a Dashiell Hammett (Bellini e os demônios) e um quase faroeste no interior paulista (BR-163), ambos com algum interesse, mas enfraquecidos pela estrutura dupla, de dois enredos que se comunicavam discretamente. Já Bellini e os espíritos era mais consistente, e integrava bem o enredo policial à paisagem paulistana e a elementos tipicamente brasileiros, como centros espíritas e a corrida de São Silvestre.
Agora, em Os insones, Bellotto arrisca de novo, e cria uma história que se passa em um morro carioca, e sem seu detetive Remo Bellini. Haverá quem diga que ele não retrata com fidelidade a vida e o modo de falar dos integrantes do crime organizado. É uma questão grave, esta: como representar literariamente uma realidade tão complexa quanto a das favelas cariocas? Questão que, no geral, é a de toda literatura. Como representar o outro? Como falar de outra classe? Graciliano Ramos, gênio que foi, conseguiu uma linguagem bastante sofisticada para contar a história de uma família de retirantes. Mas nem todo livro pode ser Vidas secas.
Esse tipo de crítica — a de que um livro trata uma determinada realidade de maneira deturpada ou caricata — tende a se acentuar no que se refere à paisagem do morro (bem como da periferia paulistana), porque esses espaços possuem representantes mais “autênticos”, escritores que ali cresceram ou viveram, e que, portanto, teriam, supostamente, mais “autoridade” para se pronunciar. Mas legitimar esse raciocínio equivale a aceitar que o escritor só está autorizado a falar sobre o que conhece, sobre sua própria classe, seu trabalho, sua época.
O que não se pode é criar uma “reserva de mercado” para determinados temas. Afinal, é natural que a literatura policial brasileira se aproprie com mais freqüência dos temas relacionados ao crime organizado. E, conseqüentemente, do morro e da periferia. Como acontece, aliás, em todo mundo: ou alguém imagina que todo escritor policial conhece o crime por dentro?
Os insones é o segundo livro de Bellotto a não ser lançado pela coleção policial da Companhia das Letras (onde figuram os romances protagonizados pelo detetive Remo Bellini), talvez porque não seja uma típica narrativa de enigma, como os de Agatha Christie, nem um romance noir, como os de Dashiell Hammett. Ainda assim, a alcunha de “romance policial” é bastante adequada. Afinal, é assim que o romance deve ser lido, como uma história contemporânea sobre criminalidade e investigação, com bastante ação e algum drama, e não como um “retrato” ou “denúncia” social, já que para isso há bons livros de sociologia e de reportagem disponíveis no mercado.
O enredo
Feita essa ressalva, vamos ao livro. O enredo de Os insones começa com um provável crime, o desaparecimento de uma jovem de classe média alta, Sofia, em torno do qual se inicia uma investigação. Mas à medida que os personagens vão sendo apresentados, o enredo vai se complicando um pouco, e revelando outros temas e pontos de vista. Conhecemos Renato, pai de Sofia, um publicitário bem-sucedido que vive longe dos filhos (do primeiro casamento) e que atravessa uma crise de identidade durante a investigação. Seu filho mais novo, Felipe, é um rapaz bem-criado, a quem não faltam confortos como o leite com Nescau antes de dormir, mas que mantém uma insólita coleção de armas de fogo de diferentes épocas e calibres, devidamente guardadas no fundo do guarda-roupa.
Paralelamente à história do “núcleo burguês” da trama, seguimos o percurso de Samora Machel, um jovem negro, também de classe alta, que abandonou uma vida confortável e ingressou na favela por motivos ideológicos. Batizado com esse nome em homenagem ao célebre líder revolucionário moçambicano, o desejo do jovem abastado é estabelecer contato com um membro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), onde pretende se alistar. Para tanto, alia-se à chefe do tráfico no morro do Café, Mara Maluca, uma jovem sádica que controla a favela, “meio mulata, meio índia (…), meio homem, meio mulher. Meio feia, meio bonita. Expressão dura, rosto marcado.” Juntos, praticam crimes que financiem os negócios dela, e os planos revolucionários dele.
Os insones é um romance que se lê fácil. Tem um ritmo ágil e algum suspense. Mas ainda falta um pouco para que Tony Bellotto se torne, definitivamente, o bom escritor que vem ensaiando ser. Seu texto é ambivalente, em muitos pontos: alguns de seus procedimentos mais importantes terminam por revelar as maiores deficiências do livro.
Por exemplo, a fragmentação do texto. No enredo, ela funciona bem: os capítulos são compostos por pedaços de texto bem curtos (às vezes curtos demais), cada um centrado em um personagem, de modo que a alternância de pontos de vista acaba por causar uma sensação de simultaneidade, entre as diferentes frentes da ação. Além, é claro, de manter o suspense em alguns trechos importantes, recurso antigo, mas muito importante neste gênero. Na frase, porém, a fragmentação excessiva pode ser prejudicial. O ritmo entrecortado nem sempre é sinônimo de velocidade ou de agilidade narrativa, e pode muitas vezes tornar a leitura truncada:
Tum tum tum. Zé Luís sentia os batimentos do próprio coração. Era inevitável. Há coisas que só se percebem de vez em quando. Zé Luís quase nunca lembrava que tinha um coração. Ou um nariz. Mas quando começou a subir o morro sentiu o coração bater o nariz inspirar e expirar. Não que os batimentos estivessem acelerados. Seu coração estava tranqüilo. A respiração ritmada. Os olhos atentos. Os homens do Core iam na frente, metralhadoras em punho, capuzes no rosto, abrindo caminho. Os moradores, tensos. Crianças correndo para dentro das casas. Uma mulata careca com um olho de vidro fechou a porta de um botequim cheio de computadores e turistas estrangeiros assustados. Um cachorro magro latiu. Helinho e Zé Luís atrás, cada um com sua Glock G18 na mão. Na cabeça uma música. Um som que se repetia num ciclo interminável. Um refrão. Não lembrava a letra. Um samba de Zeca Pagodinho.
O trecho acima é representativo do fato de que a fragmentação do texto nem sempre parece ser aleatória. Neste caso, fica a impressão de que ela procura reproduzir o ritmo dos batimentos cardíacos do policial, a sucessão de cenas que ele observa durante sua caminhada, um refrão que não sai de sua cabeça. E criar certo suspense. Mas quando um procedimento como esse é usado indiscriminadamente, ele perde o efeito, para se tornar um aspecto limitador, quase caricato do romance.
No que se refere à composição dos personagens, também há alguns exageros. O mais evidente é que os personagens são, em sua maioria, tipos, sem muita profundidade psicológica. Samora Machel, por exemplo, talvez o personagem mais importante do romance, é muito ingênuo e anacrônico, um guerrilheiro urbano capaz de declarações como esta: “‘O meu rosto é o de todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo basta!’, completou, sem revelar que citava o subcomandante Marcos”. Infelizmente, personagens assim não são, necessariamente, inverossímeis: de vez em quando, lemos sobre um jovem burguês que se uniu à guerrilha. Mas a “pureza” ou, melhor dizendo, a fé ideológica de Samora é por demais simplória, sem nuances de caráter. E, portanto, literariamente fraca.
Em compensação, o narrador possui um olhar irônico sobre seus personagens, revelando algumas contradições e preconceitos de classe, como o caso do burguês que fuma maconha para relaxar, ou que não resiste a um preconceito enraizado: “Motorista carioca é safado, todo mundo sabe”.
Embora Bellotto tenha dito que pesquisou bastante para a redação do livro, Os insones não parece ser um romance com ambições documentais e, sim, uma história de ação que, muito oportunamente, está ambientado em uma paisagem bastante complexa e em evidência no nosso cotidiano. O autor está ajudando a consolidar alguns elementos que estão se tornando comuns nos romances policiais brasileiros, principalmente alguns tipos presentes tanto nos noticiários quanto no anedotário cotidiano: o policial honesto em oposição ao policial desonesto; o fascínio da classe média por certa imagem idealizada do crime organizado (o que talvez seja o principal tema do romance); o aliciamento de menores nas frentes do tráfico de drogas; um ou dois personagens pitorescos da paisagem do morro, que conhecem a comunidade e suas histórias. Enfim, toda uma porção de tipos e lugares-comuns que são vagamente familiares mesmo a quem não conhece o morro. É claro que a realidade é sempre muito mais complicada. Do que qualquer literatura, aliás.
O enredo de Os insones é envolvente e possui bons momentos de tensão, de modo que, mesmo sem ser um grande romance, o livro pode agradar aos aficionados pelo gênero policial. Considerando, claro, que se trata “apenas” de um romance policial, de entretenimento. Não mais do que isso. Muitas vezes, fazer essa distinção entre literatura policial e a “alta literatura” pode soar muito antipático, e com certeza pode soar injusto aos bons escritores do gênero (inclusive, àqueles bons escritores que superam as fronteiras do gênero). Mas é uma distinção necessária, porque neste caso é fundamental estabelecer a expectativa de leitura. E a expectativa que se tem criado em torno de livros e filmes a respeito do morro, da periferia a do tráfico de drogas é a do realismo documental, o mais fiel possível à realidade. O que não é o caso. Em Os insones, o que mais vale é a ação.