Porco com asas

Os males que "Madame Bovary" causou a Flaubert, um escritor que adoeceu ao construir sua obra
Ilustração: Marco Jacobsen
01/10/2006

Adoecer de um livro não é uma experiência incomum. O Quixote, de Miguel de Cervantes, adoeceu enlouqueceu — dos romances de cavalaria que tanto apreciava. Contaminado pela leitura, passou a lutar contra moinhos de vento. Emma Bovary, o mais famoso personagem de Gustave Flaubert, sucumbiu aos romances cor-de-rosa que lia para fugir da vida provinciana e cheia de tédio com o marido, o médico Charles Bovary. Tentou transportar os livros para a vida real, buscando amantes que preenchessem seu vazio; os amantes nada lhe deram e ela, desencantada, cometeu suicídio.

A leitura dos grandes livros pode provocar danos profundos em quem lê. Mas ler grandes livros cerca de fortes suspeitas, ainda, aquele que lê. Certa vez, um amigo sincero me procurou, cheio de cuidados, para me dizer que “precisávamos conversar”. Surpreso, já que éramos vizinhos e nos víamos quase todos os dias, perguntei: “Conversar sobre o quê?” Entendi, então, que este amigo querido acreditava, sinceramente, que eu não estava bem — embora eu me sentisse perfeitamente bem. O motivo: dias antes, em uma visita de surpresa a meu apartamento, ele me encontrou lendo o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. “Você não pode estar bem”, ele me disse. “Quem lê um livro desses está sofrendo de alguma coisa”.

A suspeita do amigo, ainda que carregada de preconceitos e de uma grande desconfiança a respeito da literatura, toca em algo essencial: grandes livros, de fato, solapam a estabilidade de quem lê. Submetem o leitor à tortura deliciosa da instabilidade e ao desassossego. Só o leitor? Flaubert, o mais importante romancista do século 19, o autor do lendário Madame Bovary, também adoeceu da literatura. Adoeceu não propriamente dos livros que leu mas, o que parece mais grave e mortal, dos livros que escreveu.

Clarice Lispector, certa vez, assim resumiu a questão: “Eu não escrevo meus livros, eu sofro dos meus livros”. Flaubert foi, desde cedo, um rapaz frágil e doentio; o mal que o acometia, é verdade, era anterior à literatura. Aos 19 anos de idade, estudante de Direito em Paris, teve seu primeiro ataque de nervos. Ele se manifestou por um choque epiléptico. Os médicos falaram em uma “pletora de vitalidade”, isto é, uma congestão psíquica e nervosa causada pelo excesso de energia. Energia demais, se não tem por onde sair, explode.

O ingênuo Gustave ainda explicou aos médicos que os acessos começavam, sempre, de um modo sutil, quase ficcional: primeiro, ele ouvia sons estranhos, esboços de vozes, ruídos indefinidos; luzes atordoantes, vindas de focos inexistentes, o cegavam; por entre estas luzes, imagens imprecisas, como espectros, se punham a andar. Então, começava o ataque que, hoje podemos pensar, vinha mais de sua capacidade de sonhar, de sua imaginação, do que de qualquer outra parte. Os ataques, ou o que fosse, sempre recomeçavam de alguma maneira. Eles se tornavam mais freqüentes, porém, nos momentos em que Gustave Flaubert se dedicava a escrever — e não a ler. Flaubert adoeceu, ou o que seja, de seus próprios livros, e não dos livros dos outros. A experiência mais radical é relatada em sua Correspondência. Ele a viveu ao longo dos 55 meses em que escreveu Madame Bovary, romance que em 2006 completa 150 anos. Flaubert terminou de escrever o livro em abril de 1856. O romance começou a ser publicado em outubro do mesmo ano, na Revue de Paris. O texto integral ocuparia seis números da revista.

Tragédia inspiradora
Para escrever Bovary, o escritor francês se inspirou em um fato real, o suicídio de Delphine Delamare, a filha de um fazendeiro da Normandia. Ela era casada com o Dr. Eugène Delamare, um antigo aluno de Medicina do pai de Flaubert, o cirurgião Achille-Cléophas Flaubert. Essas coincidências o atordoaram. A força do choque o convenceu de que havia naquele suicídio não só uma história trágica, mas um livro.

Quando menino, Gustave Flaubert passou seus dias nos corredores do Hotel-Dieu, em Rouen, o hospital em que o Dr. Achille-Cléofas era o cirurgião-chefe. A experiência da dor se reacendeu quando ele soube que Delphine Delamare se envenenara. Tomou emprestada para sua Emma Bovary a história da moça, que se matou por não suportar mais a vida provinciana. Encheu-se de frieza: teve, desde o início, a pretensão de escrever um livro do qual estaria completamente ausente. “O artista não deve aparecer em sua obra mais do que Deus na natureza”, ele sintetizou.

“Como minha Bovary me chateia! (…) Jamais em minha vida escrevi algo mais difícil do que o que faço agora, diálogo trivial”, escreve em carta à namorada Louise Colet. Flaubert escreveu Bovary não para tratar do sofrimento, mas do tédio. Para tratar de algo que estava radicalmente fora de si; de algo que não só o desinteressava, mas que lhe causava repugnância. O tédio, a repetição, a monotonia são os elementos que sufocam Emma Bovary e nos quais ela se afunda. Eles a levam a buscar o consolo de amantes estúpidos. Levam-na, por fim, a se matar — como Delphine Delamare —, tomando arsênico.

“Que desgraça os temas simples!”, Flaubert desabafa em outra carta. “Se você soubesse o quanto eu me torturo por isto, você teria piedade de mim”. Tratar da simplicidade absoluta, da mediocridade, da apatia de um mundo tão normal que se torna, pelo excesso, monstruoso. É este mundo imóvel que Flaubert decide retratar — ele que foi o grande mestre do realismo. “Que diabo de estilo escolhi! Que desgraça os temas simples!” — queixa-se.

Para chegar ao estilo duro e preciso, para fazer da apatia uma monstruosidade, Flaubert enfrenta uma perigosa luta interior. Em uma carta fundamental, ele descreve os elementos em luta. “Há em mim, literalmente falando, dois sujeitos distintos: um que é arrebatado por falatórios, lirismos, grandes vôos de águia, por todas as sonoridades da frase e pelas alturas da idéia; um outro que folheia e escava o verdadeiro tanto quanto pode, que gosta de captar o pequeno fato tão poderosamente quanto o grande, que gostaria de lhe fazer sentir quase materialmente as coisas que reproduz: esse aí gosta de rir e se diverte com as animalidades do homem”.

Nessa luta entre os dois Flaubert, um adoece do outro. A águia, que aprecia o lirismo e os sobrevôos, adoece do homem bruto que escava a pedra do real; e este homem duro e frio, por sua vez, adoece da ave lírica que se aventura pelas alturas. O conflito, em si, é a doença, ou que nome se queira dar a este abalo. O conflito é a dor. “É muito difícil tornar claro por palavras o que está obscuro ainda no pensamento”, Flaubert admite. O que busca o novo Flaubert que se afirma com Bovary? Ele quer matar a águia e chegar à insensibilidade, sem nenhum lirismo, nenhuma reflexão, nenhum rasto de si. “Vai ser triste de ler; haverá coisas atrozes em miséria e em fedor”, ele prevê. Mas segue em frente.

Andar sobre um fio
Para escrever Bovary, o temerário Flaubert se move sobre um fio delicado erguido entre o lirismo e o vulgar. Entre o sublime e o monstruoso. “Todo o valor de meu livro, se houver, será o de andar bem sobre um fio”. Será, pois, o equilíbrio e a capacidade de não ceder. A história de Emma Bovary e de seu infeliz marido nada tem de cortante; contudo, no avançar das páginas, o leitor é tomado por tal aversão que, se não se cuida, pode adoecer também — de tédio e de desespero morno — assim como o próprio Flaubert adoeceu.

O trabalho parece, por vezes, além de suas forças. Flaubert se queixa: “Eu não sei como, às vezes, os braços não me caem do corpo de tanta fadiga e minha cabeça não sei como não explode”. Escreve sem saber em que direção as palavras o levam; como ele mesmo diz, tateia nas trevas. É com grande aflição que acaba por imaginar, como saída, a conquista de um estilo perfeito — a célebre “mot juste” que definirá, para sempre, sua literatura. O esforço, contudo, supera suas energias. “Meu romance me dá tédio; eu me sinto estéril como uma pedra”, escreve.

Aos poucos, sente-se invadido pela estupidez e apatia de Emma Bovary — adoece dos mesmos romances cor-de-rosa e dos mesmos achaques. Mais tarde, depois da publicação do romance, ele seria levado aos tribunais, acusado pelo governo francês de obscenidade e de escândalo; diante do juiz, dirá, então, sua mais célebre frase, “Madame Bovary sou eu”. É ele? O esforço para sair de si e chegar a Bovary o revela.

“Experimento belos cansaços, tédios orgulhosos, e bebedeiras a sós comigo, de me fazer vomitar a mim mesmo”, continua a reclamar. Mas é desta luta que Bovary surge. Todo o tempo, porém, Flaubert se recusa a estabelecer um elo entre a criança nervosa que foi, e o escritor calculista que luta para ser. Em outra carta, ele lembra a existência de crianças a quem a música “faz mal”. No contato precoce com a música, elas “emagrecem, empalidecem, adoecem, e seus pobres nervos, como os dos cães, se contorcem de sofrimento ao som das notas”. Sua conclusão: “Esses não são os Mozart do futuro”. E explica: “A vocação foi deslocada; a idéia penetrou na carne e aí permanece estéril, e a carne perece; daí não sai nem gênio, nem saúde”.

Ao contrário, pensa Flaubert, quanto menos se sente uma coisa, mais se está apto a exprimi-la. “Eu também tive minha época nervosa”, desabafa, “minha época sentimental e trago ainda, como um galé, a marca no pescoço”. Julga-a superada e enterrada. Indiferente a essas idéias, a escrita de Bovary continua a devastá-lo. E ele descreve isto. “Tenho os nervos irritados”, admite em uma carta a Louise, de 1852. Queixa-se, mas se envergonha de suas lamúrias: “Não lamentemos nada; queixar-se de tudo o que nos aflige ou irrita é queixar-se da própria constituição da existência”.

Flaubert vê em si um “misticismo estético”. Misticismo que o leva a procurar dentro de si o que não pode encontrar fora. “Não podendo se expandir, a alma se concentrará”, explica. Reclama dos socialistas, que “negam a dor”. Para Flaubert, a dor — o sofrimento — não deve ser negada, muito menos sufocada. “Não se trata de fazê-la secar, mas sim de lhe dar canais”, explica. É o sentimento da insuficiência e do nada que engrandece o escritor, diz ainda. Doer é escrever.

Continua, ainda assim, a buscar outros motivos para sua dor. Pensa, por exemplo, que inquietações e dores se multiplicam porque o romance nada tem de natural, “é todo astúcia”. “Por que será que tenho com esse livro inquietações que não tive com os outros?”, ele se pergunta. “Será que é porque não corresponde à minha tendência natural?” A seu ver, os ataques de nervos não passam de “declives involuntários de idéias, imagens”: “O elemento psíquico então cai sobre mim e a consciência desaparece”. É neste pântano, que beira o monstruoso, que Flaubert luta para escrever. “Sou devorado por comparações, como se fossem piolhos”, ele diz, “e passo meu tempo a esmagá-los”.

Na verdade, este “mal-estar perpétuo” é a garantia de que dispõe de que seguirá em frente. O mal estar é a luta. A dor, que estraçalha os nervos, é o sentido da escrita. Em outra carta, sugere aos escritores que aspirem, ao mesmo tempo, “o odor dos limoeiros e o dos cadáveres”. E, em uma carta de 1853, chega a uma conclusão: “Minha doença dos nervos me fez bem; transportou tudo para o elemento físico e me deixou com a cabeça mais fria”.

A águia que sobrevoa se equipara ao escritor que cava. “Esse livro me mata; nunca mais farei nada semelhante”, ele diz. Para Flaubert, os médicos, materialistas, e os filósofos, espiritualistas, são igualmente imbecis. “Uns fazem do homem um anjo e os outros um porco”. Com Bovary, ele enlaçou os dois extremos, criou um porco com asas.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho