🔓 Qual é a palavra

Em traduções do francês e do inglês, obra poética de Samuel Beckett ganha edição trilíngue à altura de sua experimentação
Ilustração: Samuel Beckett por Fabio Abreu
01/03/2023

A obra do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) chegou precocemente ao Brasil no meio da década de 1950 com Esperando Godot, apenas dois anos após a estreia da peça que causara frisson no Théâtre de Babylone de Paris. O resto é história: seguindo o ritmo global, o Beckett dramaturgo continua marcando presença nos mais diversos palcos do nosso país, de montagens amadoras a grandes espetáculos, de peças filmadas a performances e instalações. Nas primeiras décadas dessa relação, o texto de suas peças ganhava tratamentos variados, muitas vezes já engatilhados para uma determinada concepção de encenação. Não foi senão aos poucos que o leitor brasileiro ganhou versões em sua própria língua de obras que pertencem a uma produção tão rica em gêneros literários e meios artísticos — romances, contos, peças radiofônicas e televisivas, um média-metragem, poesias — quanto extensa, cobrindo nada menos do que seis décadas.

Traduções aqui e acolá de seus romances escritos no imediato pós-guerra — como os importantes Molloy de Léo Schlafman (1988), Malone morre de Paulo Leminski (1986) e O inominável (1989) de Waltensir Dutra — chegavam-nos como uma paradoxal novidade atrasada. A virada do século trouxe uma brusca guinada em nossa relação com o irlandês; a partir de um crescente grupo de especialistas em sua obra, testemunhamos nas duas últimas décadas uma produção tão ampla quanto cuidadosa das traduções de seus textos.

Entre as novas facetas dos Becketts brasileiros que chegaram recentemente, a do Beckett poeta talvez seja a menos conhecida entre nós. As tentativas de reunião de sua obra poética datam de 1961 e arrastam-se pelas décadas em coletâneas e edições que deixaram muito de fora, seja por decisões editoriais, seja pela dificuldade de estabelecimento de textos definitivos. Em 2012, os acadêmicos beckettianos Seán Lawlor e John Pilling organizaram o volume The collected poems of Samuel Beckett (Grove Press), a edição mais completa da produção poética já feita até o presente, complementada por um rico trabalho de contextualização e fornecimento de notas. É nesse volume que o poeta, professor e tradutor Marcos Siscar e a especialista em tradução beckettiana Gabriela Vescovi se basearam para compor o trilíngue (francês, inglês e português) Poesia completa, lançado pela Relicário no ano passado.

O poético
A poesia não apenas inaugura as obras publicadas de Beckett com Whoroscope, datado de 1930, como também a encerra no ano de sua morte, 1989, no par Comment dire e what is the word. Mas isso talvez não passe de mera coincidência ou curiosidade biográfica. O que importa ressaltar é que a poesia aparece infiltrada em quase todos os gêneros nos quais o irlandês exerceu experimentação. Se essa experimentação significa forçar o limite das definições desses gêneros até que os críticos lhes atribuíssem adjetivações como as de antirromance ou antiteatro, um componente constante dessa pressão implosiva está certamente afiliado ao poético. Emprego o poético aqui em seu sentido mais comum, relacionado aos atributos da poesia quando se quer distingui-la da prosa: as ênfases de ritmo, sonoridade, circularidade, repetição e variação sob medida precisa — procedimentos formais que prevalecem sobre o caráter dissertativo e comunicativo da prosa.

Uma outra constante da produção beckettiana em diversos gêneros que também pertenceria ao poético é a criação de imagens por toda sua obra; em outras palavras, a fabricação imagética que não serve à narrativa romanesca ou à ação dramática das peças, que abole progressões de enredo e concatenações de eventos. Esses momentos configuram-se em uma autonomia e completude similares à do poema, e sua intrusão nos gêneros de raiz dramática ou épica opera uma implosão das respectivas formas tradicionais. Um dos grandes interesses em Poesia completa é o de encontrarmos esses elementos poéticos não em um laboratório a serviço do teatro ou do romance, mas em sua terra natal.

Entrar em contato com este arco de seis décadas de produção poética possibilita ao leitor acompanhar as mudanças estéticas da trajetória beckettiana de modo a um só tempo mais condensado e nítido. Os escritos que alçaram Beckett à fama datam do imediato pós-guerra: a peça Esperando Godot (1952) e sua trilogia de romances supracitada foram publicadas entre os anos de 1951 e 1953. Este período marca uma virada que é comumente relacionada a uma estética programática de fracassar, de empobrecimento da linguagem e das possibilidades tradicionais dos gêneros; uma virada à qual se atribui a adjetivação por vezes pouco precisa de minimalista. Para trás, um jovem escritor penando para encontrar sua voz e destacá-la de figuras do alto modernismo, especialmente a de James Joyce, de quem foi secretário e amigo; à frente, um trabalho de concisão e apuração de uma linguagem cada vez mais por um fio, seguindo o programa de uma “literatura da despalavra” conforme elaborado em uma carta alemã de 1937. Há muitos fios soltos nessa demarcação categórica das fases de sua produção — procurarei destacar alguns deles — mas, no todo, ela é certamente a mais adequada à organização geral de uma edição de seus poemas.

Seguindo o arranjo cronológico do volume organizado por Seán Lawlor e John Pilling, Poesia completa apresenta três grandes partes: o Pré-guerra, o Pós-guerra e os Últimos poemas. Na primeira, encontramos o livro Ossos de Eco e outros precipitados (1935), duas seções de poemas esparsos reunidos e mais uma ainda, Poemas 1937-1939. Esta última encerra o que é provavelmente a mudança mais brusca de sua trajetória: são os primeiros poemas escritos em francês, língua com a qual Beckett produzirá quase a totalidade de suas obras no imediato pós-guerra. Uma diferença notável é a redução drástica (por vezes a zero) da dependência de jogos intertextuais em relações ora de paródia, ora de celebração da tradição literária — recurso onipresente nos escritos iniciais.

A parte destinada à produção do pós-guerra inicia-se com dois poemas marcados historicamente — com precisão rara na obra beckettiana — em torno de sua experiência de trabalho na Cruz Vermelha irlandesa em Saint-Lô, comuna francesa da Normandia. Seguem-se poemas que compõem os adendos do romance Watt, escrito durante a Segunda Guerra, e um constante da peça radiofônica Words and music (1962). Essa seção conta ainda com os Seis poemas: três publicados em revista, somados a outros três que contêm dois originais cada — em inglês e francês. O que temos no livro, portanto, são quatro variações: duas de Beckett e duas dos tradutores para o português.

O destaque da seção Últimos poemas é a série gaiteados (mirlitonnades) constituída por dois conjuntos, em francês e inglês, o primeiro datando dos fins dos anos 1970. Como bem explicado em nota, a palavra mirliton refere-se a uma flauta infantil precariamente construída e a expressão “vers de mirliton” designa versos despretensiosos ou ridículos. De extensões mínimas, essas poesias encerram uma condensação do celebrado tragicômico beckettiano em pequeníssimas doses. Os gaietados em inglês, produzidos já na década de 1980, seguem a mesma toada. Exemplificamos com o mais curto deles: “contempla tua bunda e escreve” (sim, fim do poema), em paródia ao verso de um soneto de 1580 escrito por Sir Philip Sidney, “look in thy heart and write” (“contempla teu coração e escreve”). Após uma série de breves epitáfios, o livro conclui com os dois últimos escritos de Beckett, o par Como dizer (Comment dire) e qual é a palavra (what is the word). Compostos brilhantemente por uma gagueira que busca aflitiva e insistentemente encontrar a palavra final, que não vem, não seria exagero dizer que esses poemas sintetizam o trabalho de uma vida toda dedicada à experimentação textual.

Transformação
Um breve passeio pelas notas fornecidas pela edição de Poesia completa nos revela o quanto a obra beckettiana se transformou ao longo dessa extensa trajetória. O jovem Beckett da década de 1930 é marcado por uma erudição precoce casada com a afiliação ao alto modernismo de T. S. Eliot e de James Joyce. Seu poema de estreia, Horoscóputa (Whoroscope), é exemplar de sua produção à época. As notas para esse texto tomam quase duas páginas inteiras não sem motivo: trata-se de um sarcástico e impressionante tour de force poético que amarra discussões científicas, prostituição, astrologia e detalhes obscuros da biografia de René Descartes — tudo girando em torno do idiossincrático gosto do francês por ovos parcialmente chocados.

As traduções desses primeiros poemas enfrentam com precisão e atenção notáveis a complexidade das camadas intertextuais, recriando um Beckett não somente em português, mas muito brasileiro, em termos que enveredam pelos becos locais da língua para encontrar os correspondentes do baixo e do escatológico envelopados pelo humor ácido e crítico do irlandês. A tradutora Gabriela Vescovi comenta o trabalho de verter essa fase beckettiana para o português:

O principal desafio inerente à tradução do primeiro Beckett foi a dificuldade de compreender os poemas e as imagens propostas em sua totalidade, considerando todos os (vários) recursos usados pelo autor e as camadas de leitura possíveis. Como há muitas referências e alusões externas distintas, além de uma seleção lexical complexa, a leitura dos poemas para tradução demandou um trabalho longo e lento, de decodificação também, para que, então, fosse possível começar a pensar o poema em português. O segundo desafio era conseguir recuperar o máximo de recursos possível e (tentar) criar uma malha de significantes tão rica quanto a original em português, sem fugir às imagens poéticas propostas e ao nexo de cada poema, evidentemente.

A seção Poemas 1937-1939 traz uma virada na poética beckettiana. O poema que a inaugura ilustra de modo conciso a notável mudança de estilo:

 elas chegam
diferentes e mesmas
com cada uma é diferente e o mesmo
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é a mesma

Em sua correspondência, Beckett chegou a confessar que a miríade de intertextos em seus poemas iniciais era um reflexo de terem sido escritos de maneira facultativa, distinguindo-os de sua produção a partir de 1937, que se constituiria como obras escritas por uma necessidade de expressão. As repetidas manifestações de insatisfação com seus escritos atravessam toda a vida do irlandês; levando-as a sério ou não, é notável o quanto suas obras iniciais dependem do manusear de notas de leituras diversas. Estabelecendo uma outra relação com a tradição literária e filosófica, essa transformação encarna uma mudança estética geral e sintomática da literatura do pré ao pós-guerra, deixando para trás os projetos monolíticos do alto modernismo. Nas obras de Beckett a partir de 1937, esse modernismo se dissolveria cada vez mais em um eco longínquo, identificável, porém tornado amorfo por uma memória e um sujeito em detritos.

Romances
Este mesmo processo pode ser visto na distinção de dois de seus romances recentemente publicados: Murphy (1938) e Watt (1953, mas escrito durante a Segunda Guerra), ambos traduzidos por Fábio de Souza Andrade e lançados no ano passado pela Companhia das Letras. Murphy é o primeiro romance que Beckett conseguiu publicar; o primeiro romance escrito, Dream of fair to middling women, não encontrou editora que o acolhesse no início dos anos 1930 e por vontade do autor só veio ao público postumamente. O leitor acostumado à concisão beckettiana encontrará em Murphy um Beckett muito diverso: um narrador irônico e continuamente intrusivo constrói sua narrativa com uma prolixidade que parece inesgotável, cerzindo intertextos com uma erudição de alcance espaço-temporal imensa, servindo-se de — e celebrando — alguns dos grandes satíricos da prosa, como Lawrence Sterne, Rabelais, Flaubert e, naturalmente, Joyce. Trata-se talvez da obra mais cômica do irlandês. Essa comicidade é garantida a partir da distância que o narrador toma de seu texto para melhor satirizá-lo por meio do livre manuseamento de intertextos, como em uma paródia do romance de ideias.

Já em Watt — concluído em 1948, mas composto majoritariamente entre 1942 e 1944, enquanto o autor, que participara da resistência francesa, escondia-se no sul do país — a relação com a tradição filosófico-literária é outra. Na maior parte do romance, as referências deixam de ser explícitas e passam a integrar as vozes de tal modo que a distância ou a mediação das distinções entre personagem, narrador e intertexto são colocadas continuamente em xeque. Aqui, toda a erudição é dissolvida por uma memória em estilhaços que deforma os acontecimentos outrora já mal vistos e falha não somente na narração, mas, antes, no próprio nomear dos objetos.

O enredo enxuto pelo qual Beckett ganharia fama é reconhecível: um sujeito chamado Watt, do qual pouco sabemos, viaja até os aposentos de um certo senhor Knott, sobre o qual ele — assim como o leitor — pouco sabe; presta serviços no térreo da casa, depois no primeiro andar; por fim, deixa o local, ainda sem saber nada de concreto sobre aquele para quem trabalhara, apesar de seus esforços inesgotáveis de investigação. Este não-encontro é refletido em um outro desencontro que é o centro do livro: aquele entre palavra e coisa, sintetizado com agudez e aflição na passagem sobre um pote:

Olhando para um pote, por exemplo, pensando num pote […] era em vão que Watt repetia, Pote, pote. […] Pois não era um pote, quanto mais olhava, quanto mais refletia, tanto mais ficava convencido disso, de que não era um pote, nem um pouco. Parecia um pote, era quase um pote, mas não era um pote do qual se pudesse dizer, Pote, pote, e se sentir reconfortado.

Sem “socorro semântico”, o romance apresenta séries combinatórias de palavras que ora esgotam as possibilidades sintáticas de determinadas expressões, ora se emaranham em fios infinitos — com destaque para aquela em que o personagem Arsene maldiz gerações inesgotáveis pela fórmula

E a pobre velha terra piolhenta, minha terra e a de meu pai e de minha mãe e do pai de meu pai e da mãe de minha mãe e da mãe de meu pai e […]. Uma merda.

Essas combinatórias tornam-se uma intrusão que emperra o desenvolvimento linear do enredo e traz à tona a materialidade sonora da linguagem como em uma corrosão poética.

A expressão que almeja esgotar sabendo da impossibilidade de esgotamento e a expressão cada vez mais enxuta, empobrecida e mínima partem de questões semelhantes ou, talvez, espelhadas. Da palavra que não se encontra com o objeto e que é repetida incessantemente, Beckett chega à busca pela palavra-última que não virá. Essa busca, sintetizada em seu último poema, Comment dire, que volta em sua autotradução em what is the word, e que agora volta para nós em Como dizer e uma vez mais em qual é a palavra — que se espalhe.ento do qual se lamentou em diversas ocasiões.

Poesia completa
Samuel Beckett
Trad.: Marcos Siscar e Gabriela Vescovi
Relicário
296 págs.
Murphy
Samuel Beckett
Trad.: Fábio de Souza Andrade
Companhia das Letras
272 págs.
Watt
Samuel Beckett
Trad.: Fábio de Souza Andrade
Companhia das Letras
378 págs.
Samuel Beckett
Nasceu em Foxrock (Irlanda), em 1906. Compôs suas obras em inglês e francês. Sua produção abarca seis décadas, começando em 1930 e concluindo-se em 1989, ano de sua morte em Paris. Conhecido por Esperando Godot (1953), peça que lhe alçou à fama internacional, Beckett explorou os mais diversos gêneros literários e artísticos: romances, contos, peças radiofônicas e televisivas, um média-metragem e poesias. Filho último do modernismo, o irlandês passa a partir do pós-guerra a explorar os limites das convenções literárias dentro do que é chamado de uma estética do fracasso. Foi laureado com o Nobel de literatura em 1969, acontecimento do qual se lamentou em diversas ocasiões.
Gustavo de Almeida Nogueira

É doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

Rascunho