Protagonista da própria morte

"As sete luas de Maali Almeida" é uma explosão bem-vinda de humor cáustico, denúncia e cultura pop
Shehan Karunatilaka, autor de “As sete luas de Maali Almeida”
01/11/2024

Em tempos de redescoberta internacional de Machado de Assis, surge outro narrador morto, tal qual nosso Brás Cubas. Diferentemente do personagem brasileiro, que morre de pneumonia, o protagonista do srilanquês Shehan Karunatilaka foi assassinado.

E ele não está sozinho em As sete luas de Maali Almeida, segundo romance do autor e vencedor do Booker Prize de 2022. Segundo a ONU, 100 mil pessoas teriam perdido a vida durante as três décadas de guerra civil do Sri Lanka (aquela pequena ilha ao sul da Índia), que opôs etnias longamente rivais, cingaleses e tâmeis, em disputas longínquas e acirradas pela colonização e suas cicatrizes.

Na abertura do romance, Maali descobre que já não vive e está cercado de vítimas de atentados-bomba, revanches, chacinas, num ambiente de guichês, burocratas e formulários do além. Mas ele não sabe qual o motivo de sua morte, quem o matou ou como.

Ele até desconfia. Durante anos, Maali foi fotógrafo de guerra, atuando nos dois lados do front e acumulando inimigos. Sua única fidelidade é para com sua câmera, que ele leva presa ao pescoço, ambos quebrados, durante as sete luas (ou dias) a que tem direito antes de seguir o rumo protocolar dos espíritos srilanqueses. A relação visceral com seu ofício o leva a erguer a lente seguidamente enquanto perambula pelo mundo dos vivos, na tentativa de retratar o que só ele vê, e que agora nós somos levados a ver também. Nós mesmo, porque o livro é escrito em segunda pessoa. “Você” é quem foi morto e tenta descobrir seu assassino, em 400 páginas de um thriller incomum.

Assim como Machado, Shehan tem o humor entre suas principais características narrativas. Nas entrevistas decorrentes da premiação no Booker Prize, ele listou alguns de seus escritores prediletos. O principal: o alemão naturalizado americano Kurt Vonnegut e seu “humor de forca”, de quem ele afirma: “seu nojo pela humanidade e pelas suas barbáries encontrou ressonância com a desilusão que eu sentia por minha linda ilha e os tolos míopes que a destruíram”.

E apesar de ter relido Galápagos e Barba-Azul enquanto escrevia As sete luas…, o que mais “roubou” do autor, em suas palavras, foi o tom. Ainda que o protagonista, Maali Almeida, fosse um hipster de trinta e poucos anos, engraçado e que já vinha com “voz própria”.

Mesmo assim, chamam a atenção detalhes das tramas dessas duas obras tardias de Vonnegut. Em Galápagos, um fantasma de um milhão de anos conta sobre os últimos instantes da humanidade e como nossos grandes cérebros foram os culpados; em Barba-Azul, descobre-se uma fotografia que retrata a libertação de sobreviventes do Holocausto. Em sua obra, Shehan faz o thriller girar em torno da busca pelos negativos que Maali escondeu, com fotos que comprometem líderes dos dois lados da guerra e que, segundo ele, poderiam trazer um fim aos combates.

Enquanto torna “tio Kurt” seu íntimo, o autor questiona se Arthur C. Clarke não poderia ser considerado srilanquês — o autor morou na ilha de 1956 até sua morte, em 2008. Afinal, se “a Áustria convenceu o mundo de que Hitler era alemão e de que Mozart era deles. É certo que, após séculos de pilhagens armadas, cortesia dos piratas de Londres, Amsterdã e Lisboa, nós, srilanqueses, podemos ter um visionário da ficção científica, pelo menos?”.

O humor
Em sua sátira, assim como em Machado de Assis, Shehan se mantém conectado ao seu tempo e espaço. São sete luas de um humor pop, em que o protagonista se descreve como “fotógrafo, apostador, piranho”. Não é fácil conectar-se a esse homem, dada sua infidelidade crônica e o desperdício nas mesas de aposta. Mas pela veia do humor essa sintonia é possível.

Outro estranhamento do leitor poderá vir da muita violência, em descrições de cenas de guerra, execuções e torturas. São tantas camadas de alteridade que o leitor terá de decidir se continua. A guerra civil no país desconhecido, o protagonista morto, promíscuo, insaciável, infiel. Logo no começo, uma longa lista jocosa descreve os demônios que serão encontrados na leitura. Páginas adiante, um glossário das siglas referentes às instâncias da guerra, muito além dos dois lados que se enfrentam — o governo com sua “força-tarefa especial” e os Tigres de Libertação do Eelam Tâmil. No final, um brinde: uma lista de termos e expressões usados pelo autor nos idiomas do Sri Lanka.

Tanta colher de chá — e talvez ainda sejam insuficientes — talvez se explique por estarmos diante de uma reescritura, pois o livro original publicado em seu país era ainda maior, e foi editado para a publicação no Reino Unido e alhures.

Em meio à paisagem desconhecida do Sri Lanka, subitamente a alma srilanquesa (tal qual descrita pelos olhos do protagonista) revela pontos em comum com a brasileira. Especialmente na autocrítica, num familiar complexo de vira-latas, quando diz, por exemplo, que “srilanquês não sabe fazer fila”. Seria esse um traço de todo povo colonizado? A comparação com os ingleses é constante, enquanto Maali detona as tentativas de imitação do sotaque, para ficar em amenidades, mas também a alienação política de seus amigos. Para ele, a capital Colombo seria uma bolha alheia às atrocidades praticadas no norte e leste da ilha. Com essa divisão entre regiões também podemos nos conectar. Mesmo a guerra civil, que num primeiro momento nos remete a distantes Guerras dos Farrapos e Contestado, não fica tão distante do pânico que vivem milhões de brasileiros em contato diário com milícias e facções.

Há espaço também para os dramas familiares, pois o divórcio dos pais marca sua adolescência, e na vida adulta Maali quer superar o pai, ao mesmo tempo que rejeita a proximidade com a mãe. No contexto do realismo fantástico, Shehan nos conduz em seu modus operandi inventado para o além, em que as concepções de vida após a morte budista, cristã e espírita parecem se entremear. No “interstício”, espíritos perambulam por guichês burocráticos em busca de respostas, e podem visitar mortos até nos sonhos. Demônios são mais abundantes do que pessoas, e quem era uma pessoa “de bem” em vida continua ajudando o próximo depois — no caso, outros mortos mais perdidos do que ele próprio.

Sussurro aos vivos
Em meio a essa confusão, tudo que importa ao protagonista é aprender a sussurrar no ouvido dos vivos, de modo a influenciar os rumos de suas vidas e do próprio país — talvez seu empenho em ser um verdadeiro “protagonista” de sua vida tenha aumentado com a morte.

Maali quer levar seus amigos até fotos que tirou em zonas de conflito, chacinas a mando do governo e atentados das milícias tâmeis, imagens que, ele acha, poderiam “acabar com a guerra”. Será?

O suposto impacto da denúncia jornalística, seja em palavras ou imagens, sai bastante chamuscado da obra, pois quem se importa? Enquanto lemos, o problema é ainda outro: precisamos aprender a questionar as imagens que nos chegam, pois podem ter sido fabricadas maquiavelicamente em processos de deepfake. Como sempre, o problema está no olho de quem vê.

A crítica que permeia o livro é fruto de uma visão política clara do autor, o que traz contundência: a condenação do conflito racial, o questionamento do próprio conceito de divisão de raças, os métodos criminosos do governo para manter a “paz”, com execuções e tortura diárias. E nessa guerra, ou em qualquer uma, não há lado certo ou errado, confundem-se todas as fronteiras. Aliás, os atentados suicidas tâmeis são considerados precursores dessa tática terrorista.

Com tamanha violência como fio de sua trama, Shehan segue batendo e assoprando: o autor alterna trechos de violência com encontros entre os amigos do protagonista, e só assim é possível agarrar-se à trama e continuar, porque vale a pena.

Com um mapa da capital Colombo no verso da capa, o autor nos transporta a 1990, cita a música de Elvis, Queen e Shakin’ Stevens, quando no universo gay sair do armário era uma vitória e um desafio.

As sete luas de Maali Almeida
Shehan Karunatilaka
Trad.: Adriano Scandolara
Record
404 págs.
Shehan Karunatilaka
Nasceu em Galle (Sri Lanka), em 1975. Com experiências de estudo e trabalho no exterior, ganhou destaque com seu romance de estreia, Chinaman: The legend of Pradeep Mathew, vencedor do Commonwealth Book Prize de 2012 e ainda inédito no Brasil. É autor de três livros infantis, além de peças de teatro, roteiros para a TV, relatos de viagem, músicas de rock e artigos publicados por Rolling Stone, GQ e National Geographic. Venceu o Booker Prize de 2022 com As sete luas de Maali Almeida.
Helena Carnieri

É mãe da Catarina e do Ivan. Nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Estudou jornalismo e Estudos Literários (UFPR), além de relações internacionais e economia. Publica reportagens especiais nos jornais Valor Econômico, Folha de S. Paulo e portal UOL, e crônicas em A vida é palco.

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