Qualidade não tem idade

Os equívocos de relegar as obras infanto-juvenis ao segundo escalão da literatura
Ilustrção: Tereza Yamashita
01/03/2006

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No nosso planeta há idiotas de muitos formatos, cores e sabores, disso ninguém tem dúvida, pois basta sair à rua, abrir o jornal ou ligar a tevê para pegar o infindável desfile de imbecis, sem início nem fim, sempre aí para quem quiser embarcar. O enfartado Sérgio Porto, sob a capa satírica de Stanislaw Ponte Preta (capa emprestada do romance Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade), deixou sobre o assunto três livros contendo farto material tirado do imenso Febeapá: Festival de Besteira que Assola o País. Não tivesse morrido em 1968 e teríamos hoje dezenas de volumes registrando as facetas mais contemporâneas desse festival.

É claro que, mesmo que você se julgue alguém inteligente e refinado, não é nada recomendável sair por aí atirando pedra nos pobres de espírito e nos parvos de pai e mãe, principalmente nos que com muito esforço conseguiram o tão sonhado diploma universitário. Não faça isso ainda que a tentação seja forte, porque cedo ou tarde é bem provável que também você, vítima da soberba, acabe com sua refinada cabeça rachada a pedradas, simplesmente por ter esquecido o óbvio: o primeiro paralelepípedo só pode ser atirado por quem jamais pecou, não por mim nem por você. Até aí, tudo bem. Melhor pecar a torto e a direito do que se manter puro só para depois atirar pedra nos outros. Mas, pedras e pecados à parte, voltemos aos imbecis, ou melhor, à categoria de imbecil que mais tem me incomodado no momento: a dos que acham que a literatura infanto-juvenil não vale tanto quanto a sua companheira adulta.

Para esses inocentes a literatura produzida para as crianças e os jovens só poderia mesmo ser menos sofisticada e desafiadora, uma vez que o público à qual ela se destina não tem a sensibilidade e o traquejo do leitor maduro e escolado. Eles esquecem que toda grande obra tem seu mérito na perfeita adequação entre a matéria literária — as idéias e os valores que lhe servem de húmus — e os limites impostos pelo autor e pela época em que ambos, obra e autor, foram gerados. O valor de qualquer romance canonizado, de Dom Casmurro a Grande sertão: veredas, só pôde ser determinado após o resultado literário ter sido confrontado com as normas impostas pelo próprio autor e pelas suas contingências.

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O autor estabelece limites e em seguida joga com eles, subvertendo, expandindo, tirando partido da liberdade que a camisa-de-força (as regras) sempre proporciona. Nelly Novaes Coelho, no seu Panorama histórico da literatura infantil e juvenil, lembra que “o valor literário de cada obra não se mede por sua inserção nessa ou naquela corrente ou tendência, mas pela consciência literária revelada pela matéria trabalhada, pelo corpo verbal e também pela adequação dessa matéria às forças renovadoras mais atuantes no momento de sua produção”. Quem em sã consciência compararia alhos com bugalhos? Quem afirmaria que a poesia é superior à prosa, que o romance é superior ao conto, que a música é superior à pintura? Relacionar nesses termos a literatura produzida para o público adulto com a produzida para o público infantil e juvenil, procurando a supremacia seja de qual for, é pura tolice. Não se comparam gêneros, mas obras específicas dentro de cada gênero.

O talento de todo grande autor não está em recusar as regras demasiado rígidas. Está em recusar as regras demasiado tolas ou demagógicas. Durante muito tempo o que se viu na literatura destinada às crianças e aos jovens foram livros anódinos escritos por autores massacrados por normas castradoras. Livros puritanos, livros moralizantes, livros edificantes: livros sob a tutela da pedagogia e das instituições de ensino. Os parvos que ainda hoje acham que a literatura infanto-juvenil não vale tanto quanto a sua companheira adulta têm em mente esse modelo arcaico de livro infanto-juvenil. Modelo que, no Brasil da década de 20, se não foi posto totalmente abaixo a golpes de inteligência e humor por Monteiro Lobato, ao menos teve de dividir o palco com o novo paradigma.

Graças a Lobato, a avenida estava aberta e pavimentada. Mas foi só na década de 70 que a explosão criativa iluminou nosso cenário. Nelly, no já citado Panorama histórico, lembra que nessa época surgiram dezenas de escritores cuja palavra de ordem era experimentação. Com a linguagem, com a estrutura narrativa, com os sons e as imagens: experimentação. A literatura confiante e segura de si mesma foi substituída pela literatura irrequieta e questionadora dos valores estabelecidos. Já não havia mais o velho ideal de literatura infanto-juvenil. Falo do ideal de pureza, absoluto e tacanho. As narrativas foram contaminadas pelas artes gráficas, pelos quadrinhos, pela tevê e pelo cinema. Adeus mundo artificial, em que o bem sempre vence e os heróis são nobres e corajosos. Se a vida era perigosa e inquietante, a literatura agora também tinha de ser.

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Inquietante, aliás, é o adjetivo que melhor define a obra, por exemplo, de Lygia Bojunga, cujos livros já foram traduzidos para vários idiomas: francês, alemão, espanhol, norueguês, sueco, hebraico, italiano, búlgaro, checo, islandês e outros. Lygia é uma das maiores escritoras brasileiras em atividade. Seus livros incomodam, encantam, assustam. Ela, como Carlo Collodi e Lewis Carroll, parece que escreve para crianças e jovens, mas na verdade escreve para a espécie humana. Eu não tinha doze anos quando li pela primeira vez A bolsa amarela e Seis vezes Lucas. Eu tinha trinta e dois. Foi uma revelação, uma epifania. Lygia dissolve as fronteiras entre o real e o imaginário e sua literatura está sempre queimando os rótulos empobrecedores. Para ela qualidade não tem idade: infantil, juvenil, adulto? É tudo a mesma coisa, não existe diferença.

Rótulos? Não há rótulo que dê conta de uma narrativa tão lírica e perturbadora como O abraço, publicada em 1995. Ao mesmo tempo mágico e assustador, esse livro trata da delicada questão do abuso sexual de crianças. Nada mais distante do modelo ultrapassado de literatura infanto-juvenil, que décadas atrás exigia do autor que evitasse os temas controvertidos e só trabalhasse com os tons aconchegantes e moralistas. Os livros de Lygia Bojunga misturam fantasia, miséria, ilusão, euforia, crime, desamparo, amor, egoísmo, ciúme, amizade e medo sem jamais pouparem o leitor. Isso normalmente lança os autores para a margem do sistema literário. Lidar com as fobias e os tabus de uma sociedade é sempre o melhor caminho para a rejeição pública. Até mesmo Monteiro Lobato era severamente criticado quando levava as polêmicas políticas e ideológicas ao Sítio do Picapau Amarelo. Mas no caso da Lygia que foi que aconteceu? Exatamente o contrário! Ela recebeu o reconhecimento internacional e os maiores prêmios literários. Isso prova que o raio da lucidez às vezes atinge as cabeças certas.

As grandes obras literárias são feitas de diversas camadas de sentido que, independentemente da vontade do autor, vão mudando ao longo do tempo. Raramente o leitor, mesmo o leitor mais experiente, consegue esgotar na primeira leitura todas as camadas de sentido. Se isso fosse possível os professores e os críticos literários ficariam obsoletos e seriam demitidos no dia seguinte. Dante e Camões não são lidos hoje como foram no seu tempo. A razão de ser de sua obra mudou junto com o mundo, novas camadas de sentido foram aparecendo ao logo dos séculos. O mesmo acontece com os livros da Lygia e de outros autores excepcionais (Sylvia Orthof e Ana Maria Machado, por exemplo). Neles há certos sentidos que passam batidos pela inteligência infantil e só irão atingi-la lá na frente, na maturidade. Daí a riqueza inesgotável dessa literatura.

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A explosão da década de 70 continua dando novos frutos. Tenho lido muitos livros de sabor infantil ou juvenil, escritos por jovens autores, que não deixam nada a desejar se comparados aos livros das três veteranas citadas: Saga animal, de Índigo, Treze noites de terror, de Luiz Roberto Guedes, Creuza em crise, de Silvana Tavano, Em cima da hora, de Roger Melo, Garoto em parafuso, de Samir Thomaz, Cabeça de garota, de Maria José Silveira, Elas, de Ivana Arruda Leite e João Anzanello Carrascoza, e Quermesse maluca, de Henrique Félix.

A situação fica melhor, e mais embaralhada, quando entramos no terreno da aventura e da ficção científica. Romances como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Stalker, dos irmãos Arkadi e Boris Strugatski, e Neuromancer, de William Gibson, não foram escritos especificamente para o jovem leitor, mas logo caíram no gosto principalmente da molecada. O mesmo aconteceu com O senhor dos anéis e tantos outros cartapácios. Não são obras tão elaboradas quanto as de Faulkner ou Lobo Antunes, autores que sempre fizeram literatura para gente grande. Falo de gente grande no pleno sentido da expressão: leitores intelectualmente maduros em busca de algo mais sofisticado do que o romance oitocentista, maçante e afetado, produzido à baciada ainda nos dias de hoje… Repetindo: não são obras tão elaboradas quanto as de Faulkner ou Lobo Antunes, mas oferecem a excitação que toda história impactante e muito bem contada costuma proporcionar. Alterando de leve a definição, eu diria que a literatura infanto-juvenil não é a literatura escrita para as crianças e para os jovens, é a literatura lida pelas crianças e pelos jovens. Há diferença nisso aí.

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A literatura infanto-juvenil e o cinema têm feito ótimas parcerias. Livros interessantes, mas meio esquecidos, acabam voltando às livrarias graças às superproduções cinematográficas. Aconteceu com O senhor dos anéis. Está acontecendo com As crônicas de Nárnia. As imagens avassaladoras projetadas na telona tiram o fôlego do espectador, a música envolve e encanta, a fantasia ganha movimento, cores, sons, rostos e cenários. Mas, apesar dessa sedução sonora e visual, nada disso substitui a leitura do livro que deu origem ao filme. O cinema trabalha com a condensação: toda a história tem que caber em poucas horas. Por isso dezenas de pormenores se perdem na adaptação de uma obra literária. Essa é a grande ressalva que os fãs de Harry Potter fazem aos filmes baseados na série: a supressão de muitos dos fascinantes detalhes que há nos livros. Nunca a recomendação “leia o livro e veja o filme, ou vice-versa” fez tanto sentido.

E há também os bônus. Na edição brasileira das Crônicas de Nárnia, o estilo elegante e delicado de C. S. Lewis pode ser conferido também num breve ensaio intitulado Três maneiras de escrever para crianças. Quais são essas maneiras? Segundo o autor, duas são muito boas, mas a terceira é péssima. Concordo com ele. A primeira maneira boa: escreva e leia em voz alta para crianças específicas (seu filho, seu sobrinho, o filho de um amigo) e não para um público abstrato geralmente chamado de público infantil. A segunda maneira boa: não escreva pensando “Quero escrever uma história para crianças”. Deixe que a própria história escolha a forma que melhor lhe agradar, pode ser que ela se sinta melhor na linguagem adulta. Só escreva uma história infantil quando essa for a melhor forma artística de você expressar algo que quer muito dizer. A maneira má: dê ao público infantil (gênero abstrato) o que a maioria das pessoas julga que ele quer, mesmo que você não goste muito do que está escrevendo.

Outra regra de ouro: uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. Há alguma dúvida de que C. S. Lewis sabia do que estava falando?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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