Prosa pobre, pobre prosa

Boa história de "Barba ensopada de sangue" sucumbe a descrições em excesso e ação e reflexão de menos
Daniel Galera por Ramon Muniz
01/02/2013

Pensei que nunca sairia do hospital e morreria em Las Heras sem rever meus porcos. Assim que for preciso, peço que me enterrem em Hormiguero, mas nesses tempos em que nem o desejo de um moribundo é respeitado, o melhor mesmo é assegurar-me de que a vontade do pré-morto que eu mesmo sou seja realizada. Telefonei há um tempo ao Harold, que é bem mais velho e está bem mais doente do que eu, para saber como tem se resolvido com sua velhice, e, segundo me contou, não está nada contente com repórteres que vivem como abutres sobre ele. Não tenho, como Harold, que cuidar do meu obituário em jornal: não escrevi livros, não quis, como ele, ser mais que os escritores que li. Fui fiel ao ressentimento metódico que é o único fundamento verdadeiro de qualquer teoria literária e, apesar dessa vida de insucesso em todas as áreas, também tenho os meus abutres.

Os açougueiros da ala cirúrgica queriam me matar. Via seus olhares, ouvia o que diziam quanto a meu tempo de vida: “Não passa de amanhã” era a frase do gordo médico a cheirar-me dos pés à cabeça como se eu estivesse apodrecendo. Dona Eneida chorou ao pé da cama. Foi com o barulho do seu escarro que acordei há sete dias, depois de quase um mês em coma induzido. Tenho certeza de que não chorava de pena, antes era remorso, pois queria me matar assim como Noe. Desde que souberam que lhes deixei em testamento a chácara, vinha sentindo um gosto estranho na comida. A úlcera do tamanho de um buraco negro a devorar-me deve ser fruto da ingestão paulatina de arsênico. Ontem mesmo chamei meu velho advogado, Dr. Fortunato, criador de porcos como eu, e alteramos o documento. Agora, quando eu me for, deixarei a chácara, os livros, os porcos… tudo será de Luizita. Mas não contarei a ela para não ver prejudicado seu interesse por mim.

Não fosse Luizita, que voltou a Las Heras ao término das aulas, eu não teria lido o livro que o Pereira enviou a Noe para a resenha desta edição do Rascunho. O desgraçado picou o livro em pedaços e o pôs na ração dos porcos. Luizita, que apesar de ser uma moça urbana, tem a ingenuidade preservada, viu a cena e desconfiou que Noe tivesse enlouquecido. Chegou-me aqui contando essa história, aumentando o tamanho de minha úlcera, pensando em como conseguir outro livro para escrever a resenha. Eu poderia mandar o Pereira pastar, mas o Rascunho tem sido a única alegria da minha vida, além da pocilga e de Luizita, em quem ainda confio. Em minutos, tendo me perguntado apenas como era o título do livro, ela começava a leitura no leitor digital que vi pela primeira vez em suas mãos. Perguntei o que era, ela o chamou “Kindle”. Do Paraguai, completou. Imediatamente pensei em fim de mundo, fim da literatura. E consolei-me dizendo para mim mesmo que ainda bem que não tardarei a morrer.

Expliquei as verdadeiras intenções de Noe. A menina, que por traços hereditários herdados de seu tio mais velho de boba não tem nada, disse-me, com seus olhos azuis puxadinhos pra baixo que de tudo me convencem, que a teoria correta poderia ser outra: Noe devia ter lido o livro e resolveu livrar-se dele como ela mesma faria naquele momento, se eu o permitisse, sem rasgar uma única folha. E completou: folhas de papel são coisas do passado que se podem eliminar com um só clique. E apontou o dedo de cima para baixo na direção do teclado como um raio que cairia do céu fulminando alguma cabeça logo abaixo. Neguei a proposta e estranhei o mau humor da mocinha. Notei que, ao ler, pulava partes do texto. Ela disfarçou, engasgou, enrolou, suspirou perguntando-me se fazia mal em pular algumas páginas, ao que respondi que não deveria deixar de ler uma linha, sequer uma palavra, pois sou o único crítico que conheço que lê os livros por inteiro, do começo ao fim, sem deixar escapar nada. Verdade que penso que afinal vou morrer mesmo. Ela redarguiu que o livro poderia ser resumido a cinqüenta páginas, o que achei certo exagero, mas vá lá. Quando terminamos a leitura hoje pela manhã, penso que não seria de todo mau uma ediçãozinha, pois que parece que o livro foi escrito para virar filme e, sendo assim, se o filme vai ser editado, por que não o livro?

A pergunta feita por minha sobrinha não é de se jogar fora: por que há livros que dão vontade de demorar neles, em que cada frase proporciona curiosidade, alegria ou até prazer, e outros que dão vontade de largar logo ou, quando não há saída, ler de uma vez e o mais rápido possível?

Pensei em consolar Luizita dizendo que todo livro cria seu leitor e ela não tinha sido capturada por este por questões sociais e culturais. Expliquei-lhe também que, a rigor, o livro em questão não é exatamente um livro de literatura tal como a conhecíamos na minha época, em que o elemento poético do texto ultrapassava o jornalismo. Quando literatura era criação de sentido, questionamento da ordem histórica e social. Solenemente, ela perguntou “o que é literatura?” e percebi que a garota está amadurecendo. Respondi que não há resposta a esta pergunta, que a própria pergunta já não importa mais. Que a literatura é feita dos livros que as pessoas fazem em nome da literatura e dos livros que as pessoas simplesmente escrevem despreocupadas em encaixá-los no que chamamos de literatura. Ela nunca foi um problema do mundo, sempre foi apenas dos críticos e dos estudiosos, disse-me ela, e completou: “Até parece a casa da mãe Joana, onde cabe qualquer um”. Eu pedi que tivesse mais respeito, avisando que literatura é algo que se inventa a cada dia e que é, sim, um direito de qualquer um, de qualquer João Ninguém. Joguei a frase pesada para cima dela, na intenção de fazê-la pensar. Afinal, nossos jovens já não sabem o que é um clássico, mas alguma coisa têm a nos ensinar, nem que seja o que é um leitor digital.

O declínio da imaginação
Por trás disso tudo está minha alegria em acordar e ler com Luizita este livro juvenil que é a Barba ensopada de sangue. Eu daria a história a um escritor adulto sugerindo que começasse trocando o título babão. “Barba ensopada de sangue”, perdoem-me a rabugice, é um título asqueroso, ainda que se refira à barba como metáfora da transformação do garoto em homem. O autor deve ter lido muito Mark Twain e visto muito filme de Tarzan. Nada a desabonar, sou o maior admirador das histórias de Burroughs e de toda a pilantragem escrita para meninos. Não partilho a crença de que literatura adulta seja a única alta literatura. Literatura ruim, penso verdadeiramente, também pode ser boa.

Eu que estou nessa idade gostei mais do livro do que Luizita. A impressão que fica é a de que a história é muito boa, chega a ser emocionante. Mas a gramatura do texto, o tecido propriamente dito, desperdiça o nosso tempo (o qual Luizita tentou sorrateiramente salvar). A história é encompridada por um artifício muito pobre, a descrição maciça de cenas como se o livro fosse um roteiro de cinema. Nada contra os roteiros, mas confesso que me incomodo um pouco com este tratamento da literatura a serviço do cinema, como se a escrita tivesse se tornado uma atividade para compor a imagem como ação e erigir um filme possível. Luizita me disse que outro livro do rapaz já foi adaptado para o cinema. Penso que o filme ficará ótimo com este roteiro, mas para ser literatura um pouco melhor, ou seja, escrita autônoma e soberana no conteúdo e na forma, precisaria de um tratamento mais elaborado na carnalidade do texto. Talvez tenha sido a pressa em publicar antes do fim do ano.

O declínio da imaginação é um defeito desta época e de uma geração. O apego radical à descrição mais enfadonha das cenas que vemos em Barba se dá no contexto de um estilhaçamento que prejudica o livro: a descrição sobressai totalmente desligada de outros aspectos do texto para o qual a imaginação seria a cola. Quem gosta de ler sabe que o bom escritor é aquele que consegue construir um personagem em conexão íntima com a ação, a descrição e a reflexão. O livro é, a propósito, paupérrimo em termos de reflexão. Muita imagem e pouca imaginação. É isso que significa a servidão ao cinema.

Além disso, e justamente por isso, Barba ensopada de sangue está inscrito na enfadonha tendência dominante da literatura brasileira. Sabemos que a tendência dominante é a única chance de um autor ter sucesso no avarento mercado literário brasileiro. Essa tendência é a do “realismo”, a única que contenta quem, não gostando de literatura, gosta de histórias — como analfabetos gostam de mitos, e semi-analfabetos gostam de livros com letras grandes e imagens. Há autores que o praticam com maestria, mas o nosso jovem Daniel ainda tem muito a aprender superando a própria didática com que nos conduz em sua trama juvenil. Aprenderá porque não é bobo.

Verdade também é que o realismo é bom como oposição à demência romântica. Malfeito, resulta em um engodo: a fixação em uma suposta realidade como se uma certa “fotografia” ou “filmagem” das cenas não admitisse tanto a subjetividade do autor e de seus personagens. O personagem principal do livro é, neste caso, assim como todos os outros, um sujeito chapado como uma tábua da minha pocilga. Chapada é a narrativa que simplesmente dispõe os acontecimentos como se existissem meros acontecimentos. O maior erro do realismo, o que o torna pobre, é pressupor que a subjetividade não deve ter lugar, que quem escreve não pensa, não sente, como se fosse um cientista num laboratório, ou uma máquina de escrever. No realismo consistente a subjetividade deveria ser criada pela objetividade do texto quando ação, descrição e reflexão se trançariam de modo orgânico. A precariedade da teoria literária brasileira inventou, para justificar a pobreza do “realismo”, uma classificação por oposição a que vem chamando de “prosa poética”, como se a prosa pudesse prescindir do poético. Sem levar em conta que ou a prosa é poética ou é pobre. Um livro assim, de prosa pobre, não precisaria a rigor ser escrito. Poderíamos ir direto para o filme ou ficar na narrativa oral que o originou. Nada contra, ao mesmo tempo: cada um escreve o que quiser, seja literatura, seja roteiro, e os leitores que aproveitem como puderem.

Mas apesar da prosa pobre, simpatizei com o personagem. Sobretudo ao fim do livro, quando compreendi o começo. Fiz a conexão da boca com a cauda da serpente e me deu uma tristeza de chorar. Foi neste momento que valorizei pérolas toscas — e estas são as melhores — como a que segue, quando o pai pergunta ao protagonista: “já viu um porco se virando no barro? É a própria imagem da felicidade”.

Como eu os vejo todos os dias deitando e rolando, sei o que é a felicidade que nunca alcançarei. E é por isso que tenho me contentado com a literatura.

Barba ensopada de sangue
Daniel Galera
Companhia das Letras
424 págs.
Daniel Galera
Nasceu em São Paulo, em 13 de julho de 1979. É escritor e tradutor literário. Foi um dos precursores do uso da internet para a literatura, editando e publicando textos em portais e fanzines eletrônicos entre 1997 e 2001. Já traduziu 13 livros, predominantemente das novas gerações de autores ingleses e norte-americanos. Publicou até então quatro livros, além de ter participado em algumas antologias de contos. Seu Cordilheira ganhou o Prêmio Machado de Assis de Romance, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 2008, além do 3° lugar do Prêmio Jabuti.
Julián Ana

É crítico literário. Nasceu em Hormiguero, Argentina, em 1941. Foi professor visitante em várias universidades dos países de língua portuguesa, inclusive na Universidade de Coimbra onde doutorou-se em Literatura Comparada com uma tese sobre “O Devir Histórico da Terminologia”. Colaborou com diversas revistas e jornais. Aposentado, passou a residir em Las Heras e a dedicar-se especialmente à literatura brasileira contemporânea e à suinocultura.

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