Os livros ilustrados contemporâneos estão elaborando uma forma literária cada vez mais difícil de ser mantida debaixo do tapete. Eles constituem uma literatura que alguns estudiosos consideram pós-moderna por excelência, pois incorporam características narrativas e conceituais encampadas pelos movimentos estéticos das últimas décadas, além de utilizar tanto a superfície da página quanto a materialidade do livro para realizar-se como obra. Isso lhe dá características artísticas muito próprias, ainda que intimamente relacionadas a meios como o cinema, artes visuais e literatura. Ainda assim, o livro ilustrado é encarado com desdém por grande parte dos estudos literários; muitas vezes, graças àquilo que é uma de suas maiores potencialidades narrativas: a relação entre texto e imagem.
A naturalização de ideias pode ser surpreendente, às vezes. Sobretudo nos círculos mais eruditos, a imagem é depreciada como uma intelectualidade menor do que a linguagem, confinando a literatura a uma noção textualista extremamente limitada. Entretanto, embora possa parecer, separar texto de imagem não é sequer uma disposição natural dessas formas de expressão. É, antes, uma construção histórica e carrega uma visão de mundo. A fim de estranhar tais valores naturalizados, é preciso conhecer as origens desses discursos — e as outras visões de mundo que eles ocultam — e expor a multiplicidade caótica de produções estéticas que a todo tempo disputam o status de dominante em um determinado contexto. De sorte, isso pode nos fornecer outras perspectivas do que é e o que pode ser a literatura em nossa sociedade.
Essa separação é uma proposta recente, se considerarmos que Horácio, no século 1 a.C., confluía o tratamento estético que deveria ser dado a textos e imagens em sua máxima Ut pictura poesis, ou “a poesia é como a pintura”. Toda uma tradição estética e crítica, que podemos colocar debaixo desse mesmo guarda-chuva conceitual, teve suas idas e vindas na história da arte e da literatura desde então, tomando várias expressões em diversos contextos. De fato, dificilmente esses movimentos afirmariam que a poesia e a pintura são indiscerníveis, mas cada uma delas relaciona ambas a fim de realizar os ideais estéticos que propunham.
Por outro lado, podemos dizer que a separação categórica entre essas duas grandes formas de expressão tem seu marco no século 18, com Gottfried Ephraim Lessing. Em seu texto Laocoonte, Lessing se vale de uma controvérsia — importante na época — acerca da “originalidade” da narrativa: se a estátua teria sido feita a partir da poesia ou o contrário. Com isso, ele fundamentou uma corrente de especificidade de cada forma, argumentando que a Poesia — para nós hoje talvez melhor compreendida como Literatura — apresenta propriedades diacrônicas irreconciliáveis às propriedades sincrônicas da Pintura — consideremos toda visualidade. Ou seja, a Poesia seria a melhor maneira de tratar do tempo, ao passo que a Pintura trabalharia com o espaço.
Lessing, entretanto, não se limitou a apontar as especificidades da forma; sua intenção era postular a superioridade da Poesia. Para ele, as capacidades do texto de passear pelo tempo, representar o invisível e representar múltiplas ações conferem maior liberdade e força para o poeta do que para o pintor. Daí, não é difícil ler o projeto racionalista do iluminismo, do qual ele era um ávido defensor, nas entrelinhas do argumento que ele apresenta. A defesa do Laocoonte em forma de poesia era, antes de tudo, a defesa de uma postura que se julgava capaz de capturar, catalogar, sistematizar e ordenar o mundo.
Raramente observados pelas abordagens textualistas dos estudos literários, podemos relacionar aspectos histórico-materiais às ideias de Lessing. Além de edificar os ideais iluministas do racionalismo, o século 18 compõe a curta fase da história dos impressos em que a imagem foi fortemente desprezada graças às inovações tecnológicas do processo de impressão. Fosse por livros, fosse por panfletos, as ideias que circularam nessa época passaram a ser impressas por placas de cobre, um método que se difundiu nessa época devido à sua maior precisão para impressão de textos. A partir de então, era possível reproduzir detalhes finos — daí, inclusive, surgiu o nome do estilo tipográfico Copperplate, baseado em caligrafias decoradas da Inglaterra do século anterior.
Entretanto, essa tecnologia prejudicava os ilustradores por deixar seus desenhos menos expressivos — devido às linhas finas demais — e inviabilizava os processos de impressão a que os ilustradores estavam habituados. Isso escasseou ilustrações e decorações nos livros, limitadas a páginas titulares arquitetonicamente pomposas que remetiam aos ideais clássicos iluministas, separando mecanicamente texto e imagem. Por outro lado, a hegemonia do racionalismo também haveria de ser desafiada por meio das páginas impressas. O caso de um artista quase contemporâneo a Lessing deverá demonstrar como a separação entre texto e imagem pressupõe a exclusão de outras visões de mundo, extrapolando a esfera da estética para a da sócio-política.
A presença da imagem deve ser considerada uma decisão estética — logo, política — e ser interpretada como tal em toda sua potencialidade.
Inocência e romantismo
William Blake, nascido em 1757 — dez anos antes da publicação do texto de Lessing — foi pouco reconhecido durante sua vida, largamente considerado louco por seus contemporâneos. Todavia, os movimentos românticos que sucederam o iluminismo viram em Blake — um poeta, pintor e impressor — uma forte reação ao ideal totalizante do racionalismo. Ele confrontava as premissas racionalistas e conservadoras da sociedade, tanto política quanto esteticamente. Nesse sentido, sua poesia, que sempre acusava as desigualdades e abusos de poder de classe na Inglaterra industrial, aliou-se a outras formas de resistência que o tornou um dos precursores do movimento de “amor livre” no século 19.
Sua obra mais famosa, Canções de inocência e de experiência, é o epíteto contra o racionalismo iluminista não apenas a partir dos ideais estéticos e filosóficos, mas também dos aspectos histórico-materiais que estão incorporados no que ele chamou de impressos iluminados. Essa obra apoia-se fortemente em misticismo, sentimentalismo e expressividade para refletir sobre a consciência humana, fundando as bases do ideal de inocência do romantismo. Mais que isso, ela se impunha contra os processos vigentes de impressão e circulação de impressos, tanto em seu processo quanto em seu resultado; a referência aos manuscritos iluminados medievais se deve tanto ao fato de alguns dos primeiros exemplares terem sido coloridos individualmente quanto ao processo de impressão colorida desenvolvido em edições posteriores.
Primeiramente, o método de impressão que o próprio Blake criou era o contrário dos processos comerciais. Em vez de entalhar a placa de metal com o desenho que seria impresso, ele pintava com tinta resistente a ácido; depois, ele expunha as placas ao ácido, que corroía a área que ele não pintara. Esse processo inverso ao entalhe permitia que o desenho — tanto do texto quanto da imagem — carregasse seu gesto e expressividade, unificando não apenas os elementos na superfície da página, mas também confundir poeta, pintor e impressor. Logo, o tipo de imagem resultante era incomparável ao controle finíssimo dos entalhes de cobre que estavam presentes apenas em páginas titulares dos livros da época.
Soma-se a isso o fato de que Blake também encadernava seus livros, conferindo valor à própria materialidade do conjunto de folhas, não apenas ao que nelas estava impresso. O resultado era um livro cuja existência física era fundamental para seu significado, tanto da perspectiva estética quanto política. Não parece ser por acaso que as páginas de seus livros confluam texto e imagem com tanto ímpeto, contrariando a disseminada separação proposta por Lessing: Blake apresentava de uma visão de mundo contrária ao ideal totalizante do iluminismo, oferecendo novas perspectivas por meio da literatura — em seu sentido mais amplo.
Os primeiros impressos das Canções foram feitos em 1789, oito anos depois da morte de Lessing. Hoje, os livros ilustrados assumem novamente essa missão. A presença da imagem deve ser considerada uma decisão estética — logo, política — e ser interpretada como tal em toda sua potencialidade. A inclusão dos livros ilustrados como objeto dos estudos literários faz parte de um projeto mais amplo de pluralização de vozes e corpos que são urgências artísticas atualmente. Desta feita, o desprezo pela imagem se presta à mera defesa da posição de poder: sintoma de uma literatura que limita, segrega e exclui. A literatura ultrapassa, e muito, o seu texto.