Prisioneiro de dois senhores

Com ferino humor, em "Agora Deus vai te pegar lá fora", Carlos Moraes percorre as dores da ditadura e as incertezas da fé
Carlos Moraes seleciona um elenco rico de possibilidades literárias, muitos deles declaradamente reais.
01/03/2005

“Hoje é sábado, amanhã é domingo/ A vida vem em ondas, como o mar/ Os bondes andam em cima dos trilhos/ E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.” Corre a vida nessa plácida obviedade: os bondes não se desviam sequer um centímetro do trajeto predeterminado, o mar segue em seu perene movimento. No entanto, Deus feito homem resolve descer a este mundo para ser imolado em nome da salvação de todos os outros homens. Salvar-nos afinal de quê? “Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias/ Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa/ Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos.” Ou seja, o que pretendia Vinicius de Moraes em seu famoso O dia da criação era ironizar a divina decisão ao sexto dia — tomada tão-somente para que Ele não ficasse, segundo o poeta, “com as vastas mãos abanando” após ter criado todo o resto — e que acabou dando no que deu. A desordem resultante da experiência humana recrudesce a cada sábado e leva a pensar que “deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação”.

Tudo o que envolve as questões de fé tem sempre algo de controverso (servindo até mesmo ao deboche do poeta carioca e de outros artistas). Nem poderia ser diferente: ainda que haja uma motivação externa, a fé é um exercício íntimo e intransferível; o consenso, a despeito de qualquer doutrinação, uma utopia. A dúvida é ingrediente constante e até mesmo essencial em seu papel de antítese à crença. Acrescente-se a isso a impenetrabilidade de alguns dogmas e preceitos religiosos, e pronto, temos aí um caldo espesso, matéria-prima de luxo para a literatura da qual, ao longo dos anos, vários escritores têm se ocupado, com os mais diferentes resultados.

Um outro Moraes, agora o gaúcho que traz Carlos como nome de batismo, ordenado padre em 1966 e tendo depois renunciado aos votos, viveu naturalmente o conflito de que se falou até agora, com o agravante de ter professado a religião para mais tarde desistir dela. Sofreu, simultaneamente, a humilhação de ser julgado e preso pela ditadura militar por uma suposta atividade comunista. De novo livre, da condenação e dos votos, tornou-se jornalista e escritor, ganhando um Prêmio Jabuti na categoria infanto-juvenil com A vingança do timão. Quando finalmente se decide, três décadas depois, a explorar na literatura sua experiência pessoal nos anos de chumbo e questionamento, produz então um romance inédito por sua originalidade, o recém-lançado Agora Deus vai te pegar lá fora. A orelha esclarece que não se trata de uma autobiografia; apesar de narrado em primeira pessoa e baseado em alguns fatos reais, trata-se de uma peça ficcional. A edição da Record traz uma elegante e sóbria capa em preto e amarelo, assinada por Evelyn Grumach e Carolina Ferman sobre foto de Ana Paula Costa, onde o inusitado fica por conta do jocoso subtítulo: anotações de um padre preso numa cidade sem zoológico. De resto, o leitor vai se deparar com outras estranhezas.

Numa pequena cidade fronteiriça do Rio Grande do Sul com o Uruguai, Padre João é preso após um tragicômico julgamento — desses que só um tribunal militar num regime de exceção é capaz de produzir. Denunciado por algum alcagüete da sua própria paróquia e condenado a cinco anos de reclusão por “guerra psicológica adversa” — seja lá o que isso for —, começa a cumprir a pena no quartel e em seguida, com a ajuda de um primo influente, é transferido para o presídio civil, onde aguarda o resultado de duas ações: a apelação da sentença a um tribunal superior e o pedido de dispensa dos votos ao Vaticano. Em função de seu parentesco com o primo ilustre, Padre João goza de alguns privilégios na cadeia. O gosto pelo futebol, como jogador talentoso e torcedor doente do Internacional de Porto Alegre, só faz garantir sua popularidade entre seus carcereiros e demais presos. O carisma de Padre João se deve em grande parte a sua atuação no esporte preferido do brasileiro: mais do que no púlpito, onde os sermões inflamados podem ter sido os responsáveis pela denúncia, foi nos vestiários e nas rodas de cerveja após os jogos que ele se aproximava de seu rebanho e ouvia histórias nunca trazidas ao confessionário. Na prisão, isso se intensifica agora nas rodas de mate e nas partidas organizadas a toda a hora sob os mais variados pretextos. Lá também ele encontra um lugar de retiro e meditação, ao qual chama de seu zigurate: uma simples tampa de caixa-d’água de onde pode vislumbrar o céu estrelado. Uma inquietação permanente é a tentativa de decifrar os verdadeiros motivos de seu processo e condenação.

Tal argumento poderia ter facilmente conduzido ao drama ou até mesmo ao paroxismo. Não é o que ocorre. Filho da terra, Padre João conhece muito bem a comunidade onde atuou. A narrativa é recheada de causos, ditos e expressões regionais, o que de forma alguma atrapalha a compreensão do leitor desacostumado ao linguajar pampiano; por estar bem dosado, isso contribui para que o texto ganhe uma insólita leveza. (É importante frisar que o resenhista, embora gaúcho como o autor, é citadino de nascimento e de moradia e tampouco está familiarizado com muitos dos regionalismos campeiros encontrados no romance. Portanto, seu julgamento quanto a esse aspecto goza de relativa isenção, ao contrário do que possa à primeira vista parecer.)

O humor afiadíssimo do protagonista-narrador é outra característica digna de destaque. Tudo o que acontece com ele é tão absurdo, tão carente de qualquer sensatez, que só lhe restam dois caminhos: o desespero ou a ironia. Moraes opta pelo segundo, e essa escolha revela um talento especial:

“De manhã, depois do café, comunicaram que eu teria uma hora de sol por dia, das quatro às cinco. À tarde, depois do almoço, permitiram uma visita do meu pai. Procurei animá-lo:

— Ora, seu Tito: depois de 15 anos de seminário, que são mais cinco?”

Pelo pequeno trecho acima, também se pode avaliar que a linguagem é contemporânea e universal — distante, portanto, do gauchismo pronunciado de um Simões Lopes Neto ou de alguns contos de Sergio Faraco. Por outro lado, Moraes é muito direto, conseguindo se ater sempre ao essencial e não gastando prosa à toa. Isso não impede que em alguns momentos a narrativa tenha um caráter um pouco mais reflexivo, propiciado pela situação conflituosa vivida pelo narrador. E mesmo nessas ocasiões a objetividade e o humor são preservados, o que garante um texto fluido e homogêneo, sem saltos qualitativos.

Moraes, que há tempo vive em São Paulo, demonstra ainda apego à vida no Sul. Uma certa nostalgia percorre toda a obra, vindo à tona sempre que o narrador se refere aos hábitos do campo. Numa bela passagem, deixa bem explícito esse sentimento:

“Parece que, de alma, ninguém desce impunemente de um cavalo na vida. Mesmo aqui na cadeia, policiais como Veledão, Américo, Artulino eram certamente homens do campo e certamente preferiam a bota, o cavalo e o gado à farda, ao coturno e a essa triste obrigação de diariamente repontar nossa tropilha de apenados.

Uma vez uma vizinha se queixou de que meu pai gritava muito de manhã, de acordar a rua, justo ele, tão calado. Até que descobri. Ele tinha muitas galinhas no pátio e mais de um galinheiro. Às vezes ficava tocando as galinhas daqui pra lá e de lá pra cá, berrando solto como se estivesse tocando gado. Aqueles gritos de tropeiro, ihu! ihu! ihu! êêêraaa! Era agora, inconscientemente, um tropeiro de galinhas. Já o Artulino, guarda aqui na cadeia, todo pôr-do-sol vai aguar um pé de milho que nasceu lá em cima no canto do muro. Artulino deve beber muito e tem uma cara ardente de amargura e cachaça.”

Do manancial de tipos singulares que habitam e freqüentam o presídio de uma cidade interiorana, Moraes seleciona um elenco rico de possibilidades literárias, muitos deles declaradamente reais. A maioria dos personagens é construída com a economia de elementos que sua expressiva quantidade impõe. Alguns chegam a ser hilários, quando têm dissecada alguma peculiaridade pelo olhar sempre ferino do narrador, como o fanhoso Cruzeira e seu divertido bordão “.udeu, cara; .udeu”, ou o homossexual Péca e suas insinuações maliciosas. Impressiona, sobretudo, que um padre possa ter uma visão tão honesta e crítica da sociedade em que vive, demonstrando padecer dos mesmos preconceitos de um simples mortal, sem que isso lhe ofusque a lucidez e o senso de justiça. Na realidade, quem narra é o homem não o padre. O sacerdócio, apenas um item do currículo, mesmo levando-se em conta o peso que isso representa na estrutura psicológica do personagem.

Para o que nos interessa aqui e acima de qualquer outra qualificação, Carlos Moraes é escritor — e dos bons. As curiosidades todas que fazem com que Agora Deus vai te pegar lá fora seja de saída um título instigante perderiam grande parte de seu valor literário se exploradas por mãos inábeis. Não é o caso. Moraes, que já havia mostrado ao que veio, confirma nessa obra que a literatura brasileira foi quem realmente lucrou com a opção feita por ele há mais de trinta anos.

Agora Deus vai te pegar lá fora
Carlos Moraes
Record
287 págs.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho