Imagine uma mulher muito, mas muito à frente de seu tempo. Uma mulher independente, que não precisa de homem algum ao seu lado para lhe dar dicas de como conduzir seus negócios, que não depende emocionalmente de um marido ou de um companheiro. Enfim, uma mulher que vive a sua vida como quer, e não como é mandada. Se hoje em dia já é difícil para as mulheres serem independentes assim, imagine no Brasil do fim do século 19 — um Brasil ainda escravocrata, com a religião católica como o credo oficial do Estado, com leis que diziam claramente que, uma vez casada, todos os bens da mulher iam para o marido. Para piorar, imaginemos essa mulher apaixonada por uma das figuras históricas mais importantes de nosso país: Joaquim Nabuco, expoente máximo da causa abolicionista, progressista no trato com o mundo exterior, mas profundamente tradicionalista (leia-se aqui machista) no que diz respeito às relações pessoais e sentimentais. Ah, vale a pena lembrar que a mulher assume a própria vida aos 22 anos, logo após a morte do pai, e não aceita a ingerência dos tios na sua vida, tios que só queriam meter a mão em sua fortuna, que à época significava 5% das exportações brasileiras ou quantia igual ao dote de Dom Pedro II.
Parece ficção? Pode até parecer, mas é história real, e das boas, a vida de Eufrásia Teixeira Leite, contada com talento e sensibilidade por Claudia Lage em Mundos de Eufrásia. Claudia faz um trabalho de pesquisa enorme para recontar a história de Eufrásia e Joaquim Nabuco pelo viés das emoções mais íntimas que ambos tiveram, longe dos livros oficiais e das datas históricas. Ainda que sejam revistos os lances que levaram Nabuco ao posto de líder da causa abolicionista e Eufrásia à condição de uma das maiores investidoras de seu tempo, capaz até de prever e escapar do crash de 1929, Claudia centra sua narrativa nos sentimentos mais profundos que ambos têm, na impossibilidade de seu amor se tornar realidade e na dura realidade de saber que esse amor, a cada dia, fica menos possível de ser vivido.
Toda a família de Eufrásia é composta de personagens sensacionais. O pai de Eufrásia, Joaquim Teixeira Leite, antecipou-se ao fim da escravatura e da conseqüente carência de mão-de-obra para se tornar um financista e um investidor. Ana Esméria, a mãe, ainda que amando Joaquim, gostaria que ele pudesse ser um pouco mais flexível em relação às suas regras para ver suas filhas casarem. Quando ele julga que nenhum homem tem condições de casar com suas filhas, ela adoece e acaba por falecer. Francisca, a irmã de Eufrásia, tem uma deformidade física fruto de um acidente no início da adolescência que a condenará a nunca se casar, seja pela deformidade resultante seja pela incapacidade de ter filhos. São esses personagens que moldarão os passos de Eufrásia ao longo de sua vida.
De dentro para fora
Claudia Lage poderia se perder em detalhes históricos, em análises sociológicas sobre as condições do matrimônio daquela época, da falta de liberdade das mulheres, do quadro político nacional e da decadência da família imperial brasileira e mostrar como os personagens reagem a esses estímulos internos, pois a impressão que se tem é de que a autora fez uma extensa e profunda pesquisa a respeito da vida das personagens principais e da época em que viveram, em especial o período que vai de 1870 ao fim do século 19. Ao optar por contar a história de dentro para fora, ou seja, do coração de Eufrásia para o mundo, percebemos que há mais para ser contado que o desfilar de datas e fatos.
Pelas palavras de Claudia, revivemos a sucessão de dissabores contra os quais Eufrásia pouco pode fazer e nós só podemos lamentar. Eufrásia pode tentar mudar a mentalidade de um homem profundamente ligado e amarrado a seu tempo, mas não consegue. Ela pode querer fazer a irmã encarar a vida de uma maneira diferente, mas não tem sucesso. Ela até consegue ter relações íntimas com Nabuco antes do casamento, algo que só às profissionais era permitido, mas não consegue evitar a maledicência de toda uma sociedade conservadora na aparência. Mergulhamos dessa maneira na essência da personalidade de Eufrásia para conhecer uma personagem fascinante de nossa história. Assim, na sucessão de pequenas e grandes perdas, a autora constrói um mosaico em que a grande história é apenas coadjuvante, importante mas não decisiva.
A autora opta também por não seguir uma linha cronológica em sua narrativa, permitindo-se dar saltos para frente e para trás para contar os fatos. Ainda que saibamos de antemão o que aconteceu com Joaquim Nabuco (se formos curiosos o suficiente e formos pesquisar), queremos saber exatamente por que eles não se casaram, já que se amavam tanto. Queremos saber por que Eufrásia abandona o Brasil para viver na França. Queremos saber se a irmã se emenda ou desaparece de alguma maneira trágica. Queremos saber o destino da fortuna de Eufrásia, que desde o momento em que passa a ser gerenciada por ela só aumenta de tamanho. Há tantos quereres que, como Eufrásia, ficaremos com alguns pendentes para serem resolvidos depois.
E, como se fosse uma fábula, a autora consegue colocar no meio de sua narrativa um mistério da vida real, que graças ao seu trabalho deixa de ser tão misterioso. Dadas as enormes distâncias que se estabeleceram entre Eufrásia e Nabuco ao longo da vida, a troca de cartas entre eles foi intensa. Mas Eufrásia não queria deixar suas cartas para que outras pessoas as lessem, e pede que elas sejam enterradas junto com ela. Em uma cena muito bela, a mucama Cecília, fiel companheira de Eufrásia, dá um fim às cartas de maneira inusitada e reverencial. Porém, como as cartas de Eufrásia para Nabuco foram conservadas no acervo deste, a autora recria em sua imaginação algumas das cartas de Nabuco para Eufrásia. É a literatura a serviço de uma recriação da realidade para nos aproximar da vida que temos.