Transitar por dois momentos de um mesmo ambiente e colher as idiossincrasias de cada instante para tentar entender a psicologia de quem os vive. Essa não é uma proposta fácil de ser levada a cabo, mas mesmo assim tem sido uma constante no discurso literário. O confronto de passado, presente e futuro encanta escritores de todos os tempos, daí ter se tornado tema recorrente, o que faz ainda mais desafiadora sua retomada.
Em seu mais novo romance, O filho renegado de Deus, Urariano Mota enfrenta a fera. O enredo fala de Jimeraldo. Durante o enterro de uma antiga amiga de infância, já no século 21, no cemitério de Santo Amaro, no Recife, ele escuta uma voz e uma ordem: “Senta, filho, que os mortos voltam”. A voz é da própria mãe, morta e ali enterrada nos anos 1950. Já a ordem o faz voltar à infância, quando ainda morava com a mãe, Maria, e o pai, Filadelfo, numa vila de casinhas minúsculas e iguais. A partir de então, tudo decorre.
A primeira coisa que chama a atenção no livro é a insistência do autor em manter os personagens presos aos medos e preconceitos da primeira metade do século passado. É preciso ir bem além da metade da narrativa para se livrar daquela época. Isso às vezes cria um jogo de repetições e recorrências que incomoda o leitor:
O amor de que Maria precisava, em linhas gerais, poderia ser compreendido como uma negação. Isso significa dizer: um antônimo, um oposto, uma negação total de Filadelfo, se tal fosse possível. Mas se ela estava com ele, como negá-lo na totalidade? Como ela poderia atravessar aquela massa escura, de cheiro de charque e vinagre, e dele dizer não é comigo? Filadelfo estava plantado em seus sonhos como um acidente ou uma pedra irrecusável.
Assim se narra toda trama, com o narrador onisciente a ir além do contar, mas também a insinuar conclusões e tentar detalhar ao extremo os sentimentos íntimos dos personagens — quase não deixando folgas para que o leitor construa por si próprio o imaginário das épocas descritas. Mais que aquele ser que tudo sabe, o narrador é quase um professor a ministrar verdades indissolúveis.
Caldo de cultura
Deixado de lado este, digamos, cacoete do escritor, já que a mesma fórmula está presente em sua novela Soledad no Recife, o romance se desenvolve como uma narrativa segura. Há um ritmo que, enquanto não é quebrado pelas descrições excessivas, segue num compasso evolvente. Isso fica muito definido quando se fala das particularidades que envolvem os moradores do beco. Cada um tem um drama, uma vida que foi marcada por acontecimentos profundos e que são descritos de maneira linear, como uma espécie de cordão que vai puxando histórias, puxando histórias, puxando histórias.
A seqüência se parte justamente quando o autor volta às catástrofes cotidianas que envolvem a família-núcleo. Jimeraldo, o menino intimidado pela violência do pai e o carinho da mãe. Maria, a mãe gorda, fatalista e sem qualquer atrativo de beleza. Filadelfo, o pai opressor, intratável e frustrado com suas origens. Maciel, o tio homossexual, irmão de Maria, que não consegue se definir na vida e sobrevive dos parcos favores da irmã.
Tudo se passa num ambiente restrito. É o Recife que está ali, mas não a cidade amplificada em seus rios e mares. Ao contrário, os espaços são limitados, escassos: becos estreitos, casas miúdas, cubículos infectos. Até mesmo o centro da cidade, com a efervescência de seus dias é algo distante, onde se veste a melhor roupa para se ir até lá. Urariano descreve, enfim, uma cidade em miniatura, restrita em seus espaços, mas real e viva.
Neste universo circulam personagens ferroados pelas marcas da miscigenação e da diversidade. São marinheiros, donas de casa, trabalhadores do cais, antigas prostitutas, um senhor com resquícios de feudalismo, enfim, uma salada de tipos que povoam uma existência suburbana que, já nos anos 1950, se diferenciava pela luta infinda da sobrevivência.
Naturalmente que aí vai crescendo o caldo de tramas e preconceitos que advém de todas as pobrezas, da econômica à espiritual. Então tais personagens se fecham em suas verdades indissolúveis e revelam um outro lado da vida, quando pouco adiante as atitudes, pois tudo deve se moldar por um código fomentado nas experiências pessoais e coletivas. Daí é que deve vir a capacidade para a aceitação ou a rejeição de quem está envolvido em toda este caldo de cultura.
Um dos pontos que salientam bem essa questão é a descrição dos irmãos Maria e Maciel. Ela é gorda, fora dos padrões de beleza mesmo daqueles idos distantes. Chega mesmo a vencer um concurso por pesar tanto quanto uma cantora obesa que se exibe requebrando para uma platéia de homens sedentos. Ele é esbelto, mas está marcado pela fome e pela homossexualidade. Isso o torna um derrotado, um inadaptado ao universo machista que o circula.
Reflexos
O que Urariano Mota nos mostra é um jogo alegórico de como os preconceitos e as canalhices de um tempo terminam por moldar o passo seguinte da humanidade. O reflexo de tudo isso é a revolta que vai crescendo no peito do protagonista, Jimeralto. Esta revolta o leva à luta política, à clandestinidade. E mesmo na democracia, depois da anistia, ele se sente inadequado, fora do contexto, preso à repressão que sofreu desde a morte da mãe.
E aqui chegamos ao grande objetivo da prosa de Urariano: discutir o que foi a repressão no Brasil após o golpe político de 1964. Esta data é emblemática a toda literatura do autor. Houve uma ruptura que quebrou todas as possibilidades de sonho de uma geração. E esta dívida é o que ele cobra, debate e instiga.
E dando os trâmites por findos, temos em O filho renegado de Deus uma trama narrada com segurança e volteios, numa linguagem paralela à fronteira entre o formal e o alegórico e que se volta à discussão das nossas feridas políticas ainda abertas.