Copacabana dreams, de Natércia Pontes, é uma coletânea de contos ambientados no Rio de Janeiro. Alguns dos textos são breves, sem passar da metade de uma página, enquanto alguns são um pouco mais longos, chegando a algumas páginas. A sensação após a leitura, porém, é de que, devido a uma unidade temática, os contos podem ser encarados como capítulos de uma narrativa maior, que apresenta uma espécie de visão da cidade e de seus personagens.
Essas cenas mostram com humor pequenos acontecimentos majoritariamente ficcionais das calçadas e construções do Rio. Encarando como um todo, o livro mostra a vida das pessoas da cidade, como se cada conto fosse apenas uma das pessoas que passam pela calçada.
Flanar em neon
Em alguns textos, é possível imaginar o narrador como uma criança bem serelepe, que coloca uma pequena camada de fantasia sobre aquilo que vê na cidade. É uma espécie de filtro colorido a separar o narrador da vida real. Nesse sentido, a autora parece uma flâneur com um toque de nonsense, que acaba vendo a realidade com uma distorção que cria um humor e uma graça toda própria do livro.
Com esse modelo de narrativa, torna-se ainda mais tênue o limite entre realidade e ficção. É possível imaginar com clareza alguns dos acontecimentos ou personagens apresentados, enquanto outras histórias são mais fantasiosas (mas igualmente gostosas de ler).
Por esse caminho, Natércia consegue criar uma atmosfera muito mais humana para o espaço, com diferentes rostos e vozes que podem (ou poderiam) ser vistos pela cidade. É uma cara completamente diferente do que é costume ver sobre Copacabana — praias, paisagens e sol. O leitor passa a ter personagens.
Sobre personagens, duas delas se repetem durante o livro: a Irmã de Caridade Zumbi e a Senhora Pochete e Tênis Bamba. Com nomes talvez já auto-explicativos, o leitor consegue criar imagens muito nítidas enquanto lê as histórias. As duas se tornam condutores da história, como símbolos de comportamentos vistos pela cidade.
Em Confetes de cromaqui, a autora apresenta a linda passista, completa e produzida, sambando sozinha no meio de um apartamento escuro (basta pensar na Globeleza dançando no meio de uma sala bagunçada de uma moradia apertada). A narrativa é tão completa que se vê os confetes e serpentinas pairando no ar. E o contraste é tão grande da imagem do carnaval que a personagem se torna até mais real.
O leitor também encontra os anões da Branca de Neve, casos amorosos merecedores de novelas cariocas, cachorros poodles, inúmeras referências culturais, o corredor da orla da praia, a ginecologista e até algumas pessoas perdidas que parecem não querer nada da vida.
O conto Copacabana mon abajur parece mostrar uma relação mais específica da própria autora com o Rio: o texto aponta pequenas coisas vistas, faladas ou ouvidas que remetem a uma relação pessoal com a cidade.
Já em Querida abóbora, o leitor acompanha a maneira com que uma senhora de idade se encanta por uma abóbora, que fica em cima da mesa da sala de estar. Aos poucos, a fruta apodrece e se torna um símbolo muito forte da maneira com que a personagem encara a própria vida.
Com as diferentes cenas e personagens apresentados, Natércia cria um cenário para histórias pouco comuns, apostando em um toque de fantasia no meio da realidade de uma cidade grande.
Humor e irrealidade
Natércia Pontes trouxe para a literatura brasileira um humor sutil e inteligente, que percebe no cotidiano algumas cenas urbanas invisíveis para um olhar cansado e anestesiado. Além disso, a autora insere detalhes ricos, que permitem ao leitor uma compreensão maior dos personagens. Em um dos contos, a personagem se incomoda com um café doce demais. Outra usa uma lycra muito esticada.
Nesse sentido, o trabalho da autora se assemelha ao feito por Miranda July (É claro que você sabe do que eu estou falando e O escolhido foi você), com pequenas histórias extraordinárias do cotidiano, e Sophie Calle (Histórias reais), artista performática francesa que cria em sua vida diferentes situações, provocando um olhar diferente sobre seu próprio cotidiano. As três autoras conseguem trazer uma espécie de encanto maior para a atribulada vida cotidiana de uma cidade, mostrando situações e personagens com um tom de irrealidade.
O humor fica evidente já nos títulos das histórias — uma das melhores partes do livro. Eles se relacionam com os contos de uma maneira sutil, que desperta a curiosidade e arranca um riso quase imediato (pessoalmente, meu favorito é O nome da canção é ‘Michelangelo Antonioni’ ou pode ser ‘Jesus Cristo’ do Roberto Carlos, aquela que tocou no supermercado e você adorou).
A graça vem inserida também em outros momentos, como algumas ações nonsense de alguns personagens, alguns diálogos bem construídos e inclusive em certas indicações da autora (“Por incrível que pareça, deve ser lido ao som de ‘Hey Jude’, instrumental, interpretado, sozinho no palco, em teclado Yamaha”).
Boa história em linda roupa
Para acompanhar o ar de humor e leveza do livro, optou-se por um projeto gráfico com diferentes tipografias para os títulos dos contos, sempre as relacionando com o tema abordado pela história. Mesmo que em preto e branco, o leitor percebe o letreiro de neon de uma boate sem graça, as letras de lâmpadas de outros estabelecimentos comerciais, algumas letras cursivas mais carinhosas e algumas mais sérias e elegantes.
Como o tamanho dos contos varia muito, a mancha na folha acompanha a mudança. Assim, algumas páginas são impressas apenas na metade inferior, enquanto outras são mais preenchidas, provocando uma fluidez maior para a obra. A capa, de um papel mais áspero, lembra um pouco o toque da areia.
Sonhos de Copacabana
Em um post no blog da Cosac Naify, Natércia falou sobre o Anita, apartamento conjugado de trinta metros quadrados em que morou no Rio de Janeiro na época em que escreveu Copacabana dreams.
“E vermelha era a cor das cortinas do primeiro apartamento em que morei só. As cortinas se penduravam no meio da casa para separar dois ambientes — o que dava uma tremenda sensação de palco”, diz a autora.
Além disso, do terceiro andar, conseguia ver muito do que se passava na calçada da frente do prédio, de onde vieram várias histórias do livro. Essa imagem consegue traduzir um pouco o que se sente ao ler os contos: o narrador, quase sempre, parece justamente essa pessoa que tem tempo e atenção para notar a cidade e as pessoas. E talvez não só isso. Talvez o narrador seja aquele que também consegue notar os detalhes mais sutis.
E é justamente a partir das pequenas coisas que a autora consegue apresentar a cidade como se fosse um lugar completamente novo, as pessoas normais como personagens extraordinários, os pequenos acontecimentos como grandes trajetórias e simples vontades por incríveis sonhos.
E quem sonha os sonhos de Copacabana dreams? Pode-se dizer que são os narradores, a autora, o leitor. Ou ainda, a própria cidade.