Pela primeira vez Morte ao entardecer (1932), de Ernest Hemingway, chega às estantes brasileiras. Apesar de ser uma obra constantemente explorada e estudada por especialistas na literatura de Hemingway, o livro demorou mais de 90 anos para ter uma versão por aqui.
Vencedor do prêmio Pulitzer em 1953 e do Nobel de Literatura em 1954, Hemingway é um dos grandes nomes da chamada “geração perdida”. A definição apareceu pela primeira vez em sua literatura na epígrafe de O sol também se levanta (1926), e depois em seus registros que deu origem ao conhecidíssimo Paris é uma festa (1964). A designação foi cunhada pela escritora e poeta Gertrude Stein, que, como descobriremos no capítulo Une génération perdue, de Paris é uma festa, diz a Hemingway ao longo de uma conversa: “Vocês todos são uma génération perdue. É isso mesmo que vocês são. Todos vocês, essa rapaziada que serviu na guerra. Vocês são uma geração perdida”.
Tendo participado da Guerra Civil Espanhola, que o levou a escrever Por quem os sinos dobram (1964), Hemingway esteve inserido na linha tênue que dividia a vida da morte. Ainda que nem sempre se possa relacionar traços da biografia dos autores às suas obras, beira o impossível não pensar que o contato direto com os massacres da guerra o levou a inserir temáticas e discussões tão profundas em suas inúmeras publicações. Ao se aventurar por seus textos, nota-se com facilidade que Hemingway possui um olhar apurado para capturar o que há de mais pulsante nas experiências humanas. Ainda mais fácil é perceber como a escrita do autor é certeira a ponto de traduzir suas vivências de modo impressionante.
Apesar de destoar um pouco de seus demais escritos, Morte ao entardecer não deixa de tecer reflexões a partir de episódios e eventos marcantes da vida de Hemingway. Em pouco mais de 300 páginas, o leitor se vê inserido na Espanha, país conhecido pelas temporadas de tourada — e é justamente a partir da relação perigosa e violenta entre os animais e os homens nessas “festividades” que Hemingway tramará uma valorosa ponderação do conflito entre vida e morte.
No limiar
É sabido que Hemingway tende a trabalhar questões da condição humana, bem como explora a grace under pressure (graça sob pressão), ideia que reflete a dignidade diante da adversidade e do medo. Nutrindo certa curiosidade pelas touradas, o autor trará essa obra de não-ficção/ensaio que resultará em uma espécie de estudo da cultura do violento espetáculo em paralelo à sua meditação pessoal a respeito do finito embate entre vida e morte.
Logo nas primeiras páginas, Hemingway conta que as touradas se tornam uma grande obsessão, de tal forma que seguia cavando em busca de cada vez mais informações. Como todo bom obcecado por determinado assunto, o escritor nunca sentia que seu conhecimento era suficiente para escrever o relato que pretendia levar ao Morte ao entardecer, de modo que demorou cinco anos para finalizar o texto.
Os cinco anos fizeram com que a obra envelhecesse como vinho, já que Hemingway foi, assim, responsável não apenas por uma escrita didática que nos leva a compreender o seu ponto de vista a respeito das touradas, mas também por nos trazer um grande guia para compreender essa tradição. Inclusive, o relato é acompanhado de um anexo descrevendo as reações de alguns espectadores, quase que num modelo de entrevista, e “um glossário explicativo de certas frases, palavras e termos usados nas touradas”, permitindo um aprofundamento ainda mais dilacerante em seu relato.
Ao longo do livro seremos apresentados a regras e premissas básicas da tourada, bem como entender algumas hipóteses sobre por que a violência das arenas afeta os espectadores de maneiras diferentes. O autor pontua que algumas pessoas não ficavam chocadas ou traumatizadas ao verem os animais morrendo; algumas tampouco esboçavam qualquer sentimento de tristeza, e se viam entretidas como quando concentradas em um passatempo divertido. Por outro lado, havia aqueles que se doíam e sofriam copiosamente frente ao que assistiam. Sobre isso, Hemingway ainda faz uma aproximação:
De observar, eu diria que as pessoas talvez estejam divididas em dois grupos básicos, ou seja, que se colocam no lugar dos animais; e aqueles que se identificam com os seres humanos.
É também interessante pontuar que o tema da guerra e os traumas provenientes desse terrível período estão presentes. Apresentando o tema e os motivos do que escreveu em Morte ao entardecer, Hemingway diz que, com o fim das guerras, a praça dos touros era o único ambiente em que poderia encontrar e estudar a morte violenta. Mencionará que as touradas não o deixavam negativamente impressionado. Por ter participado da guerra, Hemingway encarou o abismo; observando-o por muito tempo, visto que teve de se expor consideravelmente aos horrores das trincheiras, experimentou o que Nietzsche dizia: o abismo o encarou de volta, transformando em cinzas qualquer fragmento de sensibilidade que carregava consigo. Ao encontrar essas menções ao período das guerras, não pude deixar de pensar em como é curiosa essa aparente fixação e necessidade de seguir convivendo com a violência, ainda que essa tenha papel essencial na aniquilação de bons meses de sua juventude.
E é diante de todos esses aspectos que Hemingway enxerga o eterno e inesgotável conflito entre a vida e a morte. Qualquer comportamento errado por parte dos toureiros poderia causar um acidente trágico o suficiente para matá-lo no mesmo instante; o mesmo poderia ocorrer com o animal, caso se prendesse à capa vermelha sacudida diante de seus olhos, que tenta mascarar seu duro destino.
O embate entre vida e morte se escondia não apenas na ciência de que alguém sairia morto ou seriamente lesionado, mas também na maneira corajosa que o toureiro se portava à espreita frente àquele perigo. Junto ao medo, considera-se também uma postura que Hemingway descreve como algo heroico. E talvez a mente de um sobrevivente da guerra seja sobre isto: em todo canto caberá uma nova reflexão sobre como a morte está sempre pronta para dar o bote.