Setembro de 1758: D. José I retornava incógnito para o Palácio da Ajuda, quando foi ferido numa emboscada. O atentado foi mantido em segredo por meses; rumores circulavam por Lisboa; agitava-se a correspondência diplomática. Dizia-se que o rei voltava de visita à Marquesa de Távora, sua amante — cujos parentes, indignados pela ofensa moral, planejaram o ataque. Outra a versão oficial: o autor do crime teria sido o Duque de Aveiro, junto de outros fidalgos e sob orientação dos jesuítas. O obscuro processo transcorreu com rapidez: em janeiro de 1759, executavam-se os Távoras, seus filhos, o Duque e seus criados, com inaudita violência. O mais notável: assim se eliminariam alguns dos adversários mais poderosos do rei e do Marquês de Pombal, seu ministro.
No Antigo Regime, a mancha do crime se espalhava pelo sangue. Mesmo sem acusações formais, o 2° Marquês de Alorna foi encarcerado: era casado com uma das filhas da Marquesa executada. Privadas da tutela masculina, sua esposa e suas filhas foram enviadas para um convento, como um equivalente da prisão. Só em 1777, morto o rei, a família seria libertada. A filha mais velha, Leonor de Almeida, tinha então 26 anos, 18 dos quais passara no convento; nesse longo e árduo período, revelara um raro talento poético.
Copiosamente anotado, o indispensável volume de Sonetos editado por Vanda Anastácio reúne uma preciosa amostra da poesia de Leonor, a 4ª Marquesa de Alorna — resgatando ainda poemas inéditos, expurgados por editores que, por interesses familiares, tencionavam forjar da Marquesa um perfil isento de envolvimentos políticos, ou adequado a modelos femininos de modéstia e recato. Valioso é também o texto introdutório, que esclarece passagens biográficas obscuras — graças a documentos que Vanda, professora da Universidade de Lisboa, vem compulsando ao longo de uma vasta pesquisa.
Se Leonor dizia escrever “para passar e adoçar instantes” que “acontecimentos penosos enchiam de amargura”, seus poemas logo despertariam o interesse dos contemporâneos — inclusive de vultos como Filinto Elísio, que supostamente lhe concederia o nome literário Alcipe; e Frei Alexandre da Sagrada Família, tio e iniciador literário de Garrett. Mesmo na clausura, Leonor com eles estabeleceria contatos, destacando-se ainda como improvisadora em outeiros. Embora orientada pelo pai a escrever de modo “apropriado” a uma donzela (evitando, por exemplo, o uso da mitologia, perigosa para a moral), cedo Alcipe demonstraria um temperamento independente, elegendo seus motivos e modelos.
Mas a independência de Leonor ultrapassaria o campo literário. Contrariando a vontade paterna, desposaria o Conde de Oyenhausen; por problemas políticos que o envolviam, teria de acompanhá-lo a Viena, deixando a filha com os pais que sequer responderiam às suas cartas (só voltariam a fazê-lo quando Leonor lhes enviasse um auto-retrato, com o sugestivo título “Solidão”). Viúva, atuaria na resistência às forças napoleônicas. Já idosa, a Marquesa, que sempre incentivara os talentos literários (não à toa, Bocage lhe dedicou o terceiro tomo das Rimas), receberia em casa jovens escritores — entre eles, Castilho e Herculano. Este, já após a morte da Marquesa, escreveria um texto em que a apodaria “mulher extraordinária”; alcunha que, ainda hoje, parece-lhe adequada.
No que tange à poesia, ressalta a mestria com que Alcipe tematiza os estados subjetivos, figurados numa imagética de espantosa força lírica. Se usa freqüentemente da mitologia, não o faz por capricho; submete-a à necessidade poética, chegando a inventar uma deusa (a Melancolia) para rogar-lhe, em soneto composto ainda na clausura: “Atende, ó Ninfa, o rogo que te faço,/ Não demores mais tempo o doce instante,/ Os dias tristes, que eu tão triste passo”. Usualmente qualificada como “pré-romântica”, a poesia de Leonor não raro ultrapassa as fronteiras epocais — sobretudo no que tange a estes sonetos, que tantas vezes dizem as dores dos homens (e das mulheres) de todos os tempos.