“Joel não é um historiador, ele é um literato”, conta Wilson do Nascimento Barbosa, no podcast Filosofia Pop. Eram críticas de colegas historiadores, incomodados com a irreverência de Joel Rufino dos Santos. Historiador, professor, escritor e intelectual engajado, Joel Rufino é referência no campo da literatura afro-brasileira e infantojuvenil. Já a fortuna crítica de sua obra como romancista é mais escassa.
“Eu queria ser escritor desde cedo, desde que me alfabetizei”, diz Joel em entrevista a Bia Corrêa do Lago. “O tempo rolou, eu tentei outras profissões… e afinal me rendi à literatura já adulto.” Tentar outras profissões é um resumo modesto dos primeiros quarenta anos da vida de Joel Rufino — da curiosidade intelectual, aos planos de ascensão de uma família operária, sua trajetória transforma-se em aventura de estudo, amizades, perseguição política, prisões, mudanças de cidade e país. Na década de 1970, durante a ditadura, começou a escrever contos infantis para a revista Recreio. “A pessoa pode se tornar autor de livro e de contos por várias razões. Eu me tornei autor infantil por necessidade… Não estava no meu projeto, não era isso que eu pretendia escrever, mas eles pagavam, creio que hoje seria uns trezentos reais”, ele conta, ainda a Bia Corrêa. Quando afinal se estabiliza como professor, reintegrado à universidade depois da anistia, Joel Rufino escolhe ensinar literatura, na UFRJ.
Seu primeiro romance, Crônica de indomáveis delírios, é publicado pela Rocco em 1991. Passam-se mais de quinze anos — de artigos analíticos marcantes, livros de não-ficção e infantojuvenis — até que o trabalho como romancista é retomado com intensidade, ao final da primeira década dos anos 2000. A época coincide com sua aposentadoria da universidade, experiência reunida no conjunto de ensaios Quem ama literatura não estuda literatura (Rocco, 2008).
O longo hiato de quase vinte anos entre o primeiro romance e os seguintes, Bichos da terra tão pequenos (2010) e Claros sussurros de celestes ventos (2012), poderia explicar sua ausência das sínteses da produção nacional que se apresentaram em 2009 e 2012, por Karl Schollhammer e Regina Dalcastagnè, respectivamente. É agora, enfim, com a publicação de seus últimos originais, que se poderá fazer uma apreciação completa do trabalho de Joel Rufino como romancista.
Projeto literário
Joel Rufino dos Santos faleceu em setembro de 2015. Em agosto de 2023, a Pallas lança duas obras literárias que deixou inéditas: O rio das almas flutuantes e O amor e o nada. As edições trazem poucas informações sobre a recuperação dos originais. O autor os considerava prontos para edição? Que critérios foram usados na preparação do texto? Nei Lopes conta, no prefácio a O rio das almas flutuantes, que a ideia do livro teria nascido de uma viagem a Cachoeira, Bahia, em 2011. Já Rogério Athayde, no posfácio a O amor e o nada, sugere que o romance é o “samba de despedida” do autor. Seria interessante saber mais do contexto, e do projeto editorial de lançamento das obras.
A recuperação de leituras das obras anteriores de Joel Rufino é importante para que possamos rever seu projeto literário. Já no lançamento do primeiro romance, Crônica de indomáveis delírios, em 1991, Moacir Werneck de Castro faz observações precisas, no Jornal do Brasil. A narrativa em ritmo febril, a mistura criativa de figuras históricas e fictícias, e o humor — “toda uma atmosfera de época, entremeada de anacronismos gostosos”. Werneck de Castro relaciona, com perspicácia, o projeto literário de Joel Rufino à sua participação no grupo História Nova, na década de 1960. Ideia de recontar a história do Brasil, encontrando um novo ponto de vista, mudando a ênfase dos eventos. Crônica de indomáveis delírios, como amadurecimento dessa postura, “apresenta uma versão original das revoluções brasileiras fracassadas”, para pensar o Brasil “com um instrumental novo: a arte do romance”, segundo Werneck de Castro.
Em 2013, ao resenhar Claros sussurros de celestes ventos para o Rascunho, Luiz Horácio também destaca o mergulho inventivo e irreverente na história (nesse caso, em nossa história literária): “você estará frente ao fantástico, ao inverossímil e, por vezes, ao virar uma esquina/página, esbarrará num fato histórico”. A continuidade entre os romances de Rufino é marcada em certos pontos de referência. Em Claros sussurros, que recria a infância de Cruz e Sousa, um professor do liceu em Desterro entrega ao menino “manuscritos, que tivera preguiça de ler”. A descrição dos manuscritos revela os textos que são, justamente, as narrativas de Crônica de indomáveis delírios.
Entre O rio das almas flutuantes e O amor e o nada encontra-se recurso semelhante. Na abertura de O rio das almas discorre-se liricamente sobre as “almas dos existentes” criadas pelo Inexistente. A terceira dessas almas — a sombra — é a alma de Adelino, o Sinistro, “cujo sofrer interminável se contará um dia”. E, pois, o sinistro Adelino é um dos personagens marcantes de O amor e o nada.
O rio das almas flutuantes
Se tomamos a produção da maturidade como medida da força de um autor, O rio das almas flutuantes é o livro que confirma a importância de Joel Rufino na literatura brasileira contemporânea. A obra, breve e densa, recria a cidade de Cachoeira, na Bahia, na segunda metade do século 19, quando se construía a ponte de ferro inglês. Nessa recriação subversiva, a ponte é recebida como doação de uma autoridade do império otomano, o bei Umar Rashid, governador da província do Egito. A vinda ao Recôncavo do bei e de seu ministro (o “potenciário” sem nome próprio) compõe o primeiro capítulo, O rio que imitou o Nilo.
Os capítulos se estruturam de forma quase independente, como contos — as múltiplas histórias, entretanto, se somam numa narrativa armada em saltos imaginativos. A cada passo, uma surpresa. O conjunto ganhará sentido na trajetória de um personagem de vida extraordinária e acidentada, Ibn Khaldun Samíris, o egípcio errante.
Seu nome homenageia Ibn Khaldun — intelectual árabe, da península ibérica sob domínio islâmico. “Educado em colégio inglês, falava o árabe do pai e o francês da mãe” — Samíris, o personagem, inicia a vida encaminhado à vida intelectual, porém será atropelado pela história. Influenciado por um professor de geografia que lhe contou do romance do imperador Adriano com o jovem Antínoo, Samíris vai estudar em Roma. Lá encontra outro professor, Giusti, que lhe fala do Brasil. Nessa fase formadora da juventude, a sintonia intelectual com os professores é uma forma de amor — “algumas vezes se deitaram em dois com amantes”. Samíris perde o pai, morre o professor; o jovem egípcio envolve-se em uma conspiração nacionalista e é condenado; foge, e nos violentos acasos dessa fuga, acaba exilado na Bahia, onde, depois de outras peripécias, se aquieta num cansaço espiritual, temendo a eternidade. “Pequena alma terna flutuante”, é o que era. A expressão vem da primeira linha do famoso poema atribuído ao imperador Adriano. Próximo da morte, seus versos perguntam: pequena alma terna e errante, companheira de meu corpo, aonde irá agora?
No aspecto temático, encontramos na obra as constantes do pensamento de Joel Rufino: a alternativa ao eurocentrismo; o boi, ou touro, simbolizando o ciclo da vida; a vida universitária e literária; a irreverência a leis e governos em suas falsas verdades.
A linguagem se mostra limpa e madura, e o uso de palavras já meio esquecidas em nosso tempo, que compõem o tom de época, atinge um equilíbrio belo, sem se tornar opaco. Nota-se a maturidade da prosa, por exemplo, se comparamos o texto a certas frases da Crônica de indomáveis delírios, de 1991:
Foram aqueles pretos o inimigo portas adentro, não por um ano mas por cem, em conúbio com as brenhas, em concerto com as penedias, não digo livres, que a liberdade não se tem na inconsciência do viver natural.
A frase, do primeiro romance do autor, refere-se aos palmarinos, no século 17, vivendo entre as matas e rochedos. A construção e o vocabulário caudaloso são admiráveis — e, ainda assim, requerem extrema atenção (e, possivelmente, um dicionário), para sua compreensão plena.
Já O rio das almas flutuantes se narra de forma mais sintética. As páginas iniciais vão diretamente à ação, sem a eloquência que constrói o narrador, nem as linhas descritivas, como nas obras anteriores:
Na metade do século 19, quando o Egito ainda era uma província turca, o bei Umar Rashid se meteu numa encrenca.
Os eventos se apresentam com a segurança de uma contação de histórias; os diálogos, ágeis nas réplicas, remetem à comédia teatral. E os momentos poéticos da prosa se inserem com equilíbrio, ao longo da narrativa, permitindo uma leitura fluida, ao mesmo tempo que se apreciam o estilo e a beleza das palavras escolhidas.
Aventura e melancolia; a riqueza violenta da experiência humana; a angústia da morte; a sabedoria. Se existe um segredo no Paraguaçu, o pequeno rio que imita o Nilo, podemos buscá-lo no lugar onde Samíris por um breve tempo encontrou a paz:
Subiu o rio, ocupou um sítio abandonado na banda esquerda, a montante da velha ponte, uma tapera afogada por um bananal, de que restara um cão preto de meia idade, cara de chacal.
O amor e o nada
O “samba de despedida” de Joel Rufino é situado na história recente: o personagem central, Luís Viegas, de família rica do Rio de Janeiro (que “nunca duvidou de ter direito ao lugar que lhe fora reservado na sociedade”), começa a estudar na Faculdade Nacional de Filosofia, no início da década de 1960. Na primeira aula do curso de História, apaixona-se à primeira vista por Júlia:
Pobre, sem dúvida, só o corpo era capaz de embelezar a calça jeans batida, as blusas da Mesbla, os sapatos gastos, nenhuma joia.
A fascinação pela colega, que não cede à corte, o leva a conhecer uma cidade que ignorava — o subúrbio, os bares de samba — assim como o envolve na luta política. Como em outras obras de Rufino, a linha narrativa central é entrecortada pelas histórias de variados personagens (Gladys, o Sinistro, Iranildo, Berenice), que vão conduzindo o enredo como uma corrida de revezamento. A trajetória de Luís Viegas e Júlia segue até a maturidade de ambos, entre aproximações e distanciamentos, até que, cada um a seu canto, deparam-se cada um com sua morte, por doença ou alegoria. A figura de Júlia é intrigante e admirável:
Júlia amanhecia em paz e, enquanto ele ia à padaria, entrava num sono desassombrado de mulher que sabe ter um homem. Não amava, só era feliz.
A obra tem seus momentos mais fortes na vida universitária, até o golpe de 1964. Nos anos de agitação e liberdade, encontramos os tipos clássicos da faculdade (o Sinistro, o Matusalém), os professores e suas peculiaridades, as festas, as músicas, as transas. O capítulo que narra o dia do golpe, pela moldura das personagens Ledo e Nadir, é construído de forma hábil e original.
Rogério Athayde destaca, no posfácio, o efeito comovente do relato: o “detalhe de quem viveu sem invenção, cada pequeno incidente, lugar e pessoa”. Cecília Coimbra, no prefácio, também ressalta no romance a história de uma geração, a “Geração Filosofia”.
Por outro lado, há algo no texto que remete ao inacabado. Os capítulos finais, por exemplo, trazem recursos discursivos que destoam do conjunto: o aparecimento de um “autor da história”, ao leito de morte do protagonista, na forma de um cilindro de hidrogênio; o afundamento fantástico de uma ilha. Além da quebra de estilo, essas últimas páginas também parecem se prologar demais, passando a sensação de que o livro poderia ter se encerrado antes. Esse efeito talvez se deva ao aspecto póstumo da edição — e, aqui, seria útil uma apresentação editorial do volume, como já comentado. Ainda assim — mesmo na perspectiva de um original sem polimento — é uma leitura que flui com riqueza, e amplia a compreensão do universo do autor.
Nelson Cavaquinho é um ponto de referência das personagens, e versos do samba Quando eu me chamar saudade são citados algumas vezes. Porém, a estrofe que o livro não menciona, é a que traz alguma melancolia ao final desta resenha. Diz o samba: “Depois que o tempo passar/ sei que ninguém vai se lembrar/ que eu fui embora… Por isso é que eu penso assim/ se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora”.
Joel Rufino dos Santos foi reconhecido como merecia, como romancista, durante sua vida? Autor de vida plena, ele gerou raízes e sementes. Resta agora, para nós leitores, recuperar a beleza que deixou em seu projeto literário.