Quase enigma

"Qvasi" e "E", de Edimilson de Almeida Pereira, carregam a força teórica do poeta e provocam reflexão
Edimilson de Almeida Pereira, autor de “E”
26/05/2018

Se concordássemos com Ezra Pound quando afirma que existem três dimensões fundamentais da poesia, teríamos noção do lugar incomum que Edimilson de Almeida Pereira ocupa na poesia brasileira hoje. Para Pound, deve-se distinguir a fanopeia (realização poética por meio da condensação de imagens), da melopeia (que opera por meio da condensação de sons), e da logopeia (a operação poética da condensação do discurso e do pensamento). Dividida majoritariamente entre a criação de imagens e a construção sonora, no Brasil, hoje, a poesia-pensamento e a poesia-discurso figuram em poucos casos, e em uma família de poemas tão diversos e com projetos tão distantes tais como em alguns poemas de Angélica Freitas, em quase toda a obra de Leonardo Fróes, nos últimos trabalhos de Marília Garcia (nesses três primeiros casos, articula-se o pensamento e o discurso com a criação de imagens), em todo o projeto de Alberto Pucheu, em alguns poemas de Ricardo Aleixo e na poesia de Glauco Mattoso. No caso de Aleixo e, principalmente, no de Mattoso, a arquitetura sonora se encontra diretamente com o discurso e com o pensamento — no primeiro caso, essa mistura resulta em nova mitologia (herdeira das ruas mais que de deuses), no segundo, em sátira. Também em E, de Edimilson de Almeida, logopeia e melopeia se encontram, embora a primeira predomine sobre a segunda, enfraquecida; seja como for, entre todos os casos citados, somente no caso de Edimilson a força do enigma penetrou inteiramente a forma dos poemas.

Em Estranha fruta, por exemplo, o enigma se arma a cada estrofe. Como na última, que afirma: “Ao sul do sul, a amarga colheita/ ainda gera receita./ Mas, de tanto exaurir o fruto/ as mãos queimam-se junto”. E tal como a metragem de cada verso é autônoma, apesar da rima, o enigma não se fecha, apesar da aparência. É claro, pode-se supor o seu caminho: “Ao sul do sul, a amarga colheita” pode remeter à divisão do mundo entre colonizadores, do hemisfério norte, e colonizados, do hemisfério sul, e o sul do sul pode querer dizer dos povos escravizados, entre os colonizados, que se configuram como mais danificados entre os danificados — daí a amarga colheita. Pode-se supor que “ainda gera receita” refira-se à permanência da situação colonial e escravagista após a colonização e a escravidão. Mas a continuação da estrofe permite muito pouca especulação: Que fruto é exaurido? Que mãos se queimam junto? As do norte e as do sul? Somente as do sul? De qual sul? Do sul do sul? E se se queimam junto, onde a divisão?

Enigma defeituoso, quase enigma, poemas de E, livro de Edimilson que veio a público em 2017, recuperam as qualidades oraculares da poesia, menos ao sugerir os futuros do escritor ou do leitor, e mais ao suscitar as perguntas mais fundamentais diante do verso. Que é isto que estou lendo? É uma pergunta que só se torna verdadeiramente possível em uma poesia logopaica — isto é, articulada pelos recursos do pensamento e do discurso — e que só permanece como pergunta porque o enigma se estrutura na sua quase forma. A condensação de imagens, pouco utilizada pelos poemas, cresce nas obras plásticas de Antônio Sérgio Moreira, que acompanham a edição de E, e são também quase formas, de cores vibrantes e linhas e setas que parecem, a princípio, orientar, mas que no fundo não dão em lugar algum — nem mesmo redundam nas próprias imagens.

Ponto central
Quase enigma e quase forma — a função exercida por um “quase” é também o ponto central do livro publicado no mesmo ano por Edimilson, qvasi: segundo caderno, volume subdividido, não por acaso, nas três partes intituladas Teoremas, Missivas e Letrados. É nessa última que se realiza mais plenamente a poesia-pensamento de Edimilson. A força teórica de seus poemas é invocada como força indireta, que age primeiro sobre elementos poéticos e depois provoca a reflexão. Por exemplo, na parte dos Letrados, fala-se da vida alheia para se compreender o mundo (o equilíbrio das coisas, a finitude). Como em Durvalino. Das Abelhas:

sabe-se, fazem
o necessário
para não turvar
o cântaro. 

De quem as cuida,
no entanto,
tenta-se, como o diabo,

decifrar por que
furta de si
o equilíbrio.
Na passagem 

do tempo tudo
se cumpre,
porém, a fiar-se nisso
morre-se.

Para Guilherme Gontijo Flores, Letrados é “uma série de figuras que, por mais de metade do livro, instabilizam o espaço coletivo, entre humanos e animais, num movimento hesitante”. Quase humanos, quase animais, num espaço quase coletivo. No entremeio do ensaio e da poesia, no quase — no como se —, a metáfora se articula na forma dos estilos. Com isso se quer dizer que a força metafórica de Edimilson está menos nas comparações entre elementos que intercambiam qualidades (de seres humanos e de animais, por exemplo), e mais no transporte de elementos formais pertencentes a diferentes gêneros. É também um alto risco que se corre: o da incompreensibilidade. Semelhantemente à imagem de Baudelaire evocada por Sartre, de um poeta separado das coisas por uma cortina de neblina, o mundo de Edimilson não é translúcido, e as coisas se apresentam sob um véu que, sem nomeação, também impede qualquer batismo.

Edimilson de Almeida Pereira está na sexta década de sua vida, com uma dedicação sem precedentes à poesia, ao ensaio, ao ensino de literatura, aos livros infantojuvenis — E e qvasi: segundo caderno ajudam-nos a compreender essa trajetória. Não são tanto livros para serem lidos em função da história da literatura e de sua biografia — justamente o contrário. Devemos ver como esses livros leem a sua trajetória e a história da literatura. Essa leitura deriva de uma constatação: o divórcio da poesia com o pensamento, com a sua consequente nostalgia e vontade de reencontro. Pois a magia da palavra e a vidência do pensamento nem sempre estiveram separadas. Seria preciso investigar o quanto esse processo tem como pré-história a ascendência social da burguesia e a consequente instrumentalização do mundo, as mudanças sofridas nas artes dramáticas e o Discurso do método.

Seja como for, espécies místicas — tanto as da poesia quanto as do pensamento — apostam em uma reunião das duas esferas, apartadas pela modernidade, e, principalmente, pela história da ciência e da escravidão modernas. Edimilson, no entanto, parece perceber que a ilusão de reunião dessas esferas nas imagens singulares de poetas permanece como solução mentirosa. Aposta, ao invés disso, no transporte dos estilos. O que nasce desse procedimento, mais que uma teoria fabricada em versos, é uma quase teoria, da qual quase conseguimos tirar diretrizes. Em E:

O que oferecer ao inimigo?
A sua carcaça
dele.

O que não tirar ao inimigo?
Os seus olhos.
Num osso côncavo
cabe
o mundo.

E em qvasi:

o portão e a cerca tirados
de sua ordem,
isso é a família

a árvore da fala e o guardião
apodrecidos,
isso é a família

a mulher que lhe deu o filho
teme os ratos,
isso é a família —


fora do novelo
que alinha o esqueleto

Quase enigma: enquanto produtor de enigmas defeituosos, Edimilson é também um articulador teórico em um mundo defeituoso. Nesse mundo, destruído pela razão instrumental e pela história da dominação, a perfeição da teoria ou da poesia talvez seja o que há de mais infértil na tarefa de sua superação. Na contramão das ideias claras e distintas do esclarecimento, nas quais se nutriram, nos últimos séculos, as sementes da sujeição, cultivam-se, em poetas como Edimilson, imagens mais confusas, nas quais se nutre, talvez, alguma esperança de empretecimento.

Qvasi: segundo caderno
Edimilson de Almeida Pereira
Editora 34
149 págs.

E
Edimilson de Almeida Pereira
Patuá
128 págs.
Poemas para ler com Palmas
Edimilson de Almeida Pereira
Mazza Edições
64 págs.
Edimilson de Almeida Pereira
Nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1963. É poeta, ensaísta e professor de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Possui uma obra extensa e múltipla, com publicações nas áreas de poesia, literatura infantojuvenil e ensaio, na qual se destacam, entre outros, Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003) e As coisas arcas (2003), Relva (2015) e Guelras (2016).
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

Rascunho