Poucos como ele

Compilação de crônicas de Sérgio Milliet se baseia em seus “Diários críticos”, publicados entre 1944 e 1959
01/05/2006

Como diz Platão, em vão um homem sério baterá à porta da poesia. Mas, graças a Deus, o mundo não é feito apenas de homens sérios, isto é, de gente dotada de boa lógica e muita sensatez. O mundo também é feito de loucos, aliás bem menos perigosos do que os outros.

Esse é o início de uma crônica de Sérgio Milliet, publicada no dia 2 de junho de 1955, e que parece ter sido escrita hoje. Sobram poucos como Milliet, um Wilson Martins, um Antonio Candido, para citar apenas dois nomes, até porque, a bem da verdade, faltam criaturas dessa estirpe no jornalismo e na crítica literária. Na literatura também.

“O homem sério aborrece as palavras imprecisas cuja vagueza lhe inspira receios. Não se lhe fale em sensibilidade, alma, coração, nem se ouse diante dele uma metáfora mais ousada. Ei-lo de imediato desnorteado e portanto agressivo”, diz Sérgio Milliet, como se ainda estivesse no Pari Bar, na Praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro velho de São Paulo. Ali reunia especialmente jovens poetas — os então chamados de novíssimos de Massao Ohno — e com eles conversava tardes inteiras, especialmente sobre poesia, que ele respeitava acima de tudo. Essa São Paulo não existe mais. Nem mais existe a figura de Milliet, atenta a tudo, como poucos o fizeram com tanta lealdade a si mesmo.

O pensamento de Sérgio Milliet está aberto no livro As melhores crônicas de Sérgio Milliet, série dirigida pela escritora Edla van Steen, da editora Global. O volume foi organizado por Regina Maria Salgado Campos, professora doutora do Departamento de Letras Modernas da USP. Ela diz (o que pode se estender aos que ainda conseguem pensar no país): “Quanto mais leio a produção de Milliet, mais me deixo encantar por sua erudição”. É assim mesmo. O livro tem por base os Diários críticos, de Milliet, publicados entre 1944 e 1959. Sérgio Milliet nasceu em 1898, em São Paulo, onde morreu, em 1966. Crítico de arte, sociólogo, professor, tradutor, pintor. Mas, acima de tudo, um homem que respeitava a literatura. Portanto, e com certeza, não poderia viver atualmente.

“Para quem, como eu, embora crítico, tanto descrê de crítica e de críticos, principalmente de crítica e críticos de jornal, reconforta a companhia de um Álvaro Lins”, escreveu, no dia 30 de janeiro de 1942. Nesse mesmo ano, mas no dia 1.º de dezembro, lembrou “que relia de quando em vez suas próprias obras de ficção. Não só para observar melhor, com o recuo necessário, os deslizes e os erros, mas também para reviver emoções, apreciar mesmo a maneira pela qual as pôde exprimir”. Mais: “A volúpia amarga de recordar, eu a considero como uma espécie de entorpecente, cocaína, ópio, algo que aveluda a alma e ao mesmo tempo repugna ao estômago”.

Pobre Sérgio Milliet: vivesse hoje sentiria uma espécie de vergonha, profundo constrangimento para as letras pátrias detonadas por gente que atravessa esse pântano de mediocridades com espaço garantido nos suplementos culturais: “Quando, cansado das leituras profissionais, volto aos antigos, ocorre sentir-me profundamente desanimado ante a forçosa repetição de tudo o que já foi dito”, escreveu, em 4 de setembro de 1943. Sessenta e três anos depois, essas palavras são contundentes para a atualidade sombria da literatura brasileira. Nisso devem se incluir especialmente a poesia e o chamado jornalismo cultural envolvido nas mazelas brasileiras que alcançam praticamente tudo.

No dia 15 de janeiro de 1944, Sérgio Milliet escreveu:

Raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já se sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá-los. Quando, porém, o autor é novo, há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo.

Nessa ocasião, particularmente, Milliet tinha muitas razões para se sentir feliz diante de um livro de uma escritora de nome que, para ele, soara estranho. Até desagradável, como escreveu. Achou que se tratava de pseudônimo: “Mais uma dessas mocinhas que principiam ‘cheias de qualidades’, que a gente pode até elogiar de viva voz, mas que morreriam de ataque diante de uma crítica séria”. No entanto, nessa vez, Milliet se rendeu a um texto de pura beleza de uma escritora chamada Clarice Lispector, que lhe enviara Perto do coração selvagem. Escreveu, então: “Pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques”.

Dilemas
Participante da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, Milliet sempre se deparou com dilemas que talvez não declinasse nas conversas que tinha com alguns então jovens poetas paulistanos aos quais dedicava sua amizade. No dia 12 de dezembro de 1944, escreveu:

Essa geração de 22, que ora depõe com certa amargura e não raro toma atitudes de vítima, foi, mais ainda do que as outras, uma geração negativa. Ela foi contra, insolentemente contra, anarquicamente contra. Entre os seus representantes nem mesmo um programa se revelou possível, pois ela compreendia, em literatura, desde os simbolistas até os dadaístas, e em política desde os integralistas até os mais ortodoxos esquerdistas. Sem falar nos oportunistas e nos cavadores.

Milliet dizia que faltou a essa geração uma ideologia, mas não careceu ela de entusiasmo vivo:

No fundo, ante os problemas de sua época, os homens de 22 faziam como Tristão Bernard fez agora em 1941, nas prisões da Gestapo. Sonhava com a evasão, pela arte, de preferência ao suicídio porque ‘mon emmerdeuse d´âme est peut être imoortelle’. Aos jovens de hoje talvez a alma preocupe menos, e menos, portanto, a evasão do que as relações positivas. Tanto melhor. Sinal dos tempos e bom sinal, reconfortante sinal.

Em 5 de maio de 1945, volta ao assunto: “Sinto-me à vontade para fazer esses comentários, porque em 22 fomos assim: irrefletidos e primários. Salvou-nos o lirismo, redimiu-nos o trabalho destrutivo que então efetuamos. Mas toda a nossa crítica positiva dos primeiros anos, da época heróica, se esboroou em virtude da nossa ignorância satisfeita”.

Comentava, então, a crítica feita por um integrante da nova geração, “senhor” Antonio Candido, que “prima pela conscienciosa procura de uma verdade e dos valores reais, além e acima dos imediatismos escolares, dos modismos, do transitório atualista”.

Explicou: “Em 22 nós obrigávamos os velhos a subir no coqueiro da crítica e os sacudíamos valentemente até caírem. E se por acaso resistiam, nós os derrubávamos a tiros, a pancadas, sem piedade. Hoje a operação se processa quase carinhosamente e o senhor Antonio Candido estende redes protetoras por baixo do coqueiro…”.

No dia 10 de janeiro de 1946, comentou o livro O engenheiro, de um certo João Cabral de Melo Neto, dizendo que o titulo o assustava um pouco: “Essa poesia de João Cabral de Melo Neto lembra-me bastante as telas puristas do modernismo. Apresenta-se com a mesma eurritmia, mas também com a mesma secura (que a mim não incomoda) e por vezes (o que me incomoda) com o mesmo intelectualismo”.

Observava, no caso de João Cabral, que com esse intelectualismo a comunicabilidade cessava, havia uma interrupção de corrente: “Acontece também, como nessas mesmas telas, verificar-se uma carência de emoção no poema dominado pelo andaime. Ou um desequilíbrio de emoção, o que faz com que dados versos se imponham com prejuízo total dos demais”. Escreveu, no entanto, que a poesia de João Cabral continha música, e isso lhe parecia uma qualidade intrínseca, que devia ser assinalada: “Musicalidade de melodias, quando muito de acordes, mas não de grande orquestração sinfônica”.

Sempre um todo
Aos poetas e à poesia, Milliet sempre deu atenção especial. Tinha pelos poetas admiração respeitosa, e nisso incluía, também, os jovens poetas que dele se aproximavam.

Dizia que o poema é sempre um todo. Para alcançar nível poético, o poema precisa de linguagem adequada — e isso não implica dizer nobre —, musicalidade, poder sugestivo e emoção. Afirmava ser evidente que, conforme o poeta, uma ou outra dessas qualidades predomina: “O poema, porém, não será poema se de qualquer uma delas carecer por completo, ou se uma delas se hipertrofiar a ponto de abafar as demais”. Observava que sob o aspecto da realização artística, o poema se assemelha ao quadro, à estátua, à peça musical, a qualquer obra de arte, já que — como afirmava — a obra de arte só se faz realidade na medida em que atende às exigências de um relativo equilíbrio de todas as qualidades essenciais.

Escreveu que para o poeta nada é mais natural que seu amor à palavra: “Não se compreenderia aliás que assim não fosse, como não se compreenderia que o pintor não tivesse pela cor uma decidida ternura. Entretanto, se amar as palavras é louvável, dividi-las em classes, separá-las em aristocráticas e plebéias, em vulgares e poéticas, é bem menos admissível”, escreveu, no dia 2 de junho de 1951. Dizia que nas gerações mais recentes, na época, sobretudo em São Paulo, observava-se “um estranho cuidado em selecionar novo-ricamente os vocabulários poéticos, dando guarida aos mais pedantes e prescrevendo-se os menos pretensiosos”. Afirmava, então, que o sintoma o assustava, pois sempre soube de igual ocorrência nas épocas de decadência. Escreveu: “Os poetas da nova geração, depois dos excessos de vulgaridade da turma de 22, encheram-se de pudor e já não admitem sequer que se diga cachorro em vez de cão. Passam assim de um extremo a outro e se arriscam a voltar ao convencionalismo das palavras nobres de famigerada memória”.

Ao comentar um estudo de Apollinaire, de Jeanine Moulin, escreveu em 7 de julho de 1953:

A qualidade da poesia, se não reside, evidentemente, no tema, tampouco diminui com o assunto. Tudo está em ter o poeta vivido realmente o que exprime e… ter talento, pois quando não é a falta de talento que prejudica o poema do participante, é a impostura da mensagem, o artificialismo da atitude assumida. Para o grande poeta não há temas: há emoções e são as emoções que ele exprime, mesmo quando se ligam a temas ocasionais. Por isso se não recua diante do possível assunto, deste pode prescindir igualmente.

Em 22 de novembro de 1956, escreveu sobre uma certa geração que começava a surgir em São Paulo. Alguns dos poetas, então, eram adolescentes, com 16, 17, 18 anos:

Chega de pesquisa. É preciso começar a falar. Eis em resumo o que me parece desejarem os rapazes da geração ainda inédita e que vêm acompanhando, algo desiludidos, a atuação de seus predecessores. Sem dúvida, há que renovar a língua, trocar de ferramentas para construir um mundo à espera de novos operários. Mas que não fique na busca permanente das formas e mais formas, esquecendo o conteúdo.

Por fim, uma palavra que, para alguns poucos, pode valer até hoje: “Como são jovens e entusiastas ainda, acreditam na poesia, mas querem-na como conseqüência necessária do ato poético da vida. Querem-na como o fizeram Saint-Exupéry e Garcia Lorca, os profetas da Bíblia e Walt Whitman: humana, profundamente humana, e construtiva, expressão do homem dentro de uma realidade”.

É quase certo que os então jovens poetas dessa época não compreenderam o que lhes escreveu Milliet. Nisso, é também certo, Milliet errou. Nem todos tinham ou tiveram essa vocação da poesia. Muitos foram ser práticos na vida. Alguns se tornaram executivos do poema, tratam a palavra com desdém, mas com marketing agressivo. Outros findaram-se no primeiro livro. Outros ainda findam sangrando até hoje em livros mentirosos. Usam a poesia não se sabe exatamente para quê. Alguns poucos são poetas, escrevem poemas com poesia, usam a palavra para escrever. Esses morrem todos os dias. E nem percebem.

As melhores crônicas de Sérgio Milliet
Sérgio Milliet
Global
336 págs
Sérgio Milliet
Nasceu em São Paulo, em 1898, e morreu na mesma cidade, em 1966. Foi poeta, crítico, cronista e tradutor, um dos intelectuais brasileiros mais influentes do século 20. É autor de vários livros, entre eles Poemas, Oh! valsa latejante, …Carta à dançarina, De ontem, de hoje, de sempre: amigos, amiga e De cães, de gatos, de gente.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho