Quarto round

Pedro Juan Gutiérrez segue a contar a história da vida contemporânea em Cuba, longe de Fidel Castro e dos encantos da ilha turística
Gutiérrez sempre vence, por mais preparado que o leitor esteja para o cartel de golpes já conhecidos
01/08/2004

Cuba é a maior potência mundial do boxe amador. Isso é o resultado de uma estratégia do governo de apoio ao esporte, decorrente de um desejo de mostrar ao mundo que o regime é forte, lutador e vencedor. Desde as Olimpíadas de 1972, quando a Escola Nacional de Boxe, criada por Fidel Castro, começou a revelar seus primeiros talentos, Cuba conquistou 27 medalhas de ouro neste esporte. O número poderia ser bem maior se o país não tivesse boicotado, por conta da Guerra Fria, os Jogos de 1984 e 1988.

Apesar das medalhas, o sucesso de Cuba não passa de um factóide socialista no mundo do boxe. Poucos pugilistas cubanos se profissionalizam visando os milhões de dólares que o esporte pode render, pois dinheiro é coisa de capitalista. Quem quiser seguir este rumo, tem que fugir escondido num barco em direção a Miami, e nunca mais voltar. Assim, paradoxalmente, ex-lutadores são o símbolo maior da decadência cubana. O país está cheio de antigos heróis do boxe, aos quais restam apenas o orgulho da medalha no peito e as marcas de pancadas no rosto. No mais, são miseráveis, como a maioria dos cubanos que nunca sobem ao ringue, mas lutam diariamente pela sobrevivência.

No conto O boxeador, do livro O insaciável homem-aranha, o autor-protagonista Pedro Juan Gutiérrez reconhece de cara um desses ex-heróis cubanos ao avistá-lo na praia com a mulher e três filhos. Pedro Juan, como sempre, está mais interessado na mulher do próximo, que não é lá essas coisas, mas não consegue deixar de perceber o estilo do mulato que a acompanha. (“Tinha o nariz quebrado, com uma cicatriz que foi suturada com cinco ou seis pontos. O nariz achatado e torcido para a direita. Os dentes da frente quebrados e estragados. Disso lhe vinha aquele aspecto deselegante e os braços longos e caídos. Relaxados. Como alguém que espera o próximo round.”)

O insaciável homem-aranha é o quarto round de Pedro Juan Gutiérrez no Brasil. De sua lavra, a Companhia já publicou Trilogia suja de Havana (1999), O rei de Havana (2001), e Animal tropical (2002). Em todas as obras, Gutiérrez utiliza a mesma estratégia. Texto forte, ágil, um soco no estômago a cada parágrafo. O ritmo do cubano é sempre intenso, sem dar muito tempo para o leitor pensar. Quando se percebe, é tarde demais, Gutiérrez já nos envolveu com sua ginga ardilosa. O round é dele novamente, por mais que estivéssemos preparados para um cartel de golpes já conhecidos.

Gutiérrez derrota até aqueles que defendem que a literatura tem que sempre trazer uma surpresa para o leitor. Nunca fui um grande defensor dessa tese, mas também nunca me opus a ela. Aceitava-a de maneira tácita. Ao terminar de ler o quarto livro de Gutiérrez, creio que ele nocauteia essa teoria. O autor não inova, não traz surpresas, continua como protagonista de suas histórias que versam sobre assuntos já apresentados, mas mesmo assim agrada, consegue prender a atenção numa obra de leitura rápida e envolvente.

Apesar de ser identificado como um livro de contos, O insaciável… pode ser visto como uma novela, com uma certa unidade narrativa ancorada pela presença de Gutiérrez como narrador-personagem de todas as histórias. Aliás, juntando este livro aos demais do autor, tudo não passa de um grande e interminável enredo: a história da vida contemporânea em Cuba, não a de Fidel Castro e seus áulicos, e muito menos da ilha turística que encanta visitantes do mundo todo, mas a vida do cubano comum, uma história mais de ilusões olímpicas que de vitórias reais.

Os ingredientes do autor são os mesmos de sempre: muito sexo, muito rum barato, mulheres e charutos vagabundos, pouco dinheiro, pouca comida, nenhuma política. Gutiérrez talvez seja o maior crítico atual do regime cubano, sem sê-lo. Ele nunca fala ou escreve sobre política. E nem precisa. Seus livros são o maior retrato da vida sórdida a que os cubanos estão condenados (ou conformados). O escritor nunca explicou porque evita o tema político, mas deduz-se que não quer ser incomodado pelas autoridades de seu país. Apesar de seus livros serem proibidos em Cuba (mas circulam em bom número no mercado negro de Havana, que de tudo vende), Gutiérrez não quer afastar-se da fonte que o inspira.

E até mesmo quando uma personagem está fora da ilha, como no primeiro conto de O insaciável…, o espírito lutador cubano vai junto. Em Silvia em N.Y., uma das namoradas (se é que elas existem) de Gutiérrez sofre uma tentativa de estupro no Central Park. Silvia é agarrada por um negro alto e forte que lhe dá um par de bolachas na cara e a segura pelo braço enquanto tenta livrar-se das roupas de ambos. Temendo pela vida, Silvia não vê outra solução a não ser masturbar o negro e aproveitar para fugir enquanto ele goza. A estratégia dá certo, com um porém: Silvia deixou sua boca muito próxima do golpe adversário e não esperava que ele reagisse tão cedo, o que a deixa mais irritada do que aliviada de ter escapado de algo ainda mais violento (“Por que estava com a boca aberta? Como é possível? Será que sou burra? Estava na portinha, o porco, fazia um mês que não gozava. Soltou dois litros de porra em cima de mim. Filho-da-puta, desgraçado!”)

É com esse conto peso pesado que começa a nova empreitada de Gutiérrez. O autor apresenta as armas logo de cara, mantendo o estilo dos livros anteriores. Assim como o animal de Animal tropical é Gutiérrez, o autor também é o insaciável agora em questão, como explica no conto que dá título ao novo livro: “É evidente que abandonei a infância há tempo demais. Estou transformado em O adulto homem-aranha. Sem imaginação, sem senso de humor. Se me fizerem um teste psicológico seguramente vão encontrar grandes doses de veneno nas glândulas dos meus caninos. Desejos insatisfeitos de assassinar e bater, e uma sexualidade excessiva. O sexo me tortura.”

Gutiérrez impressiona a muitos pela naturalidade de seu texto, que induz muitos leitores a imaginarem que ele é realmente capaz de todas as proezas descritas por meio de seu personagem. O autor já disse em entrevistas que a coisa não é bem assim, que tenta mostrar a realidade por meio de uma ficção forte e bem elaborada. Confessou até estar assustado com a atitude de algumas pessoas, principalmente mulheres, que o desafiaram para algumas aventuras similares às de seus livros.

Em O insaciável homem-aranha, o autor dá pistas de que o Gutiérrez escritor não é tão super-herói quanto o Gutiérrez personagem, pelo contrário, revela que não é tão diferente das outras pessoas. No conto Minuto exato, Gutiérrez recebe a visita de uma mulher que diz conhecê-lo pelos seus livros, a quem logo alerta: “Meus livros são meus livros e eu sou eu.” Depois de uma conversa bem mais realista que sua ficção, Gutiérrez concorda com a moça, que diz que ela e o escritor são parecidos:

— Todos somos parecidos.

— Todos quem?

— Todos.

E para provar que também é um pouco humano, Gutiérrez revela desta vez que também tem uma mãe, a quem faz visitas periódicas nos arredores de Havana. Como qualquer outra mãe, a de Gutiérrez lhe telefona com pretextos bobos quando está ansiosa para vê-lo. Mas a ternura acaba por aí. Ao encontrar a mãe, entra em cena o personagem Gutiérrez, que ouve da velha uma histórica fantástica no conto O punhal chinês. A mãe lhe presenteia com a arma, que ele achava que era do pai, e que dá para matar alguém sem sangue, pois é do tipo que a lâmina fecha a ferida quando se tira. “Foi para isso que eu comprei. Para não me manchar com o sangue e ter tempo de fugir”, ela conta para o filho, confessando que comprara o punhal para matar uma das putas que andavam com o marido. (“Ela ia foder com o meu casamento. Não podia deixar. Eu não ia permitir que me abandonasse, com dois filhos pequenos, por uma puta de merda.”)

Pelo diálogo do personagem Gutiérrez com a mãe percebe-se que a literatura do autor Gutiérrez é uma literatura de hipérboles. O escritor não economiza nas palavras e nas situações duras e usa a imaginação sem limites para mostrar ao mundo o que vê nas ruas de seus país, ainda que tudo seja multiplicado negativamente ao passar pelo seu coração, ou por seus colhões. Aliás, isso sim é que é literatura feita com os colhões, como sonha em fazer um brasileiro nanico das letras e pintor de rodapé de bangalô, que no passado foi alvo de sátiras pertinentes nas charges deste Rascunho.

Gutiérrez faz isso mesmo que assim irrite a esposa que, no conto Alguma coisa que me faça pular, lhe pede que escreva coisas alegres e bonitas. Mas a resposta do marido não é nada animadora: “Não sou adulador e subserviente. Não acredito em nada nem em ninguém. Minha verdadeira vocação é me meter nas cloacas, pegar ratos e abrir a barriga deles com um facão para ver o que tem dentro”.

Já o regime de Fidel prefere encobrir as dificuldades com as vitórias no esporte, não apenas no boxe, já que todas as modalidades têm apoio governamental. Assim, com apenas 11 milhões de habitantes, a ilha caribenha já ganhou mais medalhas olímpicas de ouro per capita que qualquer outro país. Um slogan fixado sobre o ringue da Escola Nacional de Boxe traduz a filosofia usada: “Em Cuba, nós amamos apenas aqueles que resistem; os demais, nós toleramos.”

Pedro Juan Gutiérrez não ama nem tolera ninguém, nem busca medalhas olímpicas, mas segue resistindo. É um boxeur das ruas, pensando apenas no próximo round. No quarto assalto, não surpreendeu, mas venceu tranqüilamente por pontos.

O incansável homem-aranha
Pedro Juan Guitiérrez
Companhia das Letras
201 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho