Uma odisséia, similar às cativantes e não menos pungentes viagens que transformam a vida de seus tripulantes. É assim que o leitor de Clarice,, biografia assinada por Benjamin Moser acerca daquela que é, para todos os efeitos, a mais simbólica autora brasileira do século 20, Clarice Lispector. Editada pela Cosac Naify, Clarice, revisita a vida da escritora ucraniana radicada no Brasil e, de quebra, estabelece um novo patamar no que se refere aos perfis, ensaios e narrativas sobre as vidas dos escritores. Saem de cena os detalhes mais pontuais, espasmódicos, brejeiros, dando lugar a outro tipo de interpretação, sem medo de parecer original demais ou de rever as outras leituras acerca da obra do biografado. Isso não quer dizer que Benjamin Moser quer ensinar aos escritores brasileiros como escrever biografias. Cada biógrafo conta com suas próprias técnicas e métodos para apuração. Todavia, até por esse motivo, é necessário reconhecer o diferente quando este aparece. E é justamente o caso de Moser com sua biografia de Clarice Lispector.
A biografia de Clarice Lispector é diferente porque o autor, já nos primeiros capítulos, propõe uma tese como eixo temático de sua história, a saber: a questão da identidade em Clarice Lispector, elemento até então pouco abordado por aqueles que desejavam investigar “que mistério tem Clarice?”, como canta a música. Nesse ponto, é bom que se diga, podem existir divergências acerca da validade dessa interpretação. Correta ou estapafúrdia, é necessário conceder ao autor o benefício da dúvida, uma vez que a obra não faz dessa tese algo apenas simbólico. É bastante sério. Não por acaso, as primeiras páginas da biografia remetem exatamente às origens da autora de A maçã no escuro. Para Benjamin Moser, antes de ser escritora, Clarice é uma autora que todo o tempo debateu de forma recorrente a noção de pertencimento. É certo que algum leitor pode imaginar que isso se deve à leitura contemporânea de Clarice, haja vista o fato de boa parte das pesquisas acadêmicas, hoje em dia, lidarem com essa tendência interpretativa. No entanto, é fundamental reconhecer que, no livro, os argumentos utilizados pelo autor são convincentes.
Assim, à primeira vista, o texto de Benjamin Moser pode pecar por pouca objetividade, acusariam alguns aiatolás da narrativa jornalística. É preciso ter parcimônia, ou, mais indicado, não cometer alguns equívocos baseados na leitura de textos nacionais do mesmo gênero. Pois, de fato, biografias escritas por jornalistas brasileiros sobre artistas (?!) locais são combustíveis dessa idéia bruta sobre o modo de escrever biografias. Em outras palavras, deve-se começar o texto com um perfil à maneira das revistas de reportagem, sublinhando os desvios e os pecadilhos; enfatizando as aspas mais bombásticas; e apelando para a revelação mais sórdida sobre a personalidade. Sim, existe a noção de que as biografias brasileiras são excepcionais apenas quando há uma grande descoberta, que, muitas vezes, é apenas um gancho, criado por editores, assessores de imprensa e lobistas do mercado editorial. Em Clarice,, essa tendência inexiste. Talvez por esse motivo alguns tenham escrito que se trata apenas de um esboço biográfico. Em momento algum, cabe ressaltar, Benjamin Moser pretende esgotar o assunto. Malgrado o fato de a própria editora que publicou o livro tenha feito das suas — “uma biografia como você nunca viu” —, as ambições do autor não são tão absolutas, ainda que ambiciosas.
Pertencimento
A ambição reside no fato de que o autor busca associar toda a trajetória de Clarice Lispector à questão de pertencimento, como se sua produção literária refletisse de forma cifrada sua existência plena. Assim, o fato de ter nascido na Ucrânia, ter morado no Recife e depois ter vivido no Rio de Janeiro são aspectos tão essenciais quanto a leitura de clássicos como Crime e castigo, de Dostoievski, O lobo da estepe, de Hermann Hesse, ou a obra completa de Machado de Assis. O autor fundamenta essa tese com base nos depoimentos que compõem a narrativa. Assim, embora não seja refém desse recurso declaratório, é correto afirmar que o escritor faz uso disso quando necessita ilustrar a importância de cada detalhe. Nesse aspecto, cumpre atentar ao fato de que Moser manteve diálogo com as fontes certas, não fugindo da pesquisa de campo — característica associada apenas aos jornalistas e repórteres — para colher tantos depoimentos relevantes.
Afora isso, nota-se, também, que Benjamin Moser, como biógrafo estrangeiro de uma escritora ucraniana radicada no Brasil, entendeu ser totalmente necessária a sua aclimatação nos territórios aos quais a escritora pertenceu. Com isso, em vez de apenas manter a conversa desinteressada com os locais, o autor se propôs a estudar os principais movimentos que desencadearam passagens importantes na vida de Clarice Lispector. O leitor conhece, com isso, as particularidades da cidade natal da escritora; dos pogroms; e do contexto político existente na década de 1910-20, período que antecede o nascimento de Clarice. De forma semelhante, ao tratar de seu período no Brasil, o biógrafo disseca com propriedade os meandros do país que queria se assentar como contemporâneo do mundo, das idas e vindas do governo Vargas e, muito antes disso, de como Pernambuco se constituiu como espaço importante para o desenvolvimento nacional, sobretudo no período do governo de Maurício de Nassau. Aqui, algum leitor brasileiro há de reclamar que, para o público informado, essas informações podem soar repetitivas. É preciso lembrar, todavia, que este é um livro que foi publicado primeiro fora do Brasil, onde poucos conhecem a realidade local.
Mais do que isso, o resgate histórico proposto por Benjamin Moser remete à necessidade de, simultaneamente, situar a biografada no tempo e no espaço, como resultado das tensões de sua época, e dar sentido às decisões e escolhas feitas em cada momento de sua trajetória. Posto de outra forma, é como se o autor dissesse que as condições históricas e culturais também foram elementares na formação do gênio de Clarice Lispector, detalhe que não necessariamente é recorrente nas diversas interpretações da obra da autora — o que existe, e o biógrafo comenta, é certo apelo ao “místico”. A propósito, este parece ser um campo vasto para a exposição da sofisticação literária de Moser. E ele não escolhe um momento exato para isso, embora a biografia seja construída de forma linear. Em diversos momentos do texto, Moser resgata um trecho, articula com declarações concedidas em várias entrevistas e propõe uma reflexão sobre o significado de cada obra, como que um esboço interpretativo.
Em que pesem essas características de estilo e de método, o biógrafo não descarta suas convicções em relação à personagem que dá título a seu livro. A Clarice Lispector de Benjamin Moser lidou com seus conflitos a todo tempo, não deixando escapar nenhuma dessas complexidades. Assim, o fato de seus livros ainda parecerem algo misteriosos para boa parte dos leitores não deve reforçar o aspecto místico que ronda a personalidade da autora; antes, esse detalhe deve ser encarado como desafio para o alcance de uma abordagem mais densa e mais sofisticada acerca do significado da literatura. Em certa medida, foi dessa forma — resgatando sua identidade, interpretando sua trajetória literária; e indicando seus dilemas — que, diante da esfinge Clarice Lispector, Benjamin Moser não foi devorado.