Profeta novo

Primeira publicação de "Folhas de relva", de Walt Whitman, completa 150 anos
Walt Whitman: mentiroso de boa-fé.
01/10/2005

O mundo inteiro comemora neste ano o 150.º aniversário de publicação de um dos livros de poesia que mais contribuiriam para o surgimento da modernidade, e que, no entanto, em toda a sua existência, tem sido um dos mais malogrados junto à crítica e ao mercado editorial brasileiros. Dos diversos eventos comemorativos relacionados à data, destacam-se a conferência internacional promovida pela Universidade de Paris e, nos Estados Unidos, as exposições da Biblioteca do Congresso e da Biblioteca Pública de Nova York.

No Brasil, como parte das comemorações, em tradução de Rodrigo Garcia Lopes, a Editora Iluminuras lançou, neste segundo semestre, Folhas de relva, com o mesmo conteúdo da primeira edição publicada nos Estados Unidos. Essa edição se reveste de importância apenas pelo seu caráter comemorativo, pois, nestes 150 anos, nenhuma tradução ainda foi feita no Brasil contemplando o formato definitivo dado por Walt Whitman à sua obra.

A edição de 4 de julho de 1855, custeada pelo próprio autor, foi impressa na gráfica dos irmãos James e Thomas Rome, de Nova York, numa edição de 795 exemplares, com doze poemas sem títulos e um longo prefácio de mais de 20 páginas de saudação heróica à democracia e ao novo homem em gestação na América. Os exemplares seriam comercializados a dois dólares cada pelos frenólogos Fowler e Wells, que tinham uma loja na Broadway. O livro continha a energia que iria forjar a modernidade, apesar de estar filiado à linhagem romântica, não só pela égide da época em que surgiu, mas pelo que expressa o longo prefácio e o daguerreótipo de Samuel Hollyer, que deixa transparecer o herói byroniano na imagem do autor ali impressa.

Walt Whitman estava, então, com 36 anos, e até a oitava edição do livro, reescreveria, cortaria e a ele acrescentaria novos poemas. E se mais vivesse, mais reescreveria, mais cortaria e mais acrescentaria para torná-lo a obra definitiva dos ideais de um mundo democrático e de um homem livre e ético. Merece destaque especial a edição de 1882, que foi rejeitada pelo editor Osgood — depois de o livro ter sido acusado de imoralidade pela Sociedade para a Supressão do Vício — e aceita por Rees Welsh e Companhia, da Filadélfia. Os três mil exemplares dessa edição seriam vendidos num único dia, e os lucros foram suficientes para que Whitman comprasse uma casa em Mickle Street, Camden, onde ele viveria os últimos dez anos de sua vida.

A literatura norte-americana nunca voltou a se apresentar tão produtiva como nos anos que vão de 1850 a 1855. São de 1850 os livros Homens representativos, de Emerson, e A letra escarlate, de Hawthorne. São de 1851 Moby Dick, de Melville, e A casa das sete torres, também de Hawthorne. De 1854, Walden, de Thoreau; e de 1855, Folhas de relva — ambos incentivadores da liberdade individual.

Desde a sua primeira edição, Folhas de relva implantou influências que não poderiam ser negadas nem mesmo por Fernando Pessoa, que dedicou uma longa ode ao seu autor através da voz de Álvaro de Campos, onde confessa que “sou dos teus/ E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias”.

Whitman era um mentiroso confesso — mas mentiroso de boa-fé, pois as suas articulações visavam proteger sua honra e sua obra. Todas as vezes que editava uma nova edição de Folhas de relva, publicava artigos elogiosos a si mesmo, que assinava com pseudônimo. Quando duvidaram de sua sexualidade, anunciou que, mesmo nunca tendo contraído matrimônio, tinha seis filhos. Mas foram em vão todas as buscas para encontrar esses descendentes sabidamente inexistentes. E Fernando Pessoa também não deixa de escamotear as suas verdades, pois criou seus heterônimos para disfarçar em cada um deles o seu próprio pensamento ou desvirtuar aspectos nebulosos de sua vida. Portanto, ao contrário do que diz na Saudação a Walt Whitman (1915), Fernando Pessoa não nasceu no ano da morte de Whitman, mas quem está falando no poema é Alberto de Campos, e este pode ter nascido realmente em 1892.

E nem mesmo Ezra Pound — guru das vanguardas — pôde negar que “teve um pai obstinado”, apesar de tê-lo “detestado por muito tempo”, pois foi Whitman que “cortou a nova madeira, /agora é o momento de talhá-la. /Temos uma só seiva e uma só raiz: /Que o comércio se faça entre nós”. No soneto de Rubén Dario, Whitman é “um profeta novo”, “sacerdote que alenta sopro divino, anuncia, no futuro, tempo melhor”.

Apesar de ter reflexos até mesmo nos movimentos de liberação individual da década de 1970, através dos mentores da contracultura, e de influenciar poetas como Vinicius de Moraes, Ronald de Carvalho e José Godoy Garcia — entre outros do modernismo —, Folhas de relva nunca ganhou uma tradução brasileira integral. Existem versões parciais assinadas por Geir de Campos, Brenno Silveira e Péricles Eugênio da Silva Ramos, e poemas esparsos em traduções de Vinicius de Moraes, José Félix e outros. A longa introdução que consta de sua primeira edição nunca saiu em livro no Brasil; está exposta apenas na internet, em tradução assinada por Lísia Nunes. Nem mesmo as importantes seções do livro Canto a mim mesmo, Cálamo ou Comemorações do presidente Lincoln sairiam completas nas traduções até agora editadas no Brasil. Só a tradução de Maria de Lourdes Guimarães, pela Editora Relógio d’Água, de Portugal (2002), que se encontra em catálogo, é recomendada — por ser completa e ter merecido o Grande Prêmio de Tradução Literária, do PEN Clube Português. No Brasil, saiu ainda, em edição já esgotada da Jorge Zahar Editor, o livro Walt Whitman — A formação do poeta, de Paul Zweig.

Ainda em entrevista recente, o poeta e tradutor Paulo Henriques Brito confessou que lhe atrai o projeto de traduzir Folhas de relva — que poderia ser encampado com louvor por algum editor que preze uma edição elegante, costurada com brilho. A inclusão de Whitman no cânone de Harold Bloom — somado aí o transcurso do aniversário de sua obra exponencial — justifica a pressa necessária para o aparecimento de uma tradução brasileira integral da obra, com os cinco prefácios originais, sem dispensar amplo estudo introdutório.

No mundo hispânico, Whitman mereceu melhor atenção. Além de despertar interesse imediato em Rubén Dario, e destacada influência na obra de Pablo Neruda, recebeu tradução parcial de Jorge Luis Borges. Destaque para a edição definitiva e completa de Francisco Alexander, em catálogo na Argentina pela editora Colihue (2004), que Borges elogiou. Há, ainda, as traduções de Pablo Mañe Garzón (Barcelona), Armando Vasseur e Leon Felipe (os dois últimos, mexicanos).

Na última seção da nona e definitiva edição, onde o autor já prenuncia que dava por encerrado o livro Folhas de relva, pois denomina o “segundo anexo” de Adeus minha fantasia — na realidade, a última parte do livro —, Whitman inclui um poema que fez no Natal de 1889 em saudação à Proclamação da República do Brasil. A peça está na página que a Livraria do Congresso dos EUA mantém na internet, em tradução que pode muito bem ser de Vinicius de Moraes, mas que distorce e simplifica o original, pois sua linguagem não é direta. Aqui, fazemos pequenos ajustes para que o poema retome o seu aspecto vocativo.

Aí reside a atualidade da poesia de Whitman: heróica, mas contida, objetiva, “dialética”, como diria José Godoy Garcia; feita de infindáveis repetições que, salvaguardadas pelas surpresas, jamais caem na obviedade. Aí está presente o leitmotiv de Whitman — o ideal democrático, a irmandade entre as pessoas e entre as nações. A fé no homem. Se tivesse organizado uma décima edição de Folhas de relva, Walt Whitman certamente teria recortado de seus poemas as referências aos ideais humanos que entraram para o rol das ações politicamente incorretas. Basta ver o poema Um canto de alegrias, que mostra com euforia o campo de batalha e a pesca da baleia.

Salomão Sousa

Autor de A moenda dos dias, O susto de viver, Falo, Criação de lodo, Caderno de desapontamentos e Estoque de relâmpagos.

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