Quanto tempo dura a nebulosa?

Em "Expedição: nebulosa", de Marília Garcia, ecos, paisagens e fragmentos de memória traçam a rota de uma expedição rumo à experiência da ausência
Marília Garcia, autora de “Expedição: nebulosa”. Foto Renato Parada
01/04/2024

Seria a memória uma sobreposição de ecos, imagens que compõem a cena vivida e mais referências que extrapolam o fato lembrado, porém que acompanham o indivíduo? Marília Garcia caminha orientada por uma série de ecos para compor sua obra mais recente, Expedição: nebulosa. Além de ecos, fragmentos de memória e mapas roteirizam o percurso do movimento do livro. Os poemas de Garcia são o experimento, a matéria viva, o contrapelo de diversas reflexões que sentenciam o fracasso da linguagem diante da morte ou sua impossibilidade de representação da ausência causada pela finitude do sujeito. A poesia está aí para construir um elo com essa camada do agora indizível.

Expedição: nebulosa, livro e poema com mesmo título, atualiza a tentativa de a poesia capturar o instante ao trazer elementos imóveis para pôr em marcha uma noção de movimento, ora lento, ora pausado, ora vazio, ora ocupado como a própria memória. Ao longo da obra, que em si mesma pode ser lida como um longo poema com diferentes passagens, as noções de tempo, movimento, partida, paisagem, transitoriedade são reiteradas, compondo o concentrado campo semântico do livro (todo dia a paisagem é a mesma/ mas a cada vez que olho ganha nova camada. escrevi este poema ao longo de 98 dias (…). quanto tempo dura o presente?. imaginem que isto é um mapa/ que não sei aonde vai dar).

Marília Garcia toma a obra Echo, do artista americano Richard Serra, instalada no IMS em São Paulo, como ponto de partida (mas queria começar falando de uma serra/ aliás de um serra/ o richard serra). Duas lâminas de aço de 18,6 metros, 70 toneladas cada uma, postas lado a lado, cuja montagem a poeta acompanha ao acaso. Não há encontro dos objetos pelo contato imediato. Há aproximação pelas semelhanças, como no poema história natural, em que a poeta procura os traços da filha, recupera em seus próprios gestos e fisionomia ressonâncias das linhagens paterna e materna (sempre disseram/ que eu tinha os olhos/ do meu pai/ cabelo estatura/ queixo caligrafia/ — cada coisa de uma tia). Ecos também de Carlos Drummond de Andrade quando o poeta diz: pois de tudo fica um pouco/ fica um pouco de teu queixo na tua filha.

Todos os empreendimentos do livro, quando observados juntos, sinalizam para o desejo de interlocução no presente, possível apenas a maneira da poesia (a perda da mãe, a saudade do amigo, o também escritor Victor Heringer, morto precocemente, para citar dois casos em que a ausência não pode ser revertida). Mais uma vez, como nos livros anteriores Câmera lenta (2017) e Parque das ruínas (2018), o manuseio do tempo é fundamental para presentificar o passado.

Um dos primeiros pontos de atenção, o nome da obra sugere um movimento temporal, onde não se tem nitidez, tal e qual a desafiadora topografia da memória, enovelada por novos contornos a cada vez que nos colocamos diante do passado. Uma cena fixa muitas vezes é ocupada por inesperados arranjos que colocam em dúvida o que é lembrado. eu me lembro…/ eu me lembro …/ eu me lembro…, citando o francês Georges Perec. Mas como devem ser as expedições, um percurso guiado pela expectativa da chegada, do fim, independentemente das intempéries pelo caminho. Nos poemas de Marília Garcia o percurso é punctum.

Ancorados no mesmo ponto
São os próprios poemas que informam a genealogia do livro. A expedição se inicia em um movimento anterior à obra, a performance homônima de 2019, com textos e projeção de imagens ao vivo para versão da revista Serrote. Expedição: nebulosa (performance e texto impresso) foi apresentada ainda na PUC-Rio. Depois ganhou uma versão impressa da revista Serrote #33. Marília fala sobre isso no poema título com a dicção ensaística que marca seus outros livros. Também não são raros os poemas em que o sujeito lírico parece nos contar uma narrativa.

Nesse trajeto como quem invade a nebulosa, confiando encontrar nitidez do outro lado do perolado, o leitor pode demarcar alguns eixos de organização dos poemas, escritos em diferentes momentos entre os anos de 2014 e 2020. Uma primeira parte com poemas que trazem lembranças de infância, dos amigos e da família, outra com ecos de Serra, a figura mitológica da Ninfa, Baudelaire, Heringer, Antin, uma terceira parte com outras memórias e especulações diversas e a última em que lugares de afeto se encontram em um mapa imaginário e improvável. Nesta parte, então descemos para o centro da terra, a poeta lembra também a não exclusividade da memória humana, expandindo a compreensão do natural e não humano a partir da experiência das plantas.

As palavras suspensas debaixo do som
Além da convergência entre literatura e outras artes, é notório o encontro da poesia com inovações digitais, mobilizando um imaginário urbano do sul global. Marília Garcia segue a tendência de outros poetas de sua geração que manejam elementos da cultura digital, sem deixá-los se sobrepor à poesia.

Um dos momentos em que há a sugestão de expansão da poesia para outro suporte está em Os meus amigos são um barato, poema titulado com o nome de um disco de Nara Leão. Escrito durante a pandemia, ele é memória dos amigos (eu fico aqui ouvindo cada música/ enquanto penso nos/ meus amigos) e também recorte dessa época avassaladora para todo o mundo.

eu queria poder estar
com meus amigos
por isso pedi a cada um
que me mandasse uma foto
de algum objeto que fosse importante para eles
nesse momento.

Caso queira, o leitor pode seguir as pegadas da autora, dando continuidade ao livro para além do ato de leitura e acessando o disco (mandei para eles/ uma foto do disco da nara leão, junto com um link do youtube/ para ouvir a faixa 4 do disco: /http://bit.ly/nara-leao).

É evidente como o som (do barulho da montagem de Echo no IMS por exemplo) ou sua ausência (nas pausas que surgem nos próprios versos, marcadas por um maior espaçamento entre palavras) também são elementos de composição dos poemas. Na última página, realço, deste livro em que Garcia usa significantes como “estrondo”, “silêncio” ou em que diz “eu respondo quebrar o silêncio é produzir o som”, dois códigos permitem amplificar o contato com a poesia, fazer o caminho de volta à oralidade do gênero ao sonorizar a experiência de leitura. O primeiro código leva à versão sonora de Escreve um poema pros adultos (ópera de girafas), produzido para o projeto Los sonidos de la pandemia, e o segundo ao Então descemos para o centro da terra, com peça sonora de Gabriel Xavier.

A boa articulação de referências da literatura, das artes, com a tecnologia localiza sua poesia no tempo em que escreve, ao passo que a estruturação rigorosa dos poemas e do livro como um todo, sem pontas soltas, com cada referência, palavra, ideia em seu devido lugar, confirma por que Marília Garcia é um dos nomes mais expressivos da lírica contemporânea.

Expedição: nebulosa
Marília Garcia
Companhia das Letras
111 págs.
Marília Garcia
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1979. Poeta, artista e tradutora, é autora de Câmera lenta (2017), vencedor do Prêmio Oceanos, e Parque das ruínas (2018). Também recebeu o Prêmio Icatu de Artes (2015) pelo conjunto de suas obras, que lhe concedeu uma residência na Cité Internacionale des Arts, em Paris. Expedição: nebulosa é seu sétimo livro.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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