O escritor mineiro Luiz Ruffato está com um projeto literário em progresso: trata-se de Inferno provisório, composto por cinco livros. Dois deles já foram publicados: Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo. Durante 2005 Ruffato estará produzindo o terceiro volume, Vista parcial da noite. E ainda estão programados outros dois: O livro das impossibilidades e São São Paulo. A proposta do autor é apresentar, com os cinco livros, um olhar sobre a realidade brasileira dos últimos 50 anos.
Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo — assim como os três outros volumes anunciados — são, cada um deles, uma longa narrativa. Cada um dos livros está sendo apresentado, e catalogado, como romance. Mas o autor rompe com o modelo do romance tradicional. Ruffato construiu uma estrutura ficcional a partir da idéia do fragmento. Mamma, son tanto felice — e o mesmo pode ser dito a respeito de O mundo inimigo — traz capítulos que se encerram em si (cada capítulo pode ser lido como uma breve narrativa) ao mesmo tempo em que os capítulos estão a dialogar uns com os demais. O escritor Dalton Trevisan, entre tantos, já se valeu da estratégia: o livro A polaquinha, publicado em 1985, apresenta capítulos que ao mesmo tempo em que podem ser lidos individualmente como breves narrativas também apresentam pontos de contato com os demais capítulos — e formam, juntos, uma longa narrativa. No entanto, a literatura de Luiz Ruffato possui seus diferenciais.
Mamma, son tanto felice é formado por seis capítulos. Os personagens de um determinado capítulo aparecem, ora com intensidade, ora não, em outros capítulos — algo também presente, por exemplo, na ficção de Gabriel García Márquez. O que singulariza a literatura de Luiz Ruffato é que o autor trata, neste livro, de dramas de imigrantes italianos que se fixaram na metade do século 20 em uma comunidade do interior de Minas Gerais. Os personagens são pobres e estão condenados a viver em um meio inóspito. Uma fábula trata do esfacelamento de uma família, Sulfato de morfina apresenta uma personagem feminina em situação terminal, A expiação tem como mote um crime, O alemão e a puria envolve o mistério sobre o desaparecimento, ou não, de um cônjuge, e O segredo revela um professor com personalidade multifacetada. Há ainda o capítulo Aquário.
Em Aquário, dois personagens — Carlos e sua mãe, Nica — viajam de carro, partindo de Cataguases com destino a Guarapari. O capítulo apresenta divisões, com marcação em negrito, nas cidades em que os personagens passam e param, seja para descansar ou para se alimentar — e a marcação em negrito, um subtítulo, também registra o horário em que os personagens estiveram em cada uma das cidades. A fragmentação do capítulo tem sua finalidade: em cada parada os personagens discutem algum assunto mal resolvido entre eles. Casamento, a morte do patriarca — que aconteceu na véspera da viagem, felicidade, relação filho-pai, relação mãe-pai, os outros entes familiares. Esses e outros temas surgem em meio à conversa entre filho e mãe, e, assim, são revelados momentos-chave da vida da família — e de que maneira as relações entre os familiares se deterioraram. O que torna a peça fictícia singular é a maneira como ela é apresentada: a narrativa não é linear (um tema vem à tona, há interrupção, e o assunto pode vir a ser retomado ou não); há modificação de tipos, itálicos, negritos. Os itálicos, inseridos em meio ao texto, têm a finalidade tanto de revelar o que um personagem está pensando como também de recuperar episódios do passado de um personagem.
O mundo inimigo, segundo livro da série Inferno provisório, apresenta características de linguagem e de estrutura presentes no primeiro livro, Mamma, son tanto felice. O diferencial é que em O mundo inimigo os 12 capítulos são ambientados em uma Cataguases habitada pelos descendentes dos personagens de Mamma, son tanto felice. Os personagens são pobres filhos de imigrantes italianos pobres inseridos em uma cidade que não oferece perspectivas (nem profissionais nem existenciais). O destino que se anuncia para eles é se tornar mão-de-obra desqualificada, mal remunerada, e terminar a existência na miséria. Há a mulher que sonha encontrar o príncipe encantado mas acaba se conformando com o namorado rejeitado por ela anteriormente (no capítulo A solução), há o homem que não suporta ser trabalhador e viaja para o Rio de Janeiro a fim de tentar ser artista (no capítulo A decisão), há o sujeito que tenta ser jogador de futebol mas um acidente modifica seu futuro (no capítulo A demolição), há a ex-prostituta que almeja formar família mas será rejeitada pela pressão social (no capítulo A mancha), há o encontro daquele que foi viver em São Paulo com aquele que ficou em Cataguases (no capítulo Amigos) etc. Enfim, em O mundo inimigo os personagens buscam no êxodo uma alternativa para modificar suas existências: são Zungas, Zulmiras, Luzimares, Gildos, Remildos, Hélias, Maripás, Zitos, Zés, Marquinhos, Bibicas, Vanins, Zazás, Natanaéis — todos sem sobrenome, sem futuro e com um presente insuportável.
Luiz Ruffato, tanto em Mamma, son tanto felice quanto em O mundo inimigo, reinventou, ou mesmo inventou, literariamente sua Cataguases natal, da mesma maneira como Gabriel García Márquez fez de Arataca matéria-prima para Macondo, como Dalton Trevisan criou uma Curitiba e Miguel Sanches Neto está inserindo Peabiru no mapa da literatura. As tramas apresentadas na narrativa de Ruffato poderiam ter como cenário qualquer outra cidade — Macondo, Curitiba ou mesmo Peabiru —, uma vez que os impasses tratados na ficção de Ruffato são universais (são dilemas dentro de uma conjuntura histórica específica, a segunda metade do século 20, no Brasil, mas são dramas comuns à humanidade). As referências geográficas de Mamma, son tanto felice e de O mundo inimigo, como o Rio Pomba, o Cine Edgard, a Manufatora e a Ilha (a zona) passam a identificar a Cataguases de Ruffato, da mesma forma que o Rio Belém, o Passeio Público, a Rua 15 e agora, com Rita Ritinha Ritona, a Rua Amintas 749 — entre outros pontos — são marcas da inconfundível Curitiba de Dalton Trevisan.
Mas o que realmente caracteriza a literatura ruffatiana é, acima de tudo, o trabalho com a linguagem, a exemplo do que se lê no capítulo Jorge Pelado, do livro O mundo inimigo:
um barulho Jorge Pelado acorda bombardeio no peito o trinteoito mira trêmulo o breu um barulho sonho? passos lá fora? passos lá fora? aguça os ouvidos. Sentado na cama, a vista devora a escuridão. Pelas gretas da janela, veios de luz luscofuscam o quarto. Um barulho? Passos? nada. Ao longe, o desespero de uma sirene. Cansaço. Os músculos se distendem, o cano do revólver aponta o chão de cimento. Os olhos se fecham. Abrem-se. Um barulho? Fecham-se. Um barulho! Abrem-se. Fecham-se. Cansaço. Estou cansado, Bibica. Muito cansado. Bibica? Quem está lá fora? Vem deitar no meu colo, vou te fazer dormir, vem. A noite fede. O urinol está cheio, Bibica. O Zunga ainda não chegou, meu deus… Dorme, meu filho, dorme… Bibica, o doutor Normando quer despachar o Jorginho… Ele falou que não vai mexer nem uma palha… que já tem problemas demais… E que vai lavar as mãos se a gente Os olhos se abrem Foi um barulho? Cansaço. Pode entrar…É só não arreparar na bagunça… casa de pobre… aceita um cafezinho?, coei agorinha agorinha. (pág. 91)
O fragmento revela aspectos da proposta de linguagem literária desenvolvida pelo autor: polifonia — várias vozes, vozes estas de um mesmo ou mais de um personagem, múltiplas situações dramáticas em um mesmo espaço-tempo (produzidas por meio da variação de tipos, uso de negritos e itálicos), ausência de linearidade narrativa, recuperação de palavras da cultura oral e neologismos.
A polifonia se revelou a solução para traduzir dramas de pessoas imersas em um universo caótico (excluído da “situação” oficial). A sobreposição de vozes é uma maneira de entender como aqueles personagens se comunicam: alternando assunto, retomando e ignorando este ou aquele tema. E a polifonia diz respeito, desde o entreguerras do século 20, e mesmo antes, à comunicação humana. Hoje, tanto um internauta como um telespectador de tevê a cabo (entre tantas formas de contemplação e voyeurismo) estão condenados à polifonia, muitas vezes, fragmentada: do noticiário político para o resultado do futebol, da fofoca sobre celebridade para a cotação do euro, do mais recente crime contra o erário para o show de rock — e, em alguns casos, a informação não é conferida nem absorvida na íntegra, mas parcialmente (há muito que a linearidade não é obrigatória para seja lá o que for, muito menos para a transmissão de informações). Luiz Ruffato demonstra estar atento a esses aspectos e os imprimiu em sua ficção. Assim, é possível ler Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo desrespeitando a seqüência apresentada e aleatoriamente pular de um capítulo do início para outro do final — apesar de que os livros também funcionam para a sistemática leitura do início ao fim.
Recuperar palavras da cultura oral e mesmo se valer de neologismos foi outra necessidade que o tema pedia: Ruffato trata de personagens para quem, raríssimas exceções, sempre foi (e continua sendo) negado o acesso à cultura tida como oficial ou mesmo apontada como “alta”. Os personagens ruffatianos são pobres descendentes de pobres para quem é concedida uma oportunidade de ensino profissionalizante: eles são muitos cavalos, podem vir a ser mão-de-obra (mal-remunerada). Daí a pertinência do uso de palavras como jinela, tiburço, tribuzana, arreparar, alembra, desinfeliz, fedaputa, bença etc. Ruffato dialoga, por exemplo, com João Guimarães Rosa, mas, a exemplo dos atletas da corrida do bastão, leva a tradição em frente: além dos pontos de contato com Rosa e seu grande, vasto sertão (linguagem elaborada e adequada ao tema, polifonia, uso de neologismos, enredo que traduz e revela um Brasil “oculto”), Ruffato acrescenta algo novo ao se valer de negritos, itálicos, tipos variados, itálico, tipos variados, negritos, tipos variados, negritos, itálicos etc. — o que provoca um efeito visual na página do livro. Ruffato dialoga também com as artes plásticas.
Inferno provisório traz, como o autor anuncia e propõe, um olhar sobre os impasses dos trabalhadores urbanos brasileiros da segunda metade do século 20. E o que sobressai é a maneira como ele realizou o projeto: literatura em diálogo com outras manifestações artísticas e apurado trabalho com a linguagem. O resultado surpreende: Luiz Ruffato, sem panfletarismo, insere na literatura aqueles que não têm voz e que entram para a história como estatística: esses tantos Luizes Inácios da Silva destinados à senzala, impedidos de ingressar na casa grande, imersos em um caos-inferno que de tanto ser provisório se revela permanente.