Prometeu moderno

Na petulância e insanidade de "Os cantos de Maldoror", Lautréamont antecipa as vanguardas modernas
Lautréamont, autor de “Os cantos de Maldoror”
27/01/2017

Ao longo do século 19, o movimento romântico deu novos rumos à arte mundial. Antes dele, o artista era tido como o artífice que, dentro dos paradigmas estéticos já consagrados pelos escritores clássicos da antiguidade greco-latina, depois atualizados pela Renascença, buscava apenas adaptar sua visão de mundo e material literário à forma. Contudo, a ascensão da burguesia, e com ela uma concepção mais individual de existência, dentre outros fatores, possibilitou um impulso criador libertário, intuitivo, voltado também às estruturas de gênero, permitindo ao literato conceber a seu bel prazer sua arte, num processo significativo.

Obras então como Fausto — em especial a segunda parte —, a lírica de Victor Hugo e a poesia e prosa de Poe, passando pelos ultrarromânticos, e chegando à poesia pós-romântica de Baudelaire e Rimbaud manifestaram uma original expressão literária, muito íntima, não raro tangenciando o subconsciente — ou inconsciente.

Tal aspecto é premonitório das tendências artísticas — as vanguardas europeias — e do pensamento moderno — a psicanálise freudiana — já suficientemente descrentes da ordem positivista. Nesse viés, talvez não seja absurdo conceber o Romantismo como o autêntico “pré-Modernismo”, embora o próprio termo “Modernismo” seja um tanto arbitrário.

Caso notório é certa obra maldita que, concebida na segunda metade do século 19, já traz em suas negras páginas muitos recursos afins à literatura contemporânea: Os cantos de Maldoror, do conde de Lautréamont.

Formação
Lautreámont, pseudônimo do jovem Isidore Ducasse, nasceu em 1846, em Montevidéu. Natural do Uruguai, aos 13 anos mudou-se para a Europa para completar os estudos, estabelecendo-se na França, onde seu pai era chanceler do consulado. Sua mãe, consta, faleceu quando ele ainda tinha vinte meses de vida, o que por certo reverberou na formação de seu caráter prometeico tanto quanto em sua obra. Estabeleceu uma relação epistolar com Victor Hugo (em cuja biblioteca foi encontrada uma cópia do primeiro canto de Maldoror) e teve contato com a poesia de Baudelaire, a cuja influência não se esquivou, como é notório no decorrer dos Cantos.

Fora tais e outros sucessos, o que se sabe é que faleceu prematuramente em 24 de novembro de 1870, aos 24 anos, em Paris, sendo enterrado em solo francês, numa região onde hoje já não subsiste o cemitério que o acolheu. Um fim apropriado a um escritor maldito.

Não menos apropriada é tal designação, aplicável, sobretudo, à sua obra principal. Poucas fazem jus ao termo, e é duvidoso que outra a mereça tanto quanto Os cantos de Maldoror, uma imensa e debochada provocação em forma de obra poética pós-romântica cujo gênero é de difícil classificação.

O material poético
O livro, ao longo de seis cantos, enfoca essencialmente a figura de Maldoror, e sua relação niilista com os homens, com Deus — principalmente — e consigo mesmo — neste último, de forma bem ambígua. Ao leitor já calejado nas diferentes vertentes do romantismo, não há qualquer novidade, basta a lembrança de Macário, drama de nosso Álvares de Azevedo, ou, num viés menos óbvio, do Fausto goetheano, ao qual o primeiro já prestava reverência.

O diferencial é uma questão de intensidade. Em pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, o leitor testemunha uma sucessão de atrocidades deploráveis envolvendo homicídio, infanticídio, estupro, pedofilia, zoofilia, sadismo e crueldade.

“Tanto horror o homem inspira a seu próprio semelhante!”, lê-se no quarto canto; mas esse tom moralista, que eventualmente aparece no decorrer das páginas, é um fogo-fátuo enganoso, e não tarda a desaparecer:

Atirou-se resolutamente na carreira do mal… doce atmosfera! (…) quando beijava um garotinho, de rosto rosado, teria desejado arrancar-lhe as bochechas com uma navalha, e o teria feito com grande frequência, se Justiça, com seu longo cortejo de castigos, não o houvesse a cada vez impedido (…)

Curioso é que mais paradoxos emergirão à medida que o leitor percorrer essa via, como o que se estabelece entre o final do trecho acima e uma das mais sádicas e odiosas cenas de todo o livro (narrada por uma ensandecida mãe de uma criança jovem o suficiente para não conhecer da vida “ainda o fel”):

Maldoror passava com seu buldogue; vê uma menina dormindo à sombra de um plátano (…) Despe-se rapidamente (…) Nu como uma pedra, jogou-se sobre o corpo da mocinha, e levantou sua saia (…) Com o espírito descontente, torna a vestir-se (…) e ordena ao buldogue que estrangule, com o movimento de suas mandíbulas, a menina ensanguentada (…) O cumprimento dessa ordem talvez tenha parecido severo ao buldogue (…) e se contentou, aquele lobo de focinho monstruoso, em violar por sua vez a virgindade daquela criança delicada (…) Maldoror escutava as agonias da dor e se espantava de que a vítima tivesse a vida tão rija, a ponto de ainda não estar morta. Aproxima-se do altar do sacrifício e vê a conduta do buldogue (…) Dá-lhe um pontapé e vaza-lhe um olho (…) tira do bolso um canivete americano (…) prepara-se, sem empalidecer, a escavar corajosamente a vagina da pobre criança. Desse buraco alargado, retira sucessivamente os órgãos internos; os intestinos, os pulmões, o fígado e finalmente o próprio coração.

É com deleite que tais cenas são descritas e se sucedem, canto após canto, entremeadas das confissões e sensações de Maldoror (que por vezes se confunde com o narrador), com um nível de detalhes escabroso.

O ódio vesânico de seu autor volta-se não apenas contra os homens, mas também contra Quem os criou, em pinturas debochadas e blasfemas, onde o “Criador” é retratado em cores, por vezes, aberrantemente expressionistas . Talvez venham desse ódio a ele e sua ordem — isto é, a natureza — as metamorfoses e antropomorfismos presentes na obra.

Mas pode-se dizer que seu eixo é Maldoror, em suas divagações exóticas e maníacas, a despeito do que proclama ser sua divisa: “atacar, por todos os meios, o homem e o Criador”

Maldoror é, na verdade, o único ataque misantropo e herético de real valia da obra, o que é irônico quando se constata que ele é, em sua qualidade de ser humano, quase um espécime sui generis, solitário em sua crueldade, em meio a tantas outras personagens. Ao leitor resta sorrir, então, ante essa declaração (que revela o escopo fundamental desses Cantos):

Aquele que canta (…) gaba-se de que os pensamentos altivos e maldosos de Maldoror estejam em todos os homens

Não é difícil, contudo, ler tais páginas sem ser assaltado uma só vez pela consciência da perfídia integral da humanidade.

A expressão poética
Aqui está o diferencial da obra. Como descrever sua singularidade? Em suas seis partes, cada qual dividida em breves seções, o leitor se depara com uma estrutura de prosa poética, texto dramático, monólogo e mesmo um pequeno “romance” nas últimas trinta páginas. O narrador tece, às vezes, um diálogo direto com o leitor, provocando-o, com ironia, e refletindo sobre aspectos metalinguísticos. Em sua prosa, a repetição oratória, a metáfora e os símiles são constantes.

Uma mistura de Macário, Notas do subsolo, de Dostoievski, e surrealismo se aproxima da estética da obra. Este último ponto é relevante: como dito, é possível que a aversão pelo Criador e criatura condicione as imagens que tangem “os guizos da loucura e o grotesco”:

Encontram-se frente a frente o nadador e a fêmea do tubarão, salva por ele (…) e cada um deles se espantou por encontrar tamanha ferocidade nos olhares do outro (…) Uniram-se numa cópula longa, casta, hedionda! (…) Estava diante do meu primeiro amor!

A tradução de Joaquim Brasil Fontes capta o estilo do autor, em digressões provocadoras e longos períodos, intercalados por orações interpoladas.

Eis uma ideia do que o leitor irá encontrar se atravessar tais portões, e não haverá de estranhar que neles encontre a mesma inscrição que em Dante: “deixai toda a esperança, vós que entrais”.

Os cantos de Maldoror
Lautréamont
Unicamp
325 págs.
Isidore Ducasse
Conhecido como conde de Lautréamont, nasceu em Montevidéu, em 1846. De pais franceses, escreveu nessa língua, tendo vivido grande parte de sua vida — e morrido — na França. Travou contato com Victor Hugo e com as obras de poetas contemporâneos expressivos, como Baudelaire. Pouco se sabe sobre sua vida, a não ser que sua obra foi publicada de fato postumamente, talvez por temor de editores quanto a processos jurídicos relativos à moral e costumes, comuns na terra de Flaubert e Baudelaire. Morreu em 24 de novembro de 1870, aos 24 anos, em Paris.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho