A assinatura de Antonio Cicero, que acaba de lançar seu terceiro livro de poemas, Porventura, é um indício do que lemos em sua obra: a combinação de dois nomes de origem latina e a ausência dos acentos tônicos reverberam as referências à Antiguidade Clássica e a sintaxe rigorosa e equilibrada que encontramos nos seus versos. Mas cada elemento dessa obra é simultaneamente o seu avesso, a Antiguidade é o que resta da Modernidade, e o equilíbrio dos versos corresponde a uma singular experimentação poética, que pode ser vislumbrada através do trabalho de oficina que a publicação dos seus poemas em revistas e outros livros, além dos ensaios que escreve, torna pública.
Temos notícia de versões diferentes dos poemas deste novo livro a partir de uma antologia organizada em 2010 por Alberto Pucheu para a coleção Ciranda da Poesia. Por exemplo, o poema Muro, de Porventura, correspondia inteiro à segunda e última estrofe de outro poema, sem título, que em 2010 dizia: “E se o trecho opaco como um muro/ valerá nossas noites em claro/ e não raro justo o mais obscuro/ resplandecerá mais que o mais claro?”. Essa quadra rimada em versos de nove sílabas enuncia a possibilidade de o poema se construir pelo trabalho do poeta insone mas se revelar precisamente no trecho mais “opaco” ou “obscuro”. E é o trabalho do poeta, por meio de sua técnica, que celebra nessa versão do poema o contraste entre tonalidades vocálicas ou os choques consonantais, como no caso do primeiro verso, no qual a seqüência “opaco como um muro” produz cacofonias por repetição silábica (“opaco como”, “como um muro”) que atrasam a fluidez da leitura. Ou ainda como no último verso, no qual a seqüência de sílabas tônicas com a vogal mais aberta (“resplandecerá mais que o mais claro”) espelha a luminosidade do poema resplandecente que, em claro-escuro, contrasta com a seqüência em vogal mais fechada do verso anterior (“justo o mais obscuro”).
Parece ser justamente essa assinatura sonora o que o poeta desejou apagar na nova versão do poema, agora intitulado Muro, na qual, à exceção do último verso — cuja claridade passa a funcionar mais evidentemente como chave de ouro —, a intencionalidade milimétrica das aliterações e assonâncias não se sustenta: “E se um poema opaco feito muro/ te fizer sonhar noites em claro?/ E se justo o poema mais obscuro/ te resplandecer mais que o mais claro?”. Como se percebe, não apenas a música do poema orientou a sua reescritura, mas também o aparecimento de um interlocutor, que modifica fundamentalmente os versos. Pois se antes o poema, resplandecente por si próprio, compensava as noites em claro do poeta madrugador, agora o “poema opaco”, “o mais obscuro”, resplandece o sujeito, e em vez de tirar o seu sono, transfigura a sua noite sonhada.
A indecisão desse sujeito é decisiva: poeta ou leitor? Na primeira versão, a questão era o trecho obscuro chegar a ser poema e assim resplandecer, conquistando autonomia em relação a seu autor que trabalhou heroicamente em sua produção; na segunda, a questão passa a ser o efeito que o poema pode produzir com sua obscuridade. De uma versão à outra, lê-se uma fábula do poeta contemporâneo, que, como num palimpsesto, procura apagar o poema moderno e, sobre este, produzir um texto pouco mas decisivamente diferente.
Poeta do nada
São várias as formas modernas reencenadas nos versos de Cicero. Uma que chama a atenção é a disposição gráfica dos seus poemas, que, desde o primeiro livro e até agora sem exceção, são dispostos centralizados na página. À primeira vista, o desenho simétrico da mancha gráfica joga com a falta de simetria sintática dos versos, às vezes muito fragmentados, e o poema dessa maneira fica formalmente irônico. O melhor exemplo deste jogo ainda é o poema Sair, publicado em 2002 no volume A cidade e os livros: “Já o sol,/ as cores da terra e o/ ar azul — o céu do dia —/ mergulharam até a próxima aurora; a/ noite está radiante e Deus não/ existe nem faz falta”. Este trecho é exemplar do poema inteiro, cujos versos terminam quase sempre em monossílabos, palavras curtíssimas, que dão a impressão de um poema picotado.
Por outro lado, se considerarmos rigorosamente o procedimento da centralização dos versos, será preciso atentar para o fato de este procedimento só ser possível ao poeta com o advento do computador pessoal. É o programa de edição de textos do computador que, desde a composição do poema, calcula o posicionamento centralizado do verso simultaneamente à sua própria composição — o que não era possível com a máquina de escrever. A implicação deste gesto simples não é pequena, pois assim a obra de Cicero expõe o meio de produção sem se propor a dominar e incorporar à poesia as técnicas mais avançadas dos programas de produção e edição de textos. Com isso, posiciona-se diante da tradição das vanguardas, assumindo que o experimentalismo hoje não transforma a compreensão consensual do que seja o poema, conforme desenvolve no seu ensaio Poesia e paisagens urbanas, de Finalidades sem fim (2005).
A atenção ao processo de escrita dos poemas é abordada na obra de Antonio Cicero tanto em seus ensaios quanto em alguns de seus poemas. Há um trecho em prosa do poeta, publicado no ensaio Poesia e filosofia, em 2005, e republicado em livro homônimo (que consiste numa ampliação daquele ensaio), em 2012, em que ele expõe sua atividade de composição:
Há alguns anos comecei a escrever poemas direto no computador. Escrevo um primeiro rascunho e imediatamente começo a avaliá-lo e corrigi-lo. Logo sinto necessidade de ler no papel o que estou escrevendo. (…) Até dar por pronto um poema, já gastei dez, vinte, trinta folhas de papel. Ora, havia coisas escritas nelas; no entanto, nenhuma folha durou mais de alguns minutos antes de tomar o caminho do lixo. Que significa isso? Que a sua permanência não foi muito maior que a de uma fala.
É interessante notar, por este relato, que enquanto não está pronto, mesmo a versão impressa do texto é um poema virtual, já que, em processo de composição, as versões dos poemas modificam-se até a sua forma final. Essa noção do poema virtual, ou seja, do texto que está apto a tornar-se um poema mas ainda não o é, aparece em alguns dos poemas da obra de Cicero. Neste novo livro, encontramos um ótimo poema narrativo em que o poeta supõe estar sendo vigiado por um vizinho enquanto, sentado diante do computador, escreve seus versos. Num primeiro momento, tranqüiliza-se, pois considera improvável que o vizinho desconfie da natureza de seu trabalho, um poeta ocupado com os próprios versos. No entanto, levanta uma hipótese curiosa, que o põe em pânico: “Mas e se ele, tendo lido/ meus lábios, que pronunciam/ o que na tela está escrito,/ perceber-se desterrado/ não só do meu paraíso:/ do meu desterro, coitado?/ E se ele a tudo atentar/ e por inveja e recalque/ me der um tiro de lá?/ Melhor fechar o blackout”.
Com medo do atentado, fecham-se as cortinas e o poema. Na narrativa que o texto traz, o poeta não chega a finalizar o seu poema, enquanto o poema que lemos se encerra na paranóia do poeta. Trata-se de um jogo de espelhos, no qual o poema escrito é anterior ao poema que se escreve, e que ficou por fazer. A gratuidade do tema trabalha em prol desta poesia que afirma, como princípio, a falta de fundamento da realidade: “nada sustenta do nada esta terra/ nada este ser que sou eu (…)/ nada o poema que breve se encerra/ e que do nada nasceu”. Ou, conforme elaborou Alberto Pucheu no livro anteriormente citado, dedicado a Cicero: “O poema é um quase nada tomado pelo nada da poesia”. Ou ainda conforme a epígrafe de Porventura, de Jean Cocteau, que afirma: “A poesia é indispensável, embora eu não saiba a quê”.
O fato de Cicero encontrar essa afirmação da poesia por meio da valorização da Antiguidade Clássica, e de ser autor de canções populares que tiveram ampla penetração no imaginário brasileiro nas décadas de 1980 e 1990 apenas confirma que a familiaridade com as origens da lírica — que, em seus princípios, acompanhava-se da música — representa, antes de tudo, uma afirmação do lugar da poesia, mesmo que — ou principalmente porque — este lugar seja quase invisível nesta sociedade.