Por um sentido

A falta de rumo da vida moderna é o centro de "Eu contra o sol", romance de estreia de Alex Tomé
Alex Tomé, autor de “Eu contra o sol”
28/05/2017

A liquidez das relações, das ideologias e valores humanos modernos parece ser a pedra de toque da literatura atual. Não é difícil encontrar esse elemento em tudo quanto se produz em termos de prosa (romances, contos e novelas) ou mesmo arte dramática, onde um personagem age em torno de relações fugazes e ideias provisórias.

Tal fenômeno parece decorrer de uma época em que as utopias desvaneceram, e mesmo a defesa intransigente de ideologias polarizadas ao extremo e antagônicas entre si soa dolorosamente anacrônica como não soaria outrora, num contexto pós-Segunda Guerra, quando o próprio mundo se encontrava polarizado.

Esse estado de desnorteio rege o espírito do homem hodierno, a despeito da efervescência coletiva no país pós-manifestações de 2013, ou mesmo nelas se encontra o diagnóstico mais preciso desse estado (considerando aqui especificamente as manifestações de junho de 2013): um fato social amorfo, mas intenso, com demandas pouco definidas, sem uma direção política estruturante ou estruturada.

É no próprio torvelinho desse momento impactante do país que se desenrola os acontecimentos ficcionais do romance Eu contra o sol, primeiro livro de Alex Tomé.

A narrativa
A obra acompanha as ações e elucubrações de Benício, jovem paulistano filho do ex-prefeito, que completa 25 anos em 17 de junho, a data que inicia a narrativa (o livro é estruturado em datas, compreendendo onze dias).

Jovem alienado socialmente, versejador peculiar e amante obsessivo, tem na ambígua Júlia o centro de suas neuras e cuidados e no pai o foco constante de seu ódio e fonte de renda, uma vez que não trabalha e reside no mesmo condomínio onde ele, sua mãe e irmã moram. A relação entre ambos não foge ao clichê do “pai rico com expectativas versus o filho rebelde”, desfrutador do que ironicamente denomina “custo-benefício”.

O romance tem início numa madrugada insone alternada entre versos, reflexões ao léu e a contemplação de Júlia adormecida na cama. Súbito a batida de um carro levará Benício ao socorro do próprio irmão Rico que aparentemente tentou suicídio.

Segue-se uma madrugada inteira de cuidados da família com o acidentado, constituída de ações aleatórias, de contato com os amigos, com os primeiros vestígios da agitação social e, principalmente, de um jogo esquivo de posse com Júlia:

Prestes a gozar, segurou-a no colo novamente e a carregou até o carvalho mais próximo (…) Ela para ele é amor e devoção. Ele para ela é como um inseto que pousa sobre a face que não incomoda. Retirou o sexo às pressas e o orgasmo se projetou na extensão do campo (…) Ela continuava imóvel, olhando para o horizonte, impassível (…)

Ela não manifestou palavra; não havia modo de saber o que sentia ou pensava (…) Depois de um tempo ele chorou.

A primeira parte do romance se centra nessa relação compulsiva, entretecida de um olhar pouco otimista às relações familiares e a epifanias fortuitas sobre a vida, materializadas nos poemas de Benício, que buscam assumir um papel funcional no fluxo narrativo.

A segunda parte imerge no turbilhão social das manifestações, assumindo, além de seu próprio valor, um menos evidente, mais simbólico: a elas cabe o papel de ampliar o horizonte existencial do protagonista.

Até então um jovem aspirante a escritor, com passagens pela Europa, mas que sequer trabalhou na vida ou pegou um transporte coletivo, Benício passa a ser uma testemunha perplexa das convulsões sociais que ampliam o abismo entre classes, bem como da ação impiedosa do aparato do Estado, que conhece inclusive por dentro ao conseguir se nomear funcionário a serviço do atual prefeito. É nesse momento que o romance ganha fôlego, e as manifestações são vistas de diferentes ângulos, assumindo, consequentemente, diferentes concepções.

Elas acabam sendo um marco na vida do personagem, daí o final simbólico da narrativa. As relações amorosas são relegadas a segundo plano, a poesia e a própria palavra assumem um aspecto completamente novo, emergindo literalmente das cinzas da violência da realidade. A pedanteria do jovem usuário de camisetas conceituais e de figuras cult, aforista circunstancial, não tem mais vez. Paradoxalmente, a mudança não assume ares de militância política ou ativismo: é antes uma metamorfose íntima:

Os olhos baixos observavam os corpos estirados no chão, os heróis mortos e, devidamente, depurados. Ele não era um sobrevivente, mas a borra imexível do café no lixo da cozinha. Na cidade, o lixo era mais bem cuidado que os mortos, pensou (…) Era preciso ver o mundo enviesado, à maneira dos artistas. Agora não mais. Viver de amor, viver de literatura. Ele é um ridículo.

Estilo
A estrutura do romance, em sua sucessão de ações em grande parte aleatórias, parece buscar uma mimese com a vida.

Exemplo disso é a forma com que personagens aparecem e partem de forma gratuita na obra. Rico, o irmão do protagonista, é exemplo expressivo: seu acidente no início do livro não desempenha uma função efetiva nos rumos da história, tanto é assim que suas causas permanecem em suspenso até o quarto final da narrativa. Já Ezabela é exemplo de personagem acessória na trama, embora estabeleça uma relação íntima com Benício.

Como dito, os capítulos são estruturados em dias. Dentro deles temos subcapítulos inominados, separados por asteriscos. Essa estruturação os dota, em grande parte do livro, de uma espécie de ritmo paratático que se de um lado corresponde à sucessão aleatória dos acontecimentos do dia, por outro causa um certo distanciamento emocional ao mesmo tempo que dá às dimensões do dia uma elasticidade espaço/temporal incomum. Esse último aspecto, contudo, não é posto em prática de maneira monocórdia; assim no início do livro (em que o dia abarca duzentas e vinte páginas), os subcapítulos vão se alternando entre pretérito e presente, com o claro fito de trazer à tona o passado dos personagens e suas relações; já na segunda parte, em que os dias são menos extensos em termos de páginas, tem-se um ritmo diversificado, como o capítulo Vinte e um de junho, concebido sem divisões a fim de intensificar ao leitor a experiência de Benício em uma das mais inflamadas manifestações, revelando-se eficaz o efeito obtido.

Porém, em algumas partes parece haver um abismo entre um instante e outro, entre uma reflexão e outra, e isso por vezes ocorre dentro mesmo de um capítulo, como uma digressão:

O policial parou e fez aquela cara de agonia e êxtase. O que fazer para se proteger daquele que nos oprime? E se o que nos oprime é o que deveria nos oferecer proteção? A literatura salva ou busca sua própria salvação?

Concentrando-se na figura do protagonista e em seu solipsismo, Alex Tomé deixa-se confiar mais nas palavras, o que é a lógica da poesia. Os resultados são, não raro, notórios:

As primeiras palavras não foram escritas.

Minutos atrás, quando pegou papel e caneta, Benício transpirou como se seu corpo materializasse uma impotência predestinada. A inflexão não estava nos seus princípios, ou no meio-termo da voz, mas no último verbo que come o homem.

Ocorre, porém, em alguns momentos um fluxo hiperbólico de imagens como se a idealizar certas pinturas. Alguns termos, pela recorrência, têm seu efeito atenuado, como “morte”, a metáfora mais usada no livro.

Por fim, Eu contra o sol é um instantâneo espiritual de um momento, entre altos e baixos, mas certamente revela um autor promissor no cenário presente.

Eu contra o sol
Alex Tomé
Confraria do Vento
478 págs.
Alex Tomé
É formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de São Carlos e atualmente cursa Direito. Nasceu em Orlândia (SP) e vive atualmente em Guairá (SP). Roteirizou os curtas-metragens A cena perfeita e Recortes, este ganhador de um Kikito no Festival de Gramado (RS), em 2006. Eu contra o sol é seu primeiro livro.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho