Não nos damos conta do quanto nossa vida é cercada de sonoplastia e marcada pela música. Walter Pater já dizia que toda arte aspira à condição da música, e Jorge Luis Borges complementa essa idéia dizendo que melodia “é um modelo de sons e pausas que se desdobram no tempo”, uma espécie de idioma que usamos, lemos, ouvimos, mas que é impossível traduzir.
Nem todos possuem sensibilidade auditiva apurada para perceber o quanto sons e músicas nos cercam, que podem nos levar do enlevo à loucura e sobretudo o quanto podem inspirar ou refrear freqüências mentais adequadas.
Tente se exercitar ao som de Chopin, ou escrever ao som de Black Eyed Peas. Tente falar ouvindo uma campainha, ou dormir com um pingo irritante numa bacia de inox. Não dá. Simplesmente impossível.
A poesia geralmente usa recursos de melodia e música, mas a prosa não ousa tanto. É aí que entra a genialidade de Kazuo Ishiguro em seu precioso Noturnos — Histórias de música e anoitecer.
O autor se inspirou nos antigos “noturnos” — músicas clássicas que reproduzem estados de espírito únicos e extremamente líricos — e pretendeu tecer histórias que se assemelhassem a esse gênero de composições musicais que evocam ou são inspiradas pela noite, e que, pelo mesmo motivo, devem ser executadas nesse período do dia.
A noite, assim, seria capaz de trazer para a narrativa toda a sua carga de beleza, melancolia, silêncio e romantismo, iluminada, quem sabe, por uma lua cheia. Mas poderia trazer também outras leituras e sensações, como o sombrio, o escuro, o desamparo, a morte, e tudo aquilo de assustador que se esconde por trás das madrugadas mais solitárias. Talvez por isso tenha aceitado o convite velado de ler Ishiguro quando a noite vai alta.
Mas o autor surpreende de diversas outras formas o seu leitor. Como um exímio prestidigitador, não oferece apenas um truque para a platéia. Aliás, não foi à toa que levou o Man Booker Prize em 1989 por Os resíduos do dia, livro transformado em um belo longa-metragem.
Antes de tudo, é preciso dizer que há certo estranhamento ao se esperar um livro que retrate uma atmosfera oriental, e encontrar os personagens transitando entre Veneza, Londres e Berverly Hills. Na verdade, Kazuo é um japonês de Nagasaki que foi criado desde os seis anos em Londres. De certa forma, isso explica a condição dos personagens — quase sempre deslocados de sua pátria, transitando entre os países da Europa —, a música clássica como escolha profissional de vários deles e a atmosfera extremamente competitiva.
Em primeiro lugar, Noturnos é um livro de contos bastante atípico, pois reúne apenas cinco textos em suas 210 páginas — contrariando toda aquela teoria básica do conto como literatura breve (de até dez laudas) — e assegura que sair da tradicional receita de bolo pode render belíssimas narrativas, sem que tenhamos de recorrer ao formato batido do romance ou da novela, com início-meio-fim.
Depois, o livro entremeia os contos. Não tanto que eles possam ser lidos como um romance fragmentado, mas o suficiente para que algumas histórias se encostem de leve. Uma personagem de um conto passeia por outros espaços, por outras histórias, permitindo a breve reflexão de que a vida também é feita dessas pequenas coincidências, dessas histórias entrelaçadas.
À primeira vista, fazê-lo parece fácil. Lendo o livro, então, parece moleza. Mas é dificílimo. E é aí que reside toda a genialidade de Ishiguro. Geralmente, contos são histórias estanques. São inspirados em personagens específicos, em reflexões isoladas, e normalmente não encontram paralelo. Isso sugere, portanto, que as coincidências possam ter sido criadas desde o início, numa fase que equivaleria a um “projeto arquitetônico” do livro, para que nada ficasse gratuito, para que nenhum conto estivesse perdido.
De fato, houve quem apontasse que o livro é fácil de esquecer. Compreensível, esse sentimento. Afinal, trata-se de uma narrativa suave, delicada, melancólica: se tivermos sorte, veremos passar mais de 29 mil noites — e de quantas delas nos lembraremos? Noturnos tampouco traz um arroubo, uma história miserável ou assustadora, mas sim algumas reflexões para uma época em que tudo está virado do avesso, quando um amor profundo pode ser inconveniente para o showbiz, quando um músico precisa correr para as montanhas para tocar suas composições.
Um terceiro ponto, no entanto, poderia ter sido mais bem executado: no início do livro ficou clara a possibilidade de criação de uma playlist específica, e, aceitando as sugestões do autor e de seu personagem mais perturbador — o crooner Tony Gardner —, é possível correr atrás de pérolas de Chet Baker, Ella Fitzgerald, Cole Porter, Ray Charles, Sarah Vaughan, Abba, entre outros — todos no Youtube. Infelizmente, o autor não dá continuidade a essa empreitada e deixa de lado a bela oportunidade de propiciar ao leitor a montagem de uma coletânea de noturnos-contemporâneos ou uma playlist para a leitura do livro.
Luz que se esvai
Nos cinco contos, os personagens vêem o anoitecer de suas vidas em condições inusitadas: numa serenata em Veneza, comemorando o fim de um casamento no qual o amor não acabou; na visita de um amigo fracassado servindo para re-aquecer um casamento em crise; no reencontro de um músico medíocre com sua antiga e ranzinza professora; na cirurgia estética facial de um saxofonista como último recurso ao estrelato; e no encontro de uma virtuose que não toca instrumentos com um jovem músico da Piazza San Marco.
Como em toda música, não basta ter idéias, tal qual a arquitetura requintada que Ishiguro desenhou para seu livro: é preciso executá-las bem, com expertise, com horas e horas de treino, com motivo e sentimento, sem descuidar de seus compassos, andamentos e pausas.
Voltamos a Borges, a suas inestimáveis lições de Esse ofício do verso, no qual ele relembra todo o seu assombro ao descobrir que a linguagem não é só um modo de dizer coisas, de externar queixas, relatar fatos, mas descobre que “a linguagem podia ser também música e paixão”.
Além desses ingredientes, em boas histórias, o bom escritor é aquele que sabe ser fiel à sua imaginação, escrevendo-a porque acredita nela, da mesma forma como acredita num sonho ou numa idéia. Nesse caso, Ishiguro sabe usar essa ferramenta, a verdade, a ponto de provocar diversos sentimentos no leitor.
De fato, em todas as histórias sobreleva a verdade: a verdade da vida que se impõe aos ideais tão superlativos da juventude, da temperança que se impõe aos excessos despropositados da vida glamurizada, a verdade que certamente enfrentaremos quando não houver mais tanta luz para guiar-nos o caminho — ou quando não formos mais tão hábeis em ver, planejar e criar futuros.
“Lembra que o plano era ficarmos bem”, dizia Renato Russo. Ishiguro também fala de expectativa, de promessa, de uma luz que se esvai aos poucos, delicada, melancólica, suavemente.
Seus noturnos não poderiam ser mais harmônicos, e é necessário silenciar para poder ouvi-los bem, sem ruído. Sobretudo quando o mundo anoitece.