Poética do ver

"Sequências", de Júlio Castañon Guimarães, revela mais concretudes das matérias do que vivências psicológicas
Júlio Castañon Guimarães, autor de “Sequências”
01/04/2024

Muito tem se falado que a poesia do nosso tempo vem revelando novas formas do eu. Há o sujeito lírico multifacetado, não mais de sete faces que convergem no mesmo homem moderno, como fez Drummond, mas sim algo mais atravessado de outras subjetividades. Tem aquele mais poroso, como vimos fazer recentemente Prisca Agustoni, ou ainda o fio desencapado de Edimilson de Almeida Pereira, que curto-circuita as noções logocêntricas oriundas do romantismo e ainda operantes num dado modernismo. Há também o eu-corpo-periférico dos saraus de Slam, que tem feito aumentar o protagonismo feminino na poesia. E tem ainda a potência criativa dos MCs, engrossando e transformando a espiral afrodiaspórica, bem como a turma das frestas, como diz Luiz Antonio Simas, sempre revelando mundos na guerra contra a morte — tudo isso convivendo com o lirismo ainda fino de Ana Martins Marquês e outros tantos.

Isso, a meu ver, só depõe a favor da poesia de agora. É nesse contexto de diferentes depurações do eu que aparece Sequências, de Júlio Castañon Guimarães. E aparece para intervir esteticamente nesse ponto em particular da multissubjetivação da nossa poesia.

No livro, o eu só aparece de maneira deliberada no último poema. Isso nos dá a ler uma poesia que, trabalhada na percepção, revela concretudes das matérias mais do que vivências psicológicas.

É sobre a economia geométrica e pictórica do mundo, com tudo de sonoro que isso também traz. Importante dizer, o som, no livro de Castañon, é também percebido na concretude da sala mais do que na grandeza do espírito:

Como se não houvesse havido
prévia, desta sala, sua construção,
o som conformaria as próprias paredes,
na justa medida de sua, dele som,
necessidade. Concreto.

É bonito ver como forma e conteúdo cooperam ao levar o leitor para fora da música que se reduz a sentimentos guardados. O modo como a pontuação é trabalhada impõe, pela interrupção, a sensação de coisa concreta e enquadrada, como compassos e paredes. Ou seja, tudo ajuda a compor uma atmosfera de percepção da música que se dá ali no espaço da sala de concerto e não nas sentimentalidades de um indivíduo. A música, que, sim, é obra para o espírito, nos envolve enquanto compõe as próprias paredes da vivência estética.

O livro está repleto de versos como esses, em que o que se sente está no nível da percepção e das materialidades. Uma chave possível para entender toda a elaboração poética da obra está nos poemas que se insinuam como écfrases a obras de Paul Cézanne. Tomemos O grande pinheiro de Cézanne (Masp).

1.
[…]
a enumeração das cores,
tanto quanto esse que refere a figura.
e desta, antes de seu movimento,
ou mesmo de sua distribuição,
o que seria de indagar?
Da solidez que a comporia.
Mas ainda com ligeira cisma de sons
— o discurso do vento
que imprimisse a direção para onde.
[…]
3.
A matéria dele, o quadro, seria uma história,
e concentradamente toda sua narração?
Seria sobretudo matéria sólida,
avessa a perambulações
que a desviem de si mesma.
Se poderia quase que apenas por equívoco
pensar em paisagem,
quando de fato se trata de um retrato.

Se disse acima se tratar de poemas que se insinuam como écfrases, o fiz por entender que Castañon vai além do esforço retórico e nesse poema lança uma proposição estética. O texto revela uma fenomenologia do olhar. Na esteira da dúvida que, segundo Merleau-Ponty, assombrou Cézanne, o poeta aqui parte da concretude da imagem para mostrar como o olhar projetado na cena revela mais sobre o ato de ver do que propriamente sobre a coisa vista, tanto que no esmero desse exercício o que seria paisagem acaba se revelando retrato.

A estética da despsicologização passa pelo desensimesmamento que, aqui, é transferido para a deambulação. O eu sai de cena. Não há um eu percebendo o quadro (o poeta), como também não há o eu que o pintou (Cézanne), há apenas uma percepção do vento por meio do movimento da árvore. É isso que Cézanne pinta e é aí que Castañon deseja colocar o eu. O que se personaliza em retrato é uma árvore que, canonicamente, viveu na história da arte como paisagem.

Notemos que o “em si mesma” não retoma nem o sujeito nem o objeto, antes, evoca o gesto de deambular, de perceber, de ver.

Corrobora ainda com a ausência da palavra eu, e suas conjugações, a recorrência da palavra “aqui” (muito frequente no livro). Essa escolha mostra que a primazia do sentido não está confinada num indivíduo, mas vivendo no espaço, ao mesmo tempo que compondo o espaço (como vimos no poema da sala de concerto).

Diferente da pintura de Cézanne, que, por meio de técnicas consagradas no chamado impressionismo, faz ver a emersão das coisas brutas ao implicar a visão no gesto de deambulação, a forma encontrada pelo poeta para criar esse efeito com palavras foi quase abolir o eu na economia do poema.

Somos chamados para fora de nós mesmos para percebermos que o sentido está sendo movido na carne do olhar, mais do que numa dada psique que nos condenaria a ver na paisagem apenas nosso autorretrato.

No entanto, esse corte do eu na economia do poema não assegura o desensimesmamento. A operação é mais profunda.

Se o instante que o poema quer tocar é o instante da percepção, o que está em questão é antes um eu consciente de seu atravessamento pelo outro do que a anulação pura e simples do sujeito que percebe. Não por coincidência o eu, que ficou ausente até o último poema do livro (a exceção do poema 11 da primeira sequência), é convocado para a cena de encerramento. Vejamos o poema Esboço de cena:

— Vê-se, logo, que começa,
mal e mal, suspensa,
e não por ameaças
no horizonte, entre tantas,
que brechas, se brechas, a seguir,
uma frase se começa

O poema inicia reforçando a não subordinação a um eu. Não é um sujeito que vê e que começa a frase. Esta se faz nas brechas e dá demonstrações de não querer seguir uma lógica espaço temporal, haja vista a interrupção sintática pouco comum no primeiro verso. A vírgula entre o verbo e o advérbio (vê-se, logo) tende a criar efeitos de superposição mais do que de linearidade.

No entanto, esse poema que encerra o livro traz com força a imagem sugerida no título da obra, pois sabemos que, tradicionalmente, as cenas no cinema são dirigidas a partir da composição das Sequências. Não é coincidência que, ao compor, enfim, a sequência, o poeta opte por trazer o eu de volta. Isso, entretanto, sinaliza que o eu que volta não é o eu psicologizado, cheio de si. É um eu que se constituiu a partir das coisas que não são ele, pois esse eu se fez carne porosa para a geometria, as cores e as materialidades do mundo. Um eu que não ouve música com os ouvidos de dentro, antes, que se estende em sala de concerto para que a música encarne sua própria rede de sentido.

Observemos a volta do eu. Primeiro, um eu plural, ainda um nós: “Sem nem sabermos/ onde nos encontramos”. […] “talvez na gente mesmo, […]”, depois, enfim, num verso absolutamente solitário da sequência do poema: “vou”. Eis o modo como o eu aparece já reconfigurado na cena e no livro. Um eu que é movimento, que vai. E na continuidade do poema:

talvez, mesmo,
apesar, de, tudo, hoje,
ou, amanhã, retomar,
falta, de, incompreender,
o, que, ontem

Vemos de novo as interrupções que criam interpolações, sobreposições, “amontoados de sombras” que não precisam de uma subjetividade plena de psique para estender o fio do entendimento, antes, que demandam um diretor que reconheça a porosidade da cena para enfim rodar a imagem final, cheia de geometria e luz:

[…] Do lado oposto
ao meio-fio, tem-se ângulo
reto com o muro de altura um pouco
maior que a largura da calçada, seu
revestimento asperamente gasto,
seu tom próximo ao dos blocos de pedra,
seu limite vertical sendo a noite […]

Feito isso, se pode voltar ao “mim” que aparece no início do livro (poema 11 da primeira sequência) e ver que ele não passa de uma imagem vista por outro: “a poeira de uma estrada/ perdida na imagem de mim”.

Enfim, Sequências, de Júlio Castañon Guimarães, é livro complexo como toda obra que se empenha numa fenomenologia de desensimesmamento.

Sequências
Júlio Castañon Guimarães
Círculo de Poemas
96 págs.
Júlio Castañon Guimarães
Nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1951, e vive no Rio de Janeiro (RJ). Já teve seus poemas reunidos pela Cosac Naify/7Letras (2006) em Poemas. Publicou também Do que ainda (2009). É autor de estudos como Por que ler Manuel Bandeira (2008) e Entre reescritas e esboços (2010). É também tradutor tendo sido agraciado pelo Prêmio Paulo Rónai, em 2019, pela tradução de As flores do mal, de Baudelaire.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho