Por uma filosofia da leitura

Ensaios de Luís Augusto Fischer defendem a importância da leitura na formação intelectual dos indivíduos
Luís Augusto Fischer, autor de “Filosofia mínima” Foto: Luciana Thomé
01/08/2011

Luís Augusto Fischer é um ensaísta à moda antiga. A contraprova dessa afirmação está no livro Filosofia mínima, que acaba de ser publicado pela Arquipélago Editorial. Dividido em quatro partes, o autor disserta sobre a leitura, a escrita, o ensino e a aprendizagem. Que não se pense, no entanto, que os textos concorrem para o lugar-comum de certa prosa acadêmica — sem cheiro, sem gosto, sem sabor, sem vontade de convencer o leitor. Ao contrário, Fischer utiliza as mais de 300 páginas do livro para dissecar esses exercícios intelectuais, que, na contramão dos índices de crescimento econômico e desenvolvimento dos mercados no Brasil, estão cada vez mais fora de moda. Em síntese: num mundo fragmentado, cujos espaços existentes são preenchidos pelas redes sociais, a leitura atenta, reflexiva e de formação é cada vez mais escassa. Curiosamente, alguns dos envolvidos têm apregoado inclusive a adaptação a textos mais breves, curtos, possivelmente mastigados para a compreensão dessa nova geração (Y?) de leitores. Contra essa corrente, Fischer demarca o território e desenvolve uma abordagem particular e coerente com algumas premissas básicas como se verá a seguir.

No texto de apresentação do livro, Flávio Loureiro Chaves dá as credenciais de Fischer, indicando autores cujos textos dialogam com a formação do autor do livro (Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Italo Calvino), assim como destaca o subtítulo programático da obra (ler, escrever, ensinar, aprender). Em dado momento do prefácio, Flávio Loureiro Chaves ilumina a idéia central da filosofia de Luís Augusto Fischer: “Tempo houve em que a tradição humanista irrigou fartamente o pensamento crítico do Brasil meridional; a convivência da literatura traduzia-se na problematização do indivíduo e sua circunstância”. Esse é o argumento-chave da discussão em torno da leitura na atualidade. Evidentemente, é o debate que subjaz à análise dos números sobre letramento no país. Infelizmente, todavia, os intelectuais parecem mais interessados em permanecer na superfície, trocando a densidade da análise pela rendição à sociedade do espetáculo. A rigor, poucos se dispõem a debater a questão da leitura como Fischer faz.

Tomando isso como referência, é necessário, portanto, observar quais são as idéias analisadas por Fischer. Ou, por outra, a partir da certeza de que o autor partilha de princípios tão absolutos no que concerne à leitura e à formação intelectual, cumpre analisar quais são os caminhos trilhados e de que maneira ele realizou essa trajetória. Aqui, a questão do gênero textual é elementar. Ao adotar o formato ensaio como texto exemplar, o escritor não apenas faz referência aos autores que lhe são caros, como Montaigne e Nelson Rodrigues, mas, essencialmente, se apropria do estilo e conduz o leitor passo por passo conforme sua linha de raciocínio. Em outras palavras, ao contrário dos textos jornalísticos ou mesmo dos comunicados das mídias sociais (em que a prosa é, a um só tempo, minimalista e delimitada), nos ensaios que compõem Filosofia Mínima há espaço para o vagar, como um flanêur que percebe a modernidade, como quiseram Baudelaire, na França, e João do Rio, no Brasil. Com efeito, é com a exposição de suas ideias que o autor busca dialogar com o leitor e evidenciar que seus argumentos são os mais precisos — ainda que nem sempre alcance o objetivo planejado.

“Ultrapassado”
Nesse sentido, vale a pena destacar a defesa enfática que faz da boa leitura. Diferentemente de alguns de seus pares que defendem, arduamente, a “inclusão” acima de qualquer coisa, Fischer se dedica a um leitor mais atento e compenetrado, de maneira a torná-lo ainda mais eficaz na compreensão dos textos que lê. Corre o risco, nesse aspecto, de ser qualificado como ultrapassado, sobretudo quando afirma que: “Se você estiver diante de um texto consagrado, um clássico mesmo — Shakespeare, Voltaire ou Machado de Assis, por exemplo —, e acontecer alguma dificuldade na leitura, pode ter certeza que o problema é seu”. Não é preciso ser um estudante de Letras ou de Pedagogia, para saber que esse discurso é considerado, do ponto de vista político, como reacionário por alguns. Em outro ensaio, ainda no segmento leitura, o autor ataca a precariedade da formação dos críticos culturais: “Um crítico de pouca cultura é um estrago grande no meio em que atua, porque dá falsas pistas e extravia a conversa”, da mesma forma como ataca o cerne da questão sobre o estado da arte da cultura brasileira na contemporaneidade:

De que lugar geográfico-histórico provém, em nossos dias, as principais fontes de informação crítica? Pela primeira vez na vida brasileira, na última geração (de 1980 para cá, digamos) a fonte do pensamento crítico, tanto acadêmico quanto jornalístico, é São Paulo. Não mais o Rio de Janeiro, que apenas em parte ainda atua como definidor dos rumos da cultura brasileira por causa da força da Rede Globo, suas telenovelas e seu jornalismo (…).

Por mais óbvia que seja essa constatação, não é todo o dia que os críticos culturais saem da zona de conforto para tratar dessas questões mundanas.

Em contrapartida, se é verdade que suas observações são certeiras e estão bem de acordo com gênero textual escolhido, em alguns momentos o formato e a abordagem simplesmente não funcionam. Isso porque a discussão ora fica por demais particular, ora porque a embocadura do ensaio escapa do autor, e os textos soam demasiadamente professorais. São os elos mais fracos do livro. Evidentemente, Fischer não consegue (e talvez nem queira) se distanciar de sua atividade como docente. Pode-se dizer, contudo, que os ensaios se destacam quando esse discurso de autoridade sai de cena em detrimento da força das idéias e da ilustração literária e racional. Exemplo disso se dá quando explica o conceito de ideologia de forma lúcida e sem que o leitor tome nota de que se trata de uma abstração bem elaborada por parte do escritor.

Nas considerações sobre escrita, para quem espera que o autor simplesmente apresente o “Santo Graal” para a prosa de sucesso, o escritor retoma os princípios básicos que norteiam Filosofia mínima: a importância da leitura (de alguma forma, nota-se que essas duas idéias — da escrita e da leitura — estão bem articuladas, quase que interdependentes na concepção de Fischer). Num texto em especial, o autor aproveita para comentar sobre “escrever e fazer sucesso”. Novamente, enfatiza a diferença entre a escrita voltada para o mercado (ou a que vai ao encontro do gosto já estabelecido), e a escrita que atende a outro projeto literário (a problematização do mundo). No ensaio, Fischer enumera os livros que, de alguma forma, tratam do tema — mas, pelo título, o leitor espera por um texto mais denso a esse respeito. Em tempo: são apresentadas as referências adequadas para quem se interessar.

Em Filosofia mínima, Luís Augusto Fischer defende com ênfase e critério a importância da leitura na formação intelectual, indicando, nos ensaios, de que maneira essa jornada (da leitura) se articula com a escrita, com o ensino e também com o aprendizado. Por vezes, trata-se de um livro que dedica um olhar atento a este ou àquele autor (Lima Barreto e Jorge Luis Borges, por exemplo). O objetivo, no entanto, é mostrar de que forma essas leituras foram capazes de adensar a compreensão de mundo junto ao leitor Luís Augusto Fischer. Em tempos de ultra-especialização acadêmica e de elogio à conveniência e praticidade da leitura pragmática, o autor mostra como o entendimento pode ser privilegiado pela leitura mais complexa e serena dos textos em geral e da literatura em particular.

LEIA ENTREVISTA COM LUÍS AUGUSTO FISCHER.

Filosofia mínima
Luís Augusto Fischer
Arquipélago Editorial
336 págs.
Luís Augusto Fischer
Doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira na UFRGS. É autor da novela Quatro negros e do Dicionário de porto-alegrês. Recentemente, publicou, também pela Arquipélago Editorial, Machado e Borges — e outros ensaios e Inteligência com dor – Nélson Rodrigues ensaísta.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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