PUIG kitsch e pós-modernismo

Os protagonistas de Manuel Puig vivem no mundo da arte pop, ouvindo tangos de Gardel e vendo filmes de Hollywood
01/01/2004

Desde que o crítico holandês Dowe Fokkema citou Borges como fundador do pós-modernismo, o termo tem sido utilizado com freqüência no âmbito dos estudos literários hispano-americanos. Em palestra na Universidade de Harvard, em 1983, Fokkema afirmou que o pós-modernismo foi o primeiro código literário a aparecer na América Espanhola e a influenciar a literatura européia. Inaugurava-se assim mais outro dos inúmeros significados que o termo vem adquirindo durante seu quase um século de história.

As mais variadas, e muitas vezes absurdas, aplicações do conceito aparecem onde quer que a crítica resolva observar a obra de arte sem considerar seu conteúdo político. Afirmações como a de Fokkema, certamente, figuram em tal categoria, assim como outras que citam a Stravinsky e Mahler como compositores pós-modernos por utilizar temas do folklore em suas composições, a Beckett por retratar personagens esquizofrênicos, ou a autores japoneses como Yamada Eimi e Banana Yoshimoto que vão a fundo no pop e no kitsch, mas que operam em um âmbito cultural onde nem sequer uma modernidade existiu, muito menos uma pós-modernidade.

Mas como falar de Puig é quase impossível sem se referir ao pós-modernismo, uma definição do conceito se torna imprescindível. Não vou entrar em detalhes sobre sua história, quem ainda não a conhece pode ler Five faces of modernity (1987), de Matei Calinescu. Está tudo ali. O que é realmente importante ter em mente é a questão do divórcio entre o conceito utilizado por críticos como Fokkema, e o debate acerca da pós-modernidade que se instaura a partir da publicação de La condition posmoderne (1979), de Jean-François Lyotard.

Lyotard definia a pós-modernidade como produto de uma crise epistemológica ocorrida nas sociedades tecnologicamente avançadas onde o que ele chamava de “metanarrativas”, os grandes sistemas filosóficos derivados do pensamento Ilustrado haviam perdido legitimidade. Essa crise do saber se reflete em todos os âmbitos da sociedade, transformando o espaço social num campo de batalha no qual grupos até então marginalizados utilizam novos discursos na luta pelo poder. Obviamente a literatura participa dessa nova condição operando dentro de uma estética específica, a estética pós-moderna.

Nada mais distinto da noção de Fokkema, em que o pós-modernismo aparece como um código literário, noção que procede da semiótica, a qual por sua vez observa o texto a partir de uma espécie de dialética entre significante e significado. Não nos cabe discutir aqui se a semiótica é ou não apolítica. Sem dúvida o conceito de código literário é válido, e a investigação semiótica como tal costuma ser uma empresa árdua que opera em alto nível de complexidade. No entanto, o que sim é apolítico é caracterizar a Borges como pós-moderno. Para ser mais preciso, defini-lo como fundador do pós-modernismo implica uma aplicação do conceito que não leva em consideração o seu caráter político.

Eu costumo caracterizar a política pós-modernista por meio de uma analogia com o conceito de Realpolitik. Tal conceito se refere ao modo como Bismarck praticava sua política exterior durante o século 19 sem se ater a nenhuma forma específica de ideologia. Ao contrário de outros grandes estadistas como Stalin ou Wilson, Bismarck partia de algo semelhante à Raison d’état de Richilieu, a qual defendia que o bem do Estado justificava qualquer meio utilizado para alcançá-lo. Ainda que na prática Stalin também procedesse a algo parecido, sua política estava vinculada a uma ideologia bastante específica, a do marxismo. Bismarck, ao contrário, praticava sua Realpolitik de forma semelhante à que os grupos “excêntricos” pós-modernos fazem hoje quando lutam por um espaço no campo social, isto é, desvinculados de qualquer suporte ideológico, o qual era fornecido pelas metanarrativas, agora deslegitimizadas.

Como as relações internacionais implicam uma relação com o outro, com o estrangeiro, a analogia é válida. Pois o pós-modernismo está inexoravelmente implicado na questão da “outredade”. A exaustão das metanarrativas implica justamente o distanciamento do modelo kantiano no qual o homem aparece como um ente homogêneo definido pela razão universal na qual todos os indivíduos participam. Com o antikantianismo pós-moderno surgem diversos “outros” com distintos modelos de verdade igualmente válidos. E aqui é interessante notar que assim como o pós-modernismo, a política de Bismarck também negava o universalismo kantiano.

No âmbito do pensamento político, aparecem três formas distintas de apreender as relações internacionais: o realismo ou hobbesianismo, que dita que a atividade natural na relação entre as nações é a guerra e que os momentos de paz são exceções em períodos em que se verifica um equilíbrio de poder; o kantianismo ou universalismo, que avaliza uma noção totalmente oposta em que a tendência natural do Estado é sua desaparição, sua dissolução em uma comunidade humana onde todos os seres racionais viverão sem conflitos; e o grocianismo, que aparece numa posição intermédia na qual o comércio é a atividade natural das nações e a paz pode existir através da cooperação ainda que sem a desaparição do Estado. Pois bem, a Realpolitik de Bismarck cai exatamente na primeira versão, opondo-se ao universalismo kantiano da mesma forma que o fazem os grupos vinculados aos discursos marginais pós-modernos.

A questão aqui é a de universalismo versus individualismo, e de como esse último toma precedência na pós-modernidade traduzindo-se no que se poderia chamar de uma estética pós-moderna ou pós-modernismo. E é aqui onde Borges jamais poderia ser categorizado de pós-modernista, ao contrário de Puig. Uma visão universalista da humanidade permeia toda a obra de Borges. A influência de Schopenhauer, por exemplo, que além de ser afirmada pelo próprio autor é mais que evidente em sua obra, denota uma visão do homem como o ser monolítico que procura destruir os pós-modernistas. Veja-se seu poema Cosmogonia, onde o autor afirma a existência de um sofrimento intrínseco ao universo, algo anterior à própria divindade que o cria, uma noção que parte do mesmo pessimismo de Schopenhauer, operando dentro da visão homogeneizante do filósofo que percebe toda a vida na terra como escravizada pela Vontade.

Outros textos denotam a mesma visão kantiana. Funes el memorioso, por exemplo, invalida a diferença afirmando que “pensar es generalizar, es olvidar diferencias”. El Aleph, na mesma linha, encerra uma verdade universal, um sentido do mundo totalmente oposto ao que avaliza as diversas verdades às que se vinculam os vários discursos marginais pós-modernos. Las ruinas circulares reproduz o mito do eterno retorno dentro de uma visão basicamente nietzscheana na qual a finitude do tempo e das partículas do universo produz um achatamento de possibilidades e a aparição de uma verdade unívoca.

A tudo isso se soma a postura política de Borges. E aqui é importante ter em conta que a política do pós-modernismo se revela sobremaneira dentro de uma linha anticonservadora. A existência de múltiplas verdades igualmente válidas defendida pelos discursos marginais pós-modernos vai exatamente contra a visão eurocentrista e conservadora de Borges que costumava afirmar que o âmbito cultural do intelectual argentino é toda a cultura ocidental. Várias atitudes contrárias ao anticonservadorismo pós-moderno podem ser citadas: a assinatura de petições favorecendo a invasão da Bahia dos Porcos; o pedido de execução de Régis Debray na Bolívia; a dedicatória de sua tradução de Leaves of Grass a Richard Nixon; o suporte à ditadura de Onganía nos anos 60, além de suas freqüentes afirmações de que negros e índios são inferiores a brancos. Todas essas atitudes e muitas outras estão recompiladas no livro de Gene H. Bell-Villada, Borges and his fiction: a guide to his mind and art (1999).

Muito bem, com Borges em perspectiva, podemos observar agora a obra de Puig e, através de um contraste, ver quem é pós-modernista e quem não é. Se a obra do primeiro, assim como a de Sábato, Cortázar, Mallea, Arlt e Onetti, se define nas linhas da intelectualidade européia, retratando a inteligentzia portenha, a de Puig, ao contrário, utiliza-se de personagens que são quase sempre “massa”. Os protagonistas de Puig vivem no mundo da arte pop, ouvindo tangos de Gardel e vendo filmes de Hollywood. O melodrama barato lhes oferece um modelo de apreensão da realidade muito distinto do de Horacio Oliveira, protagonista de Cortázar em Rayuela, um intelectual argentino que vive em Paris rodeado de alta-cultura, ou dos personagens de Sobre héroes y tumbas, de Sábato, que descendem de grandes personagens históricos. O mundo de Puig, em suma, gira em torno do kitsch.

Aqui aparece a questão da relação entre o pós-modernismo e a cultura de massa. Sem dúvida o kitsch não nasceu com a pós-modernidade. Sua origem pode ser traçada ao próprio romantismo do século 19, aos folhetins e aos romances destinados a uma burguesia cada vez mais consumista. No entanto, é possível afirmar que com a pós-modernidade se dá uma disseminação do kitsch, e que dentro da arte pós-moderna ele aparece como dominante. Como objeto de fácil consumo, o kitsch guarda uma relação muito próxima com o pop, que provavelmente apareceu primeiramente na música quando surgiram as possibilidades de gravação e com elas a necessidade de que as composições fossem mais curtas, se adequando também aos gostos de um novo consumidor para quem uma nova indústria cultural aparecia adequada à emergente indústria do lazer, criando assim o que Calinescu chama o homem-kitsch.

Assim, ainda que o kitsch não tenha nascido com a pós-modernidade, a kitschificação da cultura é sem dúvida um de seus corolários. E aqui se pode observar um paralelo bem claro entre a força que adquire o kitsch e a relativização ética promovida pela deslegitimização das metanarrativas. Dentro da noção de uma verdade plural, aparece a possibilidade de avalizar também uma pluralidade de gostos, os quais entram no jogo de poder a que se lançam os diversos discursos marginais pós-modernos. Nesse sentido, Calinescu afirma que as atitudes do homem-kitsch envolvem uma flagrante inaptidão moral, pois o homem pós-moderno já não busca a cultura, senão a diversão, e assim procede ao hedonismo como elemento dominante de expressão vital.

A noção de inaptidão moral pode ser advertida no próprio debate pós-moderno que se instaura na filosofia a partir das afirmações de Lyotard. A perda de uma verdade unívoca na qual o homem era antes de mais nada um ser racional, verdade essa que era fornecida pelas metanarrativas, deriva na falta de um standard ético e estético na nova era pós-moderna, e como tal em uma decadência em relação ao chamado alto modernismo. Aparecem então críticos como Fredric Jameson, que define o pós-modernismo entre outras coisas como a dissolução das fronteiras entre alta cultura e cultura de massa; Jean Baudrillard, que critica os meios de comunicação como detratores da separação entre espaço público e espaço privado e criadores de um estado geral de obscenidade; Gilles Lipovetsky, que afirma ser o termo pós-modernismo nada mais que outra palavra para denominar a decadência ética e estética do mundo atual, e Clement Greenberg, que corrobora com as opiniões anteriores.

A tudo isso se contrapõe o outro lado da questão, a visão dos grupos minoritários que advogam pelo caráter tolerante que assume o pós-modernismo. O que defendem esses últimos é que a visão universalista kantiana é produto do eurocentrismo que defende uma imagem da humanidade baseada nas prerrogativas do ser masculino branco norte-europeu, e que essa imagem é responsável por toda a repressão gerada contra as mulheres, os homossexuais, e os indivíduos de origem étnica não européia. Ou seja, que a repressão é em si produto da própria cultura ocidental, resultado do caráter racional/monolítico que procuraram imprimir na humanidade a Ilustração e o Idealismo Alemão.

Obviamente tal noção naufraga quando se observam culturas não ocidentais que procedem a uma repressão do “outro” ainda mais forte que a encontrada no ocidente. Seja como for, se a cultura européia, a alta cultura, aquela que deriva da visão de mundo sustentada pelas metanarrativas, é o que representa a dominação branco-masculina, um ataque a essa cultura funciona como modo de ativismo político dos grupos “ex-cêntricos” ou marginalizados que agora procuram afirmar a validade de uma visão de mundo distinta. Assim, enquanto o marxismo, a psicanálise, o existencialismo, são vistos como produtos do daninho racionalismo europeu e ilustrado, o feminismo, o discurso de grupos homossexuais e o de supostas minorias étnicas tomam corpo fazendo uso da relativização ética e estética proporcionada por elementos como o kitsch. Em outras palavras, é através de seu poder de afirmação contra a alta cultura que o kitsch se torna relevante para os discursos marginais pós-modernos. E é aqui onde se verifica o pós-modernismo de Puig. Não em uma questão semântica referente à dialética entre significado e significante que define um certo tipo de código literário como pós-moderno e que pode ser aplicado à escritura de Borges, como faz Fokkema, senão em um âmbito mais vital, dentro de uma visão política que envolve uma luta específica por autodeterminação e reconhecimento.

O beijo da mulher-aranha está cheio de kitsch. Só que aqui aparece uma contradição, porque o romance não é simplesmente kitsch. É muito mais que um objeto de fácil consumo produzido pela indústria do lazer. O que está em jogo na obra de Puig é diferença entre a representação do kitsch como parte de uma realidade humana presente, e o kitsch em si como elemento de afirmação da cultura de massa. Kitsch são os best sellers cheios de maniqueísmo que se encontram nas livrarias de aeroportos. São obras destinadas a prender a atenção do leitor e subtraí-lo da realidade. Nada mais distinto de O beijo da mulher-aranha.

No romance de Puig, o kitsch ocupa a função estética de retratar uma condição humana específica. Os filmes bregas de Hollywood contados por Molina na cela de uma prisão, ao contrário de entreter o leitor, parecem feitos para aborrecê-lo. Confesso que ao ler a obra pela primeira vez, tive que saltar muitas daquelas histórias malcontadas que me faziam pensar se não deveria estar aplicando meu tempo em algo mais útil. Mas só depois me dei conta de que era exatamente isso o que Puig queria expressar com os filmes de Molina, uma vida extremamente triste e solitária que só encontra felicidade na ilusão daquele mundo tão barato, tão simplificado. Em um momento de extrema força literária, Molina se distrai com as sombras que a chama do fogão projeta na parede. Sua vida é uma constante fuga da realidade.

A fuga é parte do fracasso a que estão condenados os dois personagens. Molina é um homossexual que não se contenta com uma relação com outro homossexual. Quer um homem de verdade, mas reconhece a contradição inerente nesse desejo. Valentín luta por uma causa perdida, sua visão de mundo é absolutamente utópica. O livro opera em alto nível de sutileza e contradição. A estética do fracasso presente na obra afasta qualquer visão maniqueísta da existência.

O beijo da mulher-aranha, então, é kitsch que não é kitsch. Mas, mais que tudo, é uma novela pós-moderna. O pós-modernismo da obra se concentra, antes de mais nada, na relatividade ética inerente ao retrato que Puig faz do homossexualismo. Um retrato que nunca é panfletário. Porque pouco importam as opiniões pessoais do autor acerca da questão. O que o texto proporciona é uma visão da humanidade que transcende o universalismo kantiano, que reconhece a possibilidade de algo essencialmente humano nesse ser marginalizado que é Molina. Em outro momento grandioso, logo após haver sodomizado a Molina, Valentín lhe diz que quando saia da prisão não deixe que ninguém o utilize ou humilhe. De acordo com a visão monolítica da modernidade ilustrada, a visão atacada pelo pós-modernismo como euro-macho-cêntrica, poucas coisas poderiam ser mais humilhantes que ser sodomizado. Mas aqui Puig mostra que o mundo é muito mais complexo do que pensamos; que os padrões morais que defendo com minha visão de mundo kantiana podem ser muito distintos dos do outro, e que talvez ambos tenham de fato a mesma validade.

A pós-modernidade de Puig está em ele ser um escritor compassivo. A representação de personagens medíocres não é uma invenção da pós-modernidade. Personagens tão medíocres como o pseudo-intelectual Valentín ou o fã de filmes bregas Molina aparecem em grandes obras modernistas. Leopold Bloom por exemplo, é um publicitário que vive num mundo quase tão brega quanto o do protagonista de Puig (mostrando que ainda que no nosso mundo pós-moderno a publicidade receba uma aura de arte, desde o ponto de vista dos modernistas ela não passa de kitsch). A diferença é que Joyce não demonstra compaixão com Bloom, ele é, antes de mais nada, um pobre coitado, um homem que sabe que todos sabem que ele está sendo traído pela mulher e que não é capaz de tomar nenhuma atitude. Molina, ao contrário, vive uma vida na qual uma espécie de sutil dignidade ainda lhe é concedida. Ele é um ser humano digno de reconhecimento. Puig não o destrói da mesma forma que fazem Tolstoi e Flaubert com Anna Karenina e Emma Bovary, nem o pune como faz Dostoievski com Raskolnikov. Molina é uma vítima, não um criminoso.

O protagonista de O beijo da mulher-aranha é vítima porque a política de Puig é uma política antikantiana. A profundidade de sua obra está em que a relativização ética que opera não parte de um desejo de afirmar uma postura marginal, senão que é reflexo de um momento no qual tais posturas se tornaram irrefutáveis. A pós-modernidade que retrata Puig é um tempo de incertezas, de dissoluções, um tempo em que conceitos como o de verdade ou masculinidade se tornaram difusos. O macho pós-moderno passa quatro horas por dia se olhando no espelho de uma academia de ginástica; o gay pós-moderno tem sentimentos e dignidade: para bem ou para mal, as fronteiras vão se diluindo.

Seja como for, agüentar todos os aborrecidos filmes de Molina vale a pena. Descobrir quem é a mulher-aranha, e qual o sentido do seu beijo, é uma grande experiência literária. Ao fim e ao cabo, O beijo da mulher-aranha mostra o kitsch que todos buscamos, o kitsch simplista de conceitos fáceis, superficiais; o kitsch onde a vida é nada mais que a busca de um sonho curto, mas feliz.

O beijo da mulher-aranha
Manuel Puig
José Olympio
288 págs.
Roberto Pinheiro Machado

É escritor e professor de literatura japonesa na UFRS.

Rascunho