Poeta extraordinária

A força lírica da Marquesa de Alorna em "Sonetos"
Marquesa de Alorna, autora de “Poeta extraordinária”
01/11/2011

Setembro de 1758: D. José I retornava incógnito para o Palácio da Ajuda, quando foi ferido numa emboscada. O atentado foi mantido em segredo por meses; rumores circulavam por Lisboa; agitava-se a correspondência diplomática. Dizia-se que o rei voltava de visita à Marquesa de Távora, sua amante — cujos parentes, indignados pela ofensa moral, planejaram o ataque. Outra a versão oficial: o autor do crime teria sido o Duque de Aveiro, junto de outros fidalgos e sob orientação dos jesuítas. O obscuro processo transcorreu com rapidez: em janeiro de 1759, executavam-se os Távoras, seus filhos, o Duque e seus criados, com inaudita violência. O mais notável: assim se eliminariam alguns dos adversários mais poderosos do rei e do Marquês de Pombal, seu ministro.

No Antigo Regime, a mancha do crime se espalhava pelo sangue. Mesmo sem acusações formais, o 2° Marquês de Alorna foi encarcerado: era casado com uma das filhas da Marquesa executada. Privadas da tutela masculina, sua esposa e suas filhas foram enviadas para um convento, como um equivalente da prisão. Só em 1777, morto o rei, a família seria libertada. A filha mais velha, Leonor de Almeida, tinha então 26 anos, 18 dos quais passara no convento; nesse longo e árduo período, revelara um raro talento poético.

Copiosamente anotado, o indispensável volume de Sonetos editado por Vanda Anastácio reúne uma preciosa amostra da poesia de Leonor, a 4ª Marquesa de Alorna — resgatando ainda poemas inéditos, expurgados por editores que, por interesses familiares, tencionavam forjar da Marquesa um perfil isento de envolvimentos políticos, ou adequado a modelos femininos de modéstia e recato. Valioso é também o texto introdutório, que esclarece passagens biográficas obscuras — graças a documentos que Vanda, professora da Universidade de Lisboa, vem compulsando ao longo de uma vasta pesquisa.

Se Leonor dizia escrever “para passar e adoçar instantes” que “acontecimentos penosos enchiam de amargura”, seus poemas logo despertariam o interesse dos contemporâneos — inclusive de vultos como Filinto Elísio, que supostamente lhe concederia o nome literário Alcipe; e Frei Alexandre da Sagrada Família, tio e iniciador literário de Garrett. Mesmo na clausura, Leonor com eles estabeleceria contatos, destacando-se ainda como improvisadora em outeiros. Embora orientada pelo pai a escrever de modo “apropriado” a uma donzela (evitando, por exemplo, o uso da mitologia, perigosa para a moral), cedo Alcipe demonstraria um temperamento independente, elegendo seus motivos e modelos.

Mas a independência de Leonor ultrapassaria o campo literário. Contrariando a vontade paterna, desposaria o Conde de Oyenhausen; por problemas políticos que o envolviam, teria de acompanhá-lo a Viena, deixando a filha com os pais que sequer responderiam às suas cartas (só voltariam a fazê-lo quando Leonor lhes enviasse um auto-retrato, com o sugestivo título “Solidão”). Viúva, atuaria na resistência às forças napoleônicas. Já idosa, a Marquesa, que sempre incentivara os talentos literários (não à toa, Bocage lhe dedicou o terceiro tomo das Rimas), receberia em casa jovens escritores — entre eles, Castilho e Herculano. Este, já após a morte da Marquesa, escreveria um texto em que a apodaria “mulher extraordinária”; alcunha que, ainda hoje, parece-lhe adequada.

No que tange à poesia, ressalta a mestria com que Alcipe tematiza os estados subjetivos, figurados numa imagética de espantosa força lírica. Se usa freqüentemente da mitologia, não o faz por capricho; submete-a à necessidade poética, chegando a inventar uma deusa (a Melancolia) para rogar-lhe, em soneto composto ainda na clausura: “Atende, ó Ninfa, o rogo que te faço,/ Não demores mais tempo o doce instante,/ Os dias tristes, que eu tão triste passo”. Usualmente qualificada como “pré-romântica”, a poesia de Leonor não raro ultrapassa as fronteiras epocais — sobretudo no que tange a estes sonetos, que tantas vezes dizem as dores dos homens (e das mulheres) de todos os tempos.

Sonetos
Marquesa de Alorna
7Letras
236 págs.
Leonor de Almeida Portugal
Leonor de Almeida Portugal (1750-1839), 4ª Marquesa de Alorna, foi uma das principais vozes da literatura portuguesa pré-romântica, sob o nome árcade Alcipe. Neta dos Marqueses de Távora, executados sob acusação de envolvimento num atentado contra o rei D. José I, ainda criança foi enclausurada no Convento de Chelas, onde passaria 18 anos. Na clausura, tomou contato com o pensamento iluminista e estudou música, pintura e idiomas. Além de poeta, foi tradutora de Horácio, Pope e Wieland, entre outros.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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