Leia Michel Houellebecq. E, por favor, mande às favas os suplementos literários que provavelmente, quando do lançamento de Plataforme, pela editora Record, chamará o autor de novo Salman Rushdie. Houellebecq passa muito, mas muito longe da narrativa de Rushdie, barroca e cheia de realismo fantástico; concentra-se, o autor francês, numa linguagem limpa, concisa, de uma ironia fina como há muito não se lê, com frases cortantes. Você verá: vão falar que os dois nutrem o mesmo ódio ao Islã, mas isso é de uma besteira sem tamanho. Rushdie foi condenado à morte pelos aiatolás do Irã por um detalhe insignificante em seu Os versos satânicos. Já Houellebecq é taxativo e diz que o Islã é uma religião estúpida.
Este ódio pelos mulçumanos, em Houellebecq, tem uma origem pessoal: a mãe do autor se matou logo depois de se converter ao islamismo. Estes detalhes, porém, convém deixar para os livrinhos de fofoca.
Plataforme, o mais recente romance do autor, promete ser um dos grandes lançamentos de 2002. Não será, contudo, o único livro de Michel Houellebecq a chegar às livrarias brasileiras neste ano. A pequena editora Sulina, de Porto Alegre, que comprou, antes da fama de Houellebecq, os direitos de publicá-lo no Brasil, lançará a primeira obra do autor, Extensão do domínio da luta. Sobre Plataforme falo noutra oportunidade, assim que o romance for lançado cá nestas terras de palmeiras e sabiás. Agora, é necessário concentrar-se no tédio.
O tédio foi descrito como o mal do século 19. Dele sofriam poetas como Byron. Este tédio era comumente curado com uma boa noite de orgia, bebedeira e sífilis. Cada época tem seu rótulo e à modorrenta segunda metade do século 20 coube a alcunha de ser o século da depressão. Prozacs e Zolofts se empilharam nas prateleiras das farmácias, prometendo a felicidade. O tédio, contudo, continuou lá, perseverando. E Houellebecq nos prova, por a + b, que o filho da mãe, em conluio com a promiscuidade, venceu.
Não é a primeira vez. Ele já fez isso no primeiro livro editado no Brasil, Partículas elementares (Editora Sulina), infelizmente pouco lido. Neste romance, contava a história de dois meio-irmãos com destinos antagônicos: um era um cientista, considerado um novo Salvador; o outro era uma destas ovelhas desgarradas da sociedade, um típico filho da Revolução Sexual. Enquanto o primeiro debruça-se sobre tubos de ensaio, a fim de descobrir a cura dos males do Homem, o segundo debruça-se sobre mulheres, a fim de libertar-se das amarras do tédio.
Extensão do domínio da luta vai muito mais fundo na questão do tédio. Ele conta a história de um funcionário de uma empresa de informática, um destes técnicos com cara de serial killer em potência, e suas peripécias pelo interior da França. Peripécias, claro, é modo de dizer, porque a vida do incógnito narrador é de uma modorra só. Conhece mulheres que ou não são atraentes ou são burras demais para se tornarem inesquecíveis. Seus companheiros de trabalho são tão infelizes quanto ele, mas enganam-se dia após dia, imersos em suas profissõezinhas ridiculamente desimportantes. Em suma, para o narrador e seu tédio crônico não há saída.
Uma lida logo no primeiro parágrafo do livro dá uma idéia ao leitor da virulência e do humor negro (negríssimo, um breu) com que Houellebecq escreve:
“Na sexta-feira à noite, fui convidado para uma festa na casa de um colega de trabalho. Éramos uns trinta. Somente quadros de nível médio, entre 25 e 40 anos de idade. Em certo momento, uma abobada começou a despir-se. Tirou a camiseta, depois o sutiã, a saia, sempre fazendo volteios inacreditáveis. Ainda girou só de calcinha durante alguns segundos. Enfim, não vendo mais o que fazer, decidiu recobrir-se. De resto, é uma garota que não trepa com ninguém, o que só mostra o absurdo de seu comportamento.”
Assim são as situações todas descritas no livro: aparentemente caminham em direção ao lugar-comum, ao clímax das subliteraturas, mas, uma vez próximo do topo, Houellebecq as traz de volta à realidade, sugando-lhe todo o possível glamour. Em suma, tornando cada segundo da existência de um tédio mortal.
Aliás, se a vida enfadonha do narrador não atrair sua atenção como leitor deste exímio escritor — dono de um senso de humor único, absolutamente afiado —, convém deter-se na vida de seu companheiro de trabalho, o pobre Tisserand. A descrição física dele não é lá muito exata, mas pode-se, sem muito esforço, imaginá-lo como um homem careca, gordo, míope, que usa camisas de mangas curtas e gravatas com desenhos do Pato Donald. É extremamente competente no trabalho e exibe um ou dois diplomas na parede. Ganha bem, mas apesar disso insiste em morar com os pais. Com os poucos amigos que tem, não envereda por outro assunto que não o sexo. Seu único mote de vida são as estripulias sexuais. Vangloria-se de uma noite com uma, outra com outra. Deseja meninas impúberes com naturalidade. E eis que nos surpreendemos, quando ele bebe demais e resolve tornar-se simplesmente humano, com a terrível verdade: trata-se somente de Tisserand, 28 anos, a fantasia das agências de publicidade em pessoa. E virgem.
O sexo, aliás, é personagem importantíssimo neste. Assim com em Partículas elementares, o sexo é para Houellebecq muito mais do que amor, como querem os ingênuos; é um elemento quase que marxista. Esta, aliás, é a teoria central deste livro. Nas palavras de Houellebecq, “A sexualidade é um sistema de hierarquia social”.
O recado de Houellebecq é claro: nestes tempos em que é milionário quem transa todas as noites com uma conquista diferente, a vida não vale porra nenhuma.