Criador de obras importantes como El último lector(2004) e Santa María del Circo (1998), vencedor de inúmeros prêmios como o conceituado Casa de las Américas e traduzido em mais de dez idiomas, o escritor mexicano David Toscana assoma como um dos nomes incontornáveis da literatura contemporânea internacional. No Brasil, publica agora seu romance As pontes de Königsberg, título que Michelle Strzoda e a Casa da Palavra nos fornecem, em língua portuguesa, do livro originalmente lançado pela Alfaguara, no México, em 2009 (Los puentes de Königsberg).
A narrativa se inicia com o desaparecimento de seis meninas durante um passeio escolar e prossegue, dentre tantos enredos secundários, com a proposição, por parte da decadente professora Andrea, do enigma das sete pontes de Königsberg, desvendado no século 18 por Leonhard Euler (dando origem à teoria matemática dos grafos). Cidade em que nasceu, viveu e morreu o filósofo Immanuel Kant, essencial para o racionalismo epistemológico, a Kaliningrado do império russo recebe as atenções do mundo não já pelos imperativos categóricos que entrega ao pensamento ocidental, mas pelo território que, na Segunda Guerra Mundial, precisa proteger. Através de um magnífico salto nos trampolins da língua, a cidade mexicana de Monterrey (tradução do topônimo alemão), em plena paz durante a contenda, também se vê, na ideação das personagens, atacada pela cólera dos cossacos. Tomando esses elementos como matriz e pano de fundo, Toscana perfaz uma narrativa de cariz marcadamente moderno, na qual esquadrinha os bastidores da criação romanesca.
Suor do labor poético
Metáfora da condição humana, as dramatis personae Floro, Blasco e Andrea são criaturas que lançam mão de seu igual direito de invenção e, pelas trilhas do teatro, fabricam mundos possíveis ou, eventualmente, cômicos e absurdos. De tal maneira, o leitor, como um voyeur, examina o processo de escolhas e recusas de composições que, lentamente, se delineiam. Como uma camisa observada em seus avessos, Toscana apresenta o suor que o labor poético produz, as linhas de força e sustentação do conjunto, a busca dos efeitos mais contundentes e dos enredos mais promissores. Por outro lado, o autor escapa, com habilidade e perspicácia, da armadilha que o maneirismo modernista construiu: certa circunscrição ao formalismo autotélico e à criatividade puramente verbal. Aqui, a função que a literatura possui de contar uma boa história é preservada e, até certo ponto, resgatada. Freqüentemente, os atores do texto se preocupam com a disposição dos eventos, com sua relevância para a seqüência romanesca, ou mesmo com a verossimilhança daquilo que é contado. É pelo crivo do verossímil, aliás, que Floro, ao propor determinado esquete, recebe a seguinte reprimenda de seu companheiro de fabulações:
[O ônibus] não pôde se perder na estrada, diz Blasco, aí qualquer um o encontra, tem de estar em outro lugar. Iam à represa de La Boca? Então é preciso procurá-los lá, no fundo da água. Qual é a profundidade? Acha que um ônibus pode afundar? Se as janelas estão fechadas, a água entra da mesma maneira e as garotas não saem e acabam se afogando lá dentro. Flutuam até darem com a cabeça no teto do veículo. Acha que foi assim?
Para um artista como Toscana, que, retomando o cuidado de forjar cenas que se encaixem sem arestas ou lapsos narrativos, o nível micrológico do enfoque, pelo qual as minúcias são contempladas, se apresenta como técnica utilizada para transmitir o barthesiano “efeito de real”: “[…] Blasco se levanta e vai ao banheiro. Lá se senta no vaso sanitário e deixa o tempo passar. Sua vista fica no nível das torneiras do lavabo; a esquerda está pingando” (p. 78). Por semelhantes vias, elabora uma antítese aparente: descortina a literatura como artefato e artifício, mas, ao mesmo tempo, confunde-a de modo naturalizado com a realidade que referencia. Qual num jogo dialético, porém, o equívoco da arte como simples resposta, decalque do real, é desfeito no romance através das reinvenções transgressoras do lugar-comum, nas peças que Floro precisa encenar, pondo à margem aqueles que preferem o déjà vu, “a ordem à liberdade, o conhecimento ao imprevisto”:
[…] o carteiro não tem por que ser alguém que meramente entrega uma carta; ele é também um pai de família, um apaixonado, um homem cheio de frustrações e sonhos, e lhe dou a oportunidade de ser um rei. O teatro vai acabar morrendo se os carteiros entregarem cartas e os reis governarem e os apaixonados namorarem e os guerreiros lutarem e as mulheres sonharem.
A fim de revolver a água parada em que a normalidade navega, é claro que isso às vezes resulta em algumas extrapolações dignas do Quixote: “Hoje, o carteiro será um bacharel de Salamanca, e amanhã, um prefeito moribundo ou príncipe traído, e um dia desses será lady Waller e lady Waller será o carteiro, e o teatro terá mais vida que a vida e será a mais bela das artes.”
Instaura-se, portanto, uma literatura que se pensa — reverberando, além do estilo de um Cortázar, a metalinguagem e os experimentalismos de um Italo Calvino. Ou, ainda, um Avalovara osmaniano, com suas cenas que emergem e somem, intermitentes e flutuantes. A própria mudança de turno entre as personagens não vem acompanhada de sinalizações, o que finda por ser um elogio da ilação e uma demonstração do quão redundantes podem ser as marcas lingüísticas a que já delegamos nossa inteligência. O fabbro mexicano nos recorda, voluntariamente ou não, o escritor mineiro Autran Dourado, com a inflação dos discursos indiretos livres, que demandam extrema e permanente atenção do leitor. E se a sugestão de um vínculo enfático com a literatura brasileira pode parecer um exagero, a freqüentação da obra, com suas remissões evidentes a Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, desfará semelhante suspeita.
Lição de humanidade
Não se deve esperar, todavia, que Toscana abandone o rigor escritural, na querência pela boa solução romanesca. A herança flaubertiana da frase polida não foi, em momento algum, recusada pelo autor. A começar pelo pretexto do argumento, lastreado na referida homologia semântica entre Monterrey e Königsberg, o texto é repleto de analogias surpreendentes, que descongelam o imaginário: “Levantei os ombros. Não quis responder que passei horas vendo a imagem da garota e que ela ficou gravada em mim como o sol quando fechamos as pálpebras” (p. 101). Entretanto, o signo perceptivo não se assinala apenas pela chapa verbal; também por cenas de contundência poética, como vislumbramos na inesquecível partida de Karmina, uma germânica Ofélia a morrer de amor, suspensa nas águas: dor emoldurada pelo Belo, que caracteriza, no sofrimento poético, o sublime longiniano.
Uma das qualidades mais extraordinárias de As pontes de Königsberg, entretanto, é a lição de humanidade, de sensibilidade que o livro nos transmite. Octavio Paz dizia que a miséria só pode ser aplacada pelas trilhas da imaginação, no que ele tem razão e do que David Toscana é exemplo. Esquivando-se de certa percepção viciada que o cotidiano impõe, as personagens saem de si, do conforto de sua modorra mental, para viver com fervor e contrição uma das épocas mais lamentáveis que o mundo experimentou. De todo modo, de pouco adianta a documentação do vivido sem que se alarguem as esperanças que se desenham no campo do possível. Aqui, Toscana está longe de entregar uma visão fatalista e pouco necessária do passado. Num interminável jogo literário — pelo qual, semelhante aos sortilégios, o real é amenizado —, os simulacros elaborados por Floro, Blasco ou Andrea são aceitos entre eles, em completa conivência: the willing suspension of disbelief. Ou, retomando Aristóteles: a História, ao relatar o que houve, nos ensina as vitórias russas sobre os alemães; mas a literatura de Toscana, compondo em verbo o que poderia ter sido, entrega triunfos de Königsberg sobre o Exército Vermelho. Aliás, para alcançar esses desfechos alternativos, 1939 ascende ao século 15 e ganha contornos claramente medievais: em vez de uma tecnologia massiva decidir a sorte das nações, o escudo e a espada são as armas usadas por Prússia e Polônia, e a indumentária que definirá o destino dos duelos.
Importa observar que o texto se desenvolve de forma a propor uma revisão permanente das endoxas, opiniões massivamente partilhadas. Não é por outro motivo que um dos tópicos temáticos da obra é se a urgência prática deve pagar o preço de um hiato criativo: “O mundo está desabando e você atravessando pontes, disse ela [Andrea] antes de fechar a porta”. O problema, nesse caso, é similar ao da escrita de poemas de amor em tempo de carência material (a vida do espírito, a arte e as abstrações, para tantos, não passam de acessórios). Efetivamente, parece que a guerra, em seu mecanismo fagocitário, absorve tudo o que a ela seja alheio. Para a vendedora Alberta, por exemplo, o café e os guerreiros valem mais que palavras amorosas e ornamentadas caixas de chocolates. E o teatro, uma vez derrotada a cidade, já não preserva seu pano, pois “cortaram-no em pedaços, transformando-o em cobertores e cortinas” (p. 226). Eis, contudo, que, invertendo o fluxo da compreensão consensual, David Toscana constrói uma das cenas mais vivas e propositivas do romance: quando o robusto germano Max Schmeling e o franzino polaco Czortek se digladiam num pugilato, este inaugura uma dança claudicante, que lhe dá esperanças de vitória. O narrador vale-se da simbologia cênica e assevera a supremacia da delicadeza e do talento sobre a força e a truculência, da cultura sobre as alimárias:
Antoni Czortek é uma dançarina que não se deixa abalar pelos quilos nem pelas dezenas de golpes anteriores. Tenho ordens; cumpro ordens. Ainda que a música tenha cessado, nos ouvidos da platéia há uma valsa imaginária. Polaco sobre as ondas, polaco das flores, do Danúbio, polaco de Mefisto e do minuto. […] Schmeling o rude; você, o virtuoso. Ele, macho; você, mulher. Vamos ver quem pode mais. A corpulência ou a nuance.
O mesmo ocorre aquando da capitulação de Königsberg:
Tudo se apagou. Quase. Porque ninguém pode se desfazer do túmulo de Kant. Você não pôde, Stálin. Kantstrasse foi transformada em Leninisky prospekt. Mas continua sendo a rua de Kant. Ele continua passeando por Königsberg com a precisão dos astros.
Sob o signo da ironia e da denúncia, flagra-se ainda a decepção de um medievo impossível, de uma nobreza vedada, já que as contendas se realizam em tablados pusilânimes. E, por uma indispensável fidelidade às vítimas de Auschwitz, nem mesmo uma narrativa em que o nonsense funda o seu império viabiliza o projeto desmedido do Reich: após vivenciar a figura de um general subalterno a Hitler, Floro não resiste à embriaguez e põe por terra os planos de “higiene” fenotípica.
As análises social e ontológica, portanto, estão permanentemente a rondar a escrita de Toscana, transmutando-se, não raro, em núcleo e raiz. Pode-se, pela lupa que a literatura dispõe, vislumbrar a pauperidade dos lugares em que as refregas acontecem, a angústia das famílias que vêem suas filhas raptadas, o medo e o horror das mulheres que se convertem em butim dos vencedores. Depois de percorrer tantas sendas escorregadias, David Toscana finaliza sua notável fatura com uma singular reflexão sobre a axiologia. Consumada a guerra, resta o balanço de seu legado e seus espólios:
Como exaltar a humanidade sem as bombas e os corpos mutilados? Por que beijar uma filha na bochecha se ela não for arrancada logo deste mundo? Que vontade nos dá de tocar nosso próprio corpo senão a de saber que esse braço, essa perna, essa orelha podem não estar aqui amanhã? Amemos a carne porque amanhã será carniça. Louvemos os enormes edifícios derrubados porque no lugar deles serão construídos pilares de concreto sem imaginação.
Dessa forma, se é verdade, como cremos, que o valor se estabelece pelo negativo e que a privação é que confere relevo à fartura, precisamos sempre festejar a incontível correnteza da arte duvidosa, que dá sentido a autores do quilate de Toscana, com suas pontes consistentes, em que a poesia pode livremente caminhar.