Em 2005 o escritor, roteirista, dramaturgo, crítico e ator norte-americano Eugene Luther Gore Vidal completa 80 anos. Intelectual enfant-terrible das letras, Vidal vem se insurgindo desde que surgiu no cenário artístico e intelectual dos Estados Unidos em mais de 20 romances, cinco peças, uma centena de ensaios e roteiros de filmes contra o senso comum e as opiniões fáceis, isso sem dispensar a vida de seus analisandos, em geral tratados com fartas doses de humor, ironia e cinismo, algo, em seu caso, difícil de separar.
Nascido na Academia Militar de West Point, em Nova York, Vidal cresceu na casa do avô, o senador Thomas P. Gore, em Washington, tendo o pai ausente, um piloto premiado, e a mãe, Nina, alcoólatra e com crises nervosas (de quem ele se vingaria em sua autobiografia). Sua carreira começou em 1945 com Williaw, romance de guerra que passou despercebido. Três anos depois, entretanto, causaria sensação ao lançar em 1948, aos 24 anos, o romance com temática gay A cidade e o pilar. O livro não foi exatamente um sucesso, mas, talvez devido à ousadia em abordar o tema, seus cinco livros seguintes seriam ignorados. Vidal volta-se então à televisão e ao cinema, escrevendo roteiros de filmes como Ben-Hur — em que sugere homossexualismo — e De repente no último verão. Décadas depois, atuaria em filmes como Gattaca e Bob Roberts.
O tema homossexual seria retomado em obras como Thirsty Evil, no Brasil traduzido como Um momento de louros verdes (Editora Rocco) e no inclassificável Myra Brekenridge, talvez o seu maior sucesso. O livro vendeu milhões de exemplares apenas no primeiro ano, sendo adaptado para o cinema, protagonizado por Rachel Welch. Neles, o autor realiza uma literatura assumidamente homossexual, mas é bom dizer que suas personagens não investem em relações homossexuais nem lutam por seus direitos, isso porque Vidal se situa na era pré-Stonewall, cuja visão dos gays ainda era a da lamentação, em vez do orgulho e das lutas por mais espaços, deflagrada a partir dos anos 1970. Mas, devemos reconhecer, ele fez muito pela “causa” ao abordar o tema (numa era de tabus e silêncios), assim como em dezenas de ensaios (em geral para a The New York review of books) em que cobra de intelectuais e acadêmicos posições mais claras. Após esses três livros de ficção, ele só tratará do tema em seus ensaios.
A partir de 1960, Vidal vai ocupar sua ficção com outras obsessões, como o mapeamento ficcional de dois grandes impérios — o romano e, sobretudo, o norte-americano. Começa a tratar (sempre mesclando ficção, memória e História) dos bastidores da política, sangrentos e repletos de episódios envolvendo mortes, sexo e ambição. Os seus livros vão empreender um longo passeio pelos presidentes norte-americanos em seus períodos de regime: Abraham Lincoln (1861-1865), Theodore Roosevelt (1901-09), Richard Nixon (1969-74) e Ronald Reagan (1981-89), não por acaso todos do Partido Republicano. E, apesar de abordá-los, Vidal vai se opor as suas bandeiras (como nacionalismo, religiosidade e militarismo), daí já ter afirmado que seus livros contam o que os livros de História omitem. Não podemos deixar de citar John Fitzgerald Kennedy, cuja invasão à Cuba e, sobretudo, assassinato, tornou-se um dos episódios mais repisados da cena norte-americana, digna dos trailers de Hollywood, com sua cabeça sendo despedaçada por Lee Oswald na manhã de 22 de novembro de 1963 num desfile ao lado da esposa Jackeline, a mesma que se envolveria anos depois com aquele grego lamentável, o armador Onassis. Devido ao seu parentesco com Jackie, Vidal teve amplo acesso à Casa Branca na era JFK. Aproximação que, dada a quantidade de visitas, chegou a provocar antipatia no seu companheiro: “Ah não, jantar de novo na Casa Branca?!”, reagia o judeu Howard Austen, com quem vive há mais de 50 anos. Vidal se candidatou duas vezes ao Congresso pelo distrito de Nova York. Fazia parte de seu programa o reconhecimento da China, a ajuda federal à educação e a diminuição dos gastos militares, mas, apesar de obter boa votação, acabou derrotado.
Nos anos 60, ele começa a lançar seus romances históricos. Em 1963, sai Juliano, biografia ficcional do imperador romano do século 4 e, em seguida, Criação. A partir daí, volta-se para os Estados Unidos, abordados inicialmente numa trilogia que depois se desdobra em quase dez livros que ele chama de narrativas do império. Em 1967, sai Washington, D. C., completada, anos após, com Burr, 1876, Lincoln, A era dourada e outros. Num de seus últimos artigos, o escritor lamenta que seu país continue cometendo os mesmos erros: “Pertenço a uma minoria que hoje é a menor do país e se reduz a cada dia que passa. Sou veterano da Segunda Guerra Mundial. Lembro-me de pensar, quando saí do Exército, em 1946: ‘Agora acabou. Vencemos. E quem vier depois de nós nunca precisará fazer a mesma coisa de novo’. Então aconteceram as duas guerras loucas da vaidade imperial — Coréia e Vietnã e, agora, tem a guerra do Iraque, do petróleo e do terrorismo”.
Além da política, Vidal aos poucos vai se tornar um dos críticos mais ferrenhos à idéia de religião, sobretudo a Igreja Católica, para ele o segundo império. Em livros como Duluth, Messias, Kalki e Ao vivo do calvário, o planeta é tomado pelo obscurantismo e intolerância da instituição que governa seus seguidores aproveitando-se do fanatismo. Volta e meia ele ressurge com suas provocações em artigos defendendo o aborto e contratos legais entre casais homossexuais, bandeiras contestadas pela Igreja. Roma, por sinal, é uma velha conhecida sua. Há mais de 30 anos, ele reside numa mansão em Ravello, um pequeno povoado italiano.
Numa era de grupos e confrarias, Vidal sempre expôs suas opiniões, alimentando a imagem de polemista por não se conter, inclusive, em achincalhar alguém sempre que julgou necessário. Ele parece se divertir ao cometer essas diatribes em ensaios famosos pela sua verve e mordacidade, mas também inteligência e sagacidade com que analisa fatos e personagens das cenas literária e política. Assim são, por exemplo, os ensaios aqui lançados com o título De fato e de ficção (Companhia das Letras), edição esgotada, em que ele trata de “velhos amigos”, como os escritores Francis Scott Fitzgerald, Yukio Mishima e Tennessee Williams, que ele chama de “a ave gloriosa”. É nesse livro que relembra ter passado uma tarde em plena “era dourada” (anos 1940/50), com o escritor francês André Gide e de ter “tocado nas mãos que tocaram as mãos de Oscar Wilde”, sobre quem, aliás, já escreveu um artigo em outro livro de ensaios, Como faço o que faço e talvez inclusive o porquê (Companhia das Letras), edição esgotada. Nele, temos sua costumeira acidez bem longe da reverência. Mas se há sempre fartas doses de veneno também podemos encontrar perfis generosos como o de Franklin Roosevelt (especialmente sua esposa, Eleonor) e John Kennedy. Vidal parece ter se especializado em escrever reunindo crítica com elementos da (sua) memória. Sobre Wilde, por exemplo, enquanto analisa O retrato de Dorian Gray, conta as lembranças do avô senador, que chegou a assistir às célebres palestras do escritor irlandês nos Estados Unidos: “Ele usava polainas bordadas à mão”, nos diz. Ou isso será ficção? Em seu caso, não importa.
A sua aparente liberdade foi conquistando milhares de leitores mundo afora, bem como, inimigos. De qualquer forma, é interessante perceber como um escritor se transformou num personagem que flerta com o show business, o que reforça a velha história de escritores conhecidos não pelos seus livros, mas por epigramas, máximas e frases feitas. Capa de revistas distantes do mundo literário, como Life, Times, People e Newsweek, vez ou outra citado como candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, vale lembrar que, em tempos de Michael Moore, há muito Vidal se opõe ao império. À época, escreveu contra a Guerra do Vietnã, assim como a chamada guerra fria (EUA X Rússia) e ao apoio norte-americano às ditaduras militares instaladas na América Latina.
Em sua autobiografia, Palimpsesto (Editora Rocco), foi criticado por falar mais sobre os outros que sobre ele mesmo, apesar de confessar que chegou a fazer sexo cerca de mil vezes apenas num ano da “era dourada”, a Paris do pós-guerra, mas a sua metralhadora, claro, está lá. Dela não escapa nem sua mãe. Ele a chama de alcoólatra, arrogante e reclama de ter lhe perseguido, com inveja da sua fama. Sua autobiografia “acaba” aos 44 anos, que seria depois completada por Fred Kaplan, em Gore Vidal — A biography, ainda não lançado no Brasil.
O combativo escritor continua se pronunciando. Foi assim quando Bill Clinton se envolveu com a estagiária Mônica Lewinski e, agora, na convenção republicana, que lançou a reeleição de George Bush, da qual ele se opõe. Primo do candidato derrotado à Presidência por Bush em 2000, Al Gore, recentemente Vidal publicou uma coletânea de ensaios sobre 11 de setembro de 2001, Perpetual war for perpetual peace: how we got to be so hated (Guerra perpétua pela paz perpétua: como nos fizemos odiar tanto) e acaba de sair Imperial America, ambos ainda não traduzidos. Muito antes de 2001, ele falou à Folha de S. Paulo: “Os Estados Unidos têm razões para não cultivar seu passado. Somos culpados e, ao contrário do que diz nossa propaganda, detestados. Os EUA agem sempre de má-fé com outros países”.
Carregando a fama de maledicente e de fofoqueiro literário, por outro lado, poucos escritores têm sido tão respeitados, conforme atestam depoimentos de Harold Bloom e Eric Hobsbawn no documentário A educação de Gore Vidal, em que ressaltam sua erudição e conhecimento histórico. Ao abordar homossexualismo, religião e, particularmente, política, em seus tantos ensaios, peças e livros, Gore Vidal usa sua verve e irreverência sempre a favor da derrocada de mitos.