Prisioneiras das palavras

Resenha do livro "Guinada", de Cecilia Vasconcellos
01/11/2001

Quem escreve está preso para sempre na alma de quem lê. Não há como fugir. Porque tudo o que é impresso ganha força descomunal. Cria vida. Invade, bagunça, relaxa. Destrói, até. Colocar palavras no papel é perigoso. Elas, as palavras impressas, ficarão para sempre. São imagens. Feito fotografias. Não se dissipam com o vento.

Tenho muitos prisioneiros. Mas lembro pouco de minhas primeiras impressões com a leitura. Sei que quando percebi que juntando uma porção de letrinhas formava palavras e juntando uma porção de palavras formava uma idéia, fiquei fascinada. Lia tudo o que via pela frente. Meus pais enlouqueciam. No carro, começava uma palavra, terminava outra. A velocidade do automóvel não me permitia uma leitura integral. Mas me divertia. Entendia o mundo. Ou achava que entendia. Na escola, lia textos bobos nas cartilhas. “Vovô viu a uva” e afins. Meus primeiros professores, não muito criativos, não tentavam lançar outras idéias para que os pequenos aprendizes caçassem com suas finas redes.

Depois de ler vários livrinhos sobre gatos que perderam o rabo, patos que moravam no mato, sapos que pulavam no asfalto, fiz a maior descoberta de minha pequena vida: a estante de livros da madrinha Odete. Para meus sete anos, era a maior estante do mundo. Com o maior número de livros que eu já tinha visto. Fiquei doida com a quantidade de palavras que havia ali. E a infinidade de coisas que elas representavam. Quase nenhum tinha figuras, como os que eu lia na escolinha. Era um palavreiro só. Dava até medo.

Então ela, a minha madrinha, lia para mim. Era uma coleção de livros de capa dura. Coloridos em amarelo, verde e azul. Adorei a história de João, que trocou uma vaca por feijões mágicos e subiu ao céu, bem acima das nuvens, para lutar com um gigante assustador. Mas fiquei encantada mesmo com as peripécias de um bando de soldados que se enfiaram dentro de um cavalo de madeira para invadir um castelo e salvar a mocinha.

Fui perdendo o medo das palavras e elas foram fazendo parte da minha vida. Lia sempre que tinha um tempinho. Gostava de gibis e contos de fadas. Aquele mundo colorido ficou encalacrado na minha cabeça. Vez por outra me aventurava e encarava um livro maior. Mergulhava nas histórias inventadas por mentes que também tinham sido invadidas por um mar de palavras. Por mentes de pessoas que tinham aprisionado idéias vistas em outros livros.

Claro, isso não é uma exclusividade minha. Acontece com todos que viram leitores. No começo, um mundo cheio de descobertas incríveis e bonitas. Depois… Depois algumas dessas descobertas são mais acinzentadas, menos incríveis. Mas descobertas, sempre. Algumas que podem até mudar o rumo da vida do sujeito. Uma reviravolta como a que aconteceu com Valdice de Souza. Pessoa que saiu da cabeça de Cecilia Vasconcellos. Tímida. Demais mesmo. Não conseguia exprimir um pensamento sequer sem observar a aprovação da irmã, Valdora. Mas escrevia. E todas as palavras que colocou no papel ficaram presas na alma da “professora” Sylvia. Aquela que tinha lhe apresentado aos livros. Aquela que tinha lhe dado “Cinderela”, que estava meio escondida na estante da biblioteca da escola.

Em Guinada, Cecilia mostra — ou tenta, pelo menos — a importância e a força da literatura. Nada de muito especial. Nem genial. Longe disso. É um livro simples. Com personagens simples. Previsíveis, até. A moça tímida que muda de vida por causa da professorinha. A professorinha — que na verdade é uma escritora — que muda sua vida por causa da menina tímida e dos filhos, umas pestinhas hiperativas que mudam por causa das psicólogas. O ministro que não muda em nada. O fazendeiro que perde a ingenuidade da gente da terra e cai no jogo sujo do político. O advogado que não muda nunca. Os sem-terra que mudam daqui pra lá. Coisas assim, comuns. Que vemos todos os dias.

Este é o primeiro romance de Cecília Vasconcellos, uma carioca formada em História. Ela escreveu a obra enquanto esteve reclusa na fazenda Sagarana, em Goiás. Assim, feito sua personagem. Em alguns momentos, o livro parece que vai realmente fazer jus ao título que a autora escolheu. Parece que vai haver a tal guinada. Mas não. A história segue em linha reta. Se autora tenta fazer uma curvinha se arrepende e volta ao ponto de partida. Cecília parece ter mais medo que Valdice.

A história é a seguinte: Sylvia é uma contista que decide escrever um romance. Mas aquela vida agitada de Brasília — onde mora com o marido, o Ministro Jonas, e seus dois filhos — não a deixa produzir nada decente. Depois de quase perder as estribeiras quando vê o filho mais novo balançando as perninhas no ar, sentado no parapeito da janela do apartamento, Sylvia é mandada para uma fazenda no interior de Goiás. Lá, nas terras de Luís Tenório, ela poderia escrever seu romance em paz. E tinha o aval do marido, o ministro. Mas a vidinha bucólica e cheia de novidades para a moça da cidade era muito mais interessante do que qualquer livro que ela pudesse escrever. Dava aquela preguicinha de pegar no batente e jogar as palavras no papel.

Mesmo assim, capengando, escrevia alguma coisa. Umas observações soltas em um cadernão. Estão lá, na página 110, coisas do tipo “O leitor é um voyeur privilegiado, um receptador de intimidades que o romancista rouba em estado bruto, lapida e lega”. Ou “Escrever além do desfecho é atirar migalhas ao leitor saciado, é enfastiá-lo com coscuvilhices.” (Mas as frases soltas — especialmente essa última, que diz para não encher o leitor com mexericos, coisas sem importância — não são respeitadas nem por Cecilia. Porque o texto de Guinada é longo demais. Uma porção de informações superficiais e supérfluas. Em uma próxima edição, quem sabe ela poderia poupar ao leitor umas tantas páginas.)

Sylvia se diverte com as peripécias dos gaúchos que moram por ali. Vai até a um bailão, em um CTG (Centro de Tradição Gaúcha), e dança vanerão com o dono da fazenda. E escreve tudo no tal cadernão. É bem fogosa essa escritora. Porque nem bem separou-se do marido já pensa em artimanhas para levar o Luis Tenório para a cama. E consegue, é claro. Vestida de prenda, com os cabelos presos, depois de dançar o vanerão. Vira sua amante. Mas pensa que precisa fazer algo de mais proveitoso enquanto não termina seu romance.

Aceita a proposta de dar palestras sobre literatura para as crianças da escola. É lá que conhece Valdice, a moça tímida. Ela e a irmã não conseguem passar da quarta série. Sylvia vira voluntária para incentivá-las ao estudo. Tratamento especial. Usa a literatura como base para todas as outras disciplinas. Serve até de exemplo para que as meninas leiam e escrevam. (O que deixa o livro, portanto, cheio de metalinguagens. Um tanto enfadonho. Tudo naquela mesma página que fala das coscuvilhices. Do tipo: “Querido, lembra daquele curso de roteiro que freqüentei até o fim, apesar de sua objeção? Nele, aprendi que o personagem principal precisa ter um amigo confidente. Pois é. Hoje eu tenho a Adelaide, e só por isso o curso valeu a pena. Lembra da palestra sobre a Poética de Aristóteles, que você quase me dissuadiu de assistir, por ser coisa muito antiga e ultrapassada? Nunca criei uma linha baseando-me no filósofo grego, é verdade, mas, graças à curva dramática que ele traçou há dois mil anos, descobri que cento e tantas páginas do meu romance não passavam de pura tolice”. E por aí vai.)

Entre uma viajada e outra, Sylvia ensina as irmãs Souza. Mas se apega mesmo a mais novinha. A que tem asma e não consegue encará-la sem perder o ar. Sente que ali há um segredo. E faz de tudo para descobrir. Cutuca a menina até o limite do insuportável. E aí, assusta-se com o que vê — ou lê, já que a aprendiz gosta tanto da brincadeira de anotar as coisas em um cadernão que só consegue se expressar transformando tudo em palavra escrita. Em vez de ajudar a menina, confusa que só ela, decide voltar a sua vidinha normal lá para os lados do presidente da república. Passam-se quatro anos. Valdice telefona. Diz que matou um bebê. E Sylvia sente-se responsável. Porque ensinou à menina que ela poderia tudo. Se lesse e escrevesse. As duas ficaram, para sempre, aprisionadas às almas uma da outra.

Guinada
Cecilia Vasconcellos
Record
253 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho