Puro pedantismo

Pretensamente grandioso, "Canaã", de Graça Aranha, é impregnado de preconceitos e estereótipos
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/04/2012

Jamais entendi por qual motivo afirma-se que Canaã, de Graça Aranha, publicado em 1902, é um romance nacionalista — e, conseqüentemente, teria sido uma das obras que anteciparam as idéias da Semana de 22. A bem da verdade, se há exaltação dos valores nacionais nesse livro, estão descritos às avessas — ou foram encontrados por algum crítico fantasioso.

Desde o início da narrativa, quando Milkau, o protagonista, passa pela fazenda do coronel Afonso, a caminho de Porto do Cachoeiro, no Espírito Santo, o que se referir ao Brasil será descrito, no mínimo, como rústico. O próprio coronel é a figura da decadência:

De pés nus, calça de zuarte, camisa de chita sem goma […], triste, como se tivesse consciência de que sobre si recaía o peso do descalabro da raça e da família; o olhar, turvo, apagado para os aspectos da vida como o de um idiota; o esgotamento de suas faculdades, das emoções e sensações era completo e o reduzira a uma atitude miseranda de autômato.

O que imaginamos ser uma visão passageira espraia-se pelo livro. Pouco depois, ao encontrar um velho cafuzo e seus dois familiares, não apenas a residência está em ruínas, mas tudo é pobreza, desalento, incapacidade de tomar iniciativas — e o velho chega a lembrar com saudade o tempo em que era escravo. O narrador salienta a “mal definida resignação dos esmagados” e a “indolência sinistra”.

Ainda no Capítulo I, surge o agrimensor Felicíssimo — e o narrador sintetiza a personalidade do cearense definindo-o como alguém que dá “expansão aos instintos da sua nativa e tranqüila vadiagem”. Mas não só. Felicíssimo é o brasileiro que fala mal de seus compatriotas e enaltece, como bom adulador, os imigrantes alemães. Especialista em falsa cordialidade,

para se dar de importância e intimidade com os moradores, […] penetrava pelos armazéns adentro, para trocar uma palavra com o dono da casa. Algumas vezes, conseguia arrastar do fundo das lojas até à porta os negociantes, com quem […] tomava liberdades, dando-lhes palmadinhas nas costas, beliscões na barriga e dizendo-lhes injúrias por gracejo, ao que os alemães complacentes sorriam muito rubicundos […].

Graça Aranha é impiedoso com o agrimensor: em seu escritório, “meia-água coberta de zinco”, não há “nem um livro de leitura, nem o quadro mais humilde, nem uma fotografia; apenas um maço de jornais, para desabafo da curiosidade […]”. E o cearense protagoniza a cena mais hilariante do livro, na qual descobrimos que não sabe usar o teodolito, aparelho básico de sua profissão, mas finge saber e mete-se a fazer macaquices no intuito de persuadir Milkau e Lentz, ambos alemães, de que, na verdade, seus empregados é que são ignorantes. Depois, bêbado numa festa da colônia, agirá de forma ridícula e escandalosa, acompanhado de outro brasileiro, o mulato Joca, responsável por um espetáculo animalesco diante dos colonos estupefatos.

Há, sim, na abertura do Capítulo II, uma bela descrição da floresta tropical, mas o brasileiro será sempre tratado como alguém que não se esforça. Num grupo de trabalhadores, os alemães apresentam “robustez, […] pulsos de ferro, torso hercúleo, barbas avermelhadas, olhos de um azul de abismo”, enquanto o único mulato tem “a cara mascarada pelas bexigas […]. Com os olhos rajados de sangue e os dentes pontiagudos de serra, tomava por vezes a aparência de um sátiro maligno”, expressão que “não era freqüente”, diz o narrador, substituída “rapidamente” por “um riso fácil e ingênuo”.

Os funcionários do Poder Judiciário que atuam na colônia são arrogantes, autoritários e corruptos — roubam e oprimem os alemães indefesos. E a vida dos colonos é descrita por meio de exagerado otimismo, formando um contraponto, que se pretende irrefutável, com a descrição da fazenda em ruínas, sobre a qual falamos no primeiro parágrafo. Nada escapa à hostilidade de Graça Aranha: a natureza brasileira é “trágica”, enquanto a européia é “doce”; e até mesmo a esposa do juiz, “esbelta, magra e muito jovem”, apresenta a “palidez brasileira, doentia e diáfana”.

Evolucionismo
A cada página, reaparece o fel do naturalismo, pretensamente científico, de Aluísio Azevedo, passados doze anos da publicação de O cortiço. Eco da escola evolucionista e do germanismo de Tobias Barreto, de quem Graça Aranha foi discípulo, Canaã também apresenta respingos da lama frenologista e preconceituosa de Mestiçagem, degenerescência e crime, de Nina Rodrigues, publicado em 1899.

Milkau vê, no menino brasileiro que lhe serve de guia, o “rebento fanado de uma raça que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior, a uma plena expansão da individualidade”. Em certo momento, quando a criança lhe sorri, o alemão enxerga apenas “os lábios descorados, mostrando os dentes verdes e pontiagudos, como afiada serra” (imagem cara ao nosso autor), enquanto o “rosto macilento se esclarecia com a grande doçura de uma longa resignação de raça”. E o narrador anuncia que o alemão vê tudo isso “com bondade”… — eufemismo para designar a complacência do imigrante que se acredita superior aos nativos.

Para o desesperado nietzschiano Lentz, “o homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores”. Milkau, apesar de otimista, pensa de maneira semelhante. Movido pelo mesmo evolucionismo, foi seu olhar infantil e panglossiano, dizem, que contaminou os jovens da Semana de Arte Moderna, pois acredita que a salvação do homem virá pela mestiçagem. Ele afirma: “As raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização”. Ao que Lentz responde: “– […] Será sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos em revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão, a civilização será sempre um misterioso artifício, todos os minutos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade e pelo servilismo do negro”. Milkau defende, ao contrário, uma “evolução constante e indefinida”. Segundo sua visão idealista e romântica, “o conjunto humano, formado dos povos, das raças, das nações, não pára em sua marcha, caminha progredindo sempre e os seus eclipses, os seus desmaios não são mais que períodos de transformações para épocas fecundas e melhores”. E insiste, movido pelo utopismo: “É a fatalidade do Universo que se cumpre no Todo que é uma parte dele…”. Lentz e Milkau, cada um à sua maneira, não suportam o fardo da realidade, as inevitáveis incertezas; por esse motivo, buscam, no evolucionismo, a solução definitiva, que instaure a Canaã perene.

O próprio narrador está impregnado dessas idéias, revelando, aqui e ali, concepções estereotipadas e racistas. Certa família húngara, que se estabelece na região acompanhada por um cigano, é descrita desta forma:

[…] Viviam unidos em uma só comunhão de desânimo e de espanto na casinha feita de madeira tosca, com teto de telhas de pau […]. Aí cumpriam o ritual dos costumes pátrios. Sob a pressão cobarde do isolamento, apegavam-se, como a um refúgio, às intatas tradições, transportadas de sangue a sangue e mantidas pelo temor religioso dos antepassados. O cigano partira também, arrastado pelo instinto vagabundo.

Idealização e delírio
Como se não bastasse, aos atavismos somam-se, em certos trechos, empolados lugares-comuns:

O agrimensor depois do trabalho […] entretinha os dois emigrados, contando episódios da sua vida aventureira, cenas do Norte, desse Ceará trágico em cujas areias sedentas e implacáveis, se vazam, se fundem na resignação, na dor, na energia e na esperança, a alma dos homens…

Ou frases — como esta, dita por Milkau — que são inúteis tentativas de florear teses repisadas ao longo do livro:

O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento da cultura, transfundindo de corpo a corpo o produto dessa fusão que, passada a treva da gestação, leva mais longe o capital acumulado nas infinitas gerações.

A incansável idealização da terra, renovada graças ao sangue germânico, transforma inúmeros trechos numa arenga sentimentalóide:

Eles disseram que ela era formosa com os seus trajes magníficos, vestida de sol, coberta com o manto voluptuoso e infinito azul; que era animada pelas coisas; sobre o seu colo águas dos rios fazem voltas e enlaçam-lhe a cintura desejada; as estrelas, numa vertigem de admiração, se precipitam sobre ela como lágrimas de uma alegria divina; as flores a perfumam com aroma estranho, os pássaros a celebram; ventos suaves lhe penteiam a frisam os cabelos verdes; o mar, o longo mar, com a espuma dos seus beijos afaga-lhe eternamente o corpo…

O narrador verboso também produz trechos de dramaticidade artificial, como o da menina adotada, no Capítulo X, em que a criança, possuída não por um íncubo, mas por suas “células obscuras e implacáveis”, parece necessitar de uma camisa de força:

Depois, um soluço histérico, outro, mais outro, sucedendo uma modorra interrompida de instante a instante pelo crispar de suas garrazinhas aferradas aos pulsos da senhora, que tentava inutilmente adormecê-la. Os seus sentidos saíam do pesadelo numa dolorida expressão de susto e fadiga. Levantou a cabeça, fitou os outros com um sorriso leve, melancólico, que traduzia uma imensa agonia, rudimentar, inconsciente, a indizível tristeza das almas rudes, primitivas ou infantis. […]

Assim, vários personagens terão direito a minutos de atormentação ou delírio. Um pode manifestar, subitamente, “o ar trágico de um sátiro em dor”. Outro experimenta “transportes de luxúria” e “queixumes de agonia sexual”:

Seguia deliciosamente todo aquele brando respirar, e pouco a pouco uma funda perturbação lhe alvoroçava o sangue. Mulher!… pensava ele. E esta palavra evocadora dilatava-lhe os horizontes de restringida e quase apagada sensualidade. Mulher! E lá vinham os esquecimentos, onde jaziam sepultadas as visões lúbricas e lascivas… Mulher!… E um torpor, um espreguiçamento dos músculos o desequilibrou de uma vez e o atirou a uma vertigem de volúpia… Milkau levantou-se trêmulo, o coração galopando, a garganta estrangulada, a boca seca.

A música, durante certo culto religioso, também provoca paroxismos:

Milkau vibrava. A música enchia a sua alma capaz de sentir os mais intangíveis e deliciosos segredos do som e de se transportar além de si mesma, perdendo a própria essência na mais copiosa e alucinadora emoção. Música!… Que conjuntos de sensações não se acumularam desde as remotas almas progenitoras, que rios de sangue não correram de pais a filhos, longamente, carregando as vibrações recolhidas em cada célula, dolorosas, lentas, trabalhando, afinando o mundo dos nervos até enfim se formar no homem a derradeira das suas almas, a alma musical!…

Plano esquemático
A essa narrativa maçante, a esse psicologismo hiperbólico e rasteiro, devemos acrescentar os defeitos estruturais do romance. Milkau e Lentz mantêm longas e cansativas conversas, mas jamais dialogam. Na verdade, o autor justapõe as falas — e cada um defende suas teses, sem jamais sentir-se inclinado a realizar verdadeiro debate. Essa monótona sucessão de discursos, às vezes grandiloqüentes, contribui para criar dois personagens que apresentam raras nuanças, repetitivos, que não se permitem dúvidas, a não ser em melodramáticos momentos de crise. O narrador, contudo, certo de que pode persuadir o leitor apenas com lengalenga, justifica assim a sólida amizade dos alemães:

[…] Mas, longe do ódio, da luta fratricida, entre esses dois intérpretes sucessivos da vida, formara-se uma atração, uma solda inquebrantável e que ainda significava a imagem dessa impulsiva liga entre todos no mundo, que cada dia será crescente, até se tornar universal e indestrutível.

A obra obedece, parcialmente, a um plano esquemático, no qual personagens desempenham a função de justificar cenas carregadas, convulsivas. A família húngara e o cigano, no Capítulo VIII, surgem unicamente para dar vida ao quadro do sacrifício de um cavalo, cujo sangue deve purificar a terra e garantir boas colheitas. No mesmo capítulo, certo caçador, o “bruxo”, de quem não se falara no transcorrer do livro, é subitamente recordado quando aparecem urubus no céu — justificando a cena do cadáver pútrido e dos cães enfurecidos. Igual receita é seguida no Capítulo X, no trecho, já citado, da filha adotiva: entreato completamente desligado do conjunto. A famosa passagem do parto de Maria — quando o recém-nascido é devorado pelos porcos —, ainda que siga a lógica de transformar a imigrante na única pessoa condenada ao sofrimento na colônia, é, exatamente por esse motivo, a culminância de um drama exagerado e inconvincente.

Portanto, não surpreende que Luciana Stegagno-Picchio recorde crítica — sem abraçá-la totalmente — segundo a qual Canaã seria “um pasticho tecido de heterogêneos trechos antológicos”. A melhor análise pertence, contudo, a Otto Maria Carpeaux, no artigo “Canaã revisitada”. Conciso, o crítico destrinça o romance, chamando-o de “mosaico de estilos diferentes”, e encerra sua análise gravando um comentário irônico sobre o autor: “[…] Visitou o Espírito Santo, mas não foi visitado pelo espírito santo da criação novelística”. Canaã “só convence leitores inexperientes” — é o veredicto de Carpeaux. O célebre intelectual está coberto de razão. A insistência de Graça Aranha em defender teses filosóficas e sociológicas criou um curioso esforço narrativo, nada mais, cuja teatralidade desengonçada chega a tornar cômico o que pretende ser trágico. Trata-se do mais pedante romance brasileiro.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Júlia Lopes de Almeida e A falência.

Graça Aranha
José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís do Maranhão, a 21 de junho de 1868, e faleceu no Rio de Janeiro, em 26 de janeiro de 1931. Depois de cursar a Faculdade de Direito do Recife, exerceu a magistratura no interior do estado do Espírito Santo. Serviu como diplomata na Europa. Após o sucesso de Canaã, em 1911 publicou a peça Malazarte, inspirada em Ibsen. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, desligou-se da instituição depois de aderir ao Modernismo. Também publicou: Estética da vida (1921); Correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco (1923); O espírito moderno (1924); Manifesto de Marinetti e seus companheiros (1926); o romance A viagem maravilhosa (1929); e a autobiografia incompleta O meu próprio romance (1931 – publicação póstuma).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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