Apenas aqueles muito jovens ou muito ingênuos ignoram que obras de arte, sejam elas literárias ou de qualquer outro gênero, não são entidades universais e autônomas, nascidas do nada, ou Nonada (como Guimarães Rosa inicia sua obra máxima), indiferentes às condições históricas que as produzem e aos valores das classes sociais que as canonizam e fruem. No entanto, não é fácil enxergar com clareza a extensão dos laços viscerais entre os sistemas de pensamento, percepção e desejo inerentes a essas obras e a ideologia dominante, o meio de cultura que situa a todos no emaranhado das estruturas e relações de poder da sociedade em que vivemos.
São conhecidas as relações entre ideologia e estética, e não são poucos os autores contemporâneos que têm se dedicado a estudar as implicações do advento da estética na cultura ocidental e suas relações com a política, a estrutura social e a forma como o homem experimenta o mundo e a si mesmo. Desse modo, o crítico literário marxista Terry Eagleton pode afirmar:
Meu pensamento, lato sensu, é de que a categoria do estético assume tal importância no pensamento moderno europeu porque falando de arte ela fala também dessas outras questões, que se encontram no centro da luta da classe média pela hegemonia política. A construção da noção moderna do estético é assim inseparável da construção das formas ideológicas dominantes da sociedade de classes moderna, e na verdade, de todo um novo formato da subjetividade apropriado a esta ordem social. (A ideologia da estética)
Para Jacques Rancière, existe na base da política uma estética que indica maneiras de estar em comunidade — a qual aponta aqueles que têm competência para enunciar — que determina o teor da experiência dos espaços e dos tempos:
É a partir dessa estética primeira que se pode colocar a questão das práticas estéticas, no sentido em que entendemos… como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que fazem no que diz respeito ao comum. As práticas estéticas são maneiras de fazer que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade. (A partilha do sensível — Estética e política)
Quer queira ou não, a crítica literária de uma nação — com maior ou menor rigor, distanciamento e consciência de seu próprio posicionamento histórico ou político — tende a selecionar, chancelar e canonizar a literatura imbuída da mentalidade, valores e aspirações das camadas sociais que a produzem e consomem — e, portanto, seu ofício nada tem de inocente.
Seqüestro da poesia
A história do nosso modernismo, por exemplo, que é a história das obras modernas e do pensamento crítico e teórico que as justificam e até induzem[1], está repleta de rupturas e negações que mais ou menos acompanham as peripécias e violências da luta pelo poder político nacional. A passagem do Império à República e a ascensão da política do café-com-leite lançou ao esquecimento e à galhofa toda uma constelação de artistas ligados à pré-modernidade; e não é por acaso que a Semana de Arte Moderna aconteceu em São Paulo e teve como seus principais protagonistas membros da oligarquia cafeeira. Com o Estado Novo, grosso modo, o afã vanguardista de teor europeizante do nosso primeiro modernismo é substituído pela temática da identidade nacional, e Drummond, Villa-Lobos e Portinari, entre outros, estão diretamente ligados a Getúlio. Que Portinari — e apenas ele — tenha sido lançado aos infernos com a ascensão e internacionalização das artes visuais brasileiras a partir da década de 1990 é sintomático, e talvez diga algo do destino atual da música e da poesia no Brasil.
Em todo caso, essas rápidas pinceladas historiográficas servem para contextualizar a demanda de Haroldo de Campos por uma história literária que saiba levar em conta tanto os processos de inclusão como de exclusão da tradição. Em seu O seqüestro do Barroco(1989), Haroldo de Campos denuncia a ausência de Gregório de Matos na abordagem sistêmica de Antonio Candido em Formação da literatura brasileira(1959), que, segundo Campos, “privilegia um certo tipo de história: a evolucionista-linear-integrativa, empenhada em demarcar, de modo encadeado e coerente, o roteiro de ‘encarnação literária do espírito nacional’; um certo tipo de tradição, ou melhor, ‘uma certa continuidade da tradição’, excludente de toda perturbação que não caiba nessa progressão finalista”[2].
Na trilha do barroco, outros seqüestros foram denunciados, sendo o mais importante, e igualmente justificável, o do surrealismo, feito por Sérgio Lima (A aventura surrealista)[3] e corroborado por Cláudio Willer e Floriano Martins, entre outros, especialmente através da revista eletrônica Agulha, editada por este último. Assim sendo, podemos notar, em sintonia com um crítico literário do porte de um Alfredo Bosi, em Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão em história literária, que “os escritos de ficção, objeto por excelência de uma história da literatura, são individuações descontínuas do processo cultural. Enquanto individuações, podem exprimir tanto reflexos (espelhamentos) como variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo”.
Não é tarefa simples identificar as convenções dominantes do nosso tempo, já que as condições históricas do presente são complexas, e talvez sempre turvas aos olhos de seus contemporâneos. Há algum tempo muito tem se discutido sobre a passagem (ou não) da modernidade para um momento pós-moderno, difícil de ser precisamente definido em termos positivos, mas cujas manifestações nos campos do comportamento, da economia, da política e da estética são inegáveis. Seja queiramos identificar o marco histórico do pós-modernismo em maio de 1968, na queda do muro de Berlim ou no atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001; seja queiramos defini-lo em termos políticos (o neoliberalismo, a globalização e a emergência de potências periféricas), econômicos (a passagem de uma economia de produção para uma de serviços, a intensa especulação e fluxo de capitais) ou estéticos (a superação das vanguardas, a promiscuidade entre gêneros e suportes, o uso paródico da tradição); o fato é que, paradoxalmente, no seio do próprio capitalismo reificante já não há uma única cultura dominante, e sim culturas; já não há um único discurso, e sim discursos.
Seja o pós-modernismo nada mais que uma exacerbação dos ditames modernistas ou uma real ruptura desses valores, não importa: os paradoxos que o caracterizam não podem ser ignorados e muito menos unificados em um discurso único que, se procurarmos bem, supostamente encontraríamos sob todas as suas manifestações ou sintomas. Tentar tal discurso único, tal história única, seria sucumbir a uma ultrapassada ilusão modernista. Sabemos, por exemplo, como o feminismo e os estudos de uma escrita feminina, os estudos de gêneros e os estudos pós-coloniais, entre outros, desafiaram e deslocaram a centralidade do cânone literário consagrado pela tradição.
Evidentemente, a crítica literária, nesse momento contínuo de incertezas e deslocamentos, deve, necessariamente, reconhecer-se também em crise, em jogo, questionando seus valores, instrumentos, metodologias e posições. No entanto, as análises atualmente sendo praticadas pela crítica da poesia brasileira contemporânea movem-se muito lentamente nesse sentido, o que cria a falsa impressão de que há uma falta na produção da poesia. No dizer de Claudio Willer, em Poesia brasileira: a boa safra de 2010-2011, artigo publicado na revista E,“nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem-comportados. E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor”.
Ao contrário do ocorrido nas artes visuais (a partir do retorno à pintura da geração 80), no cinema (com a retomada dos anos 1990) e na literatura de ficção (com a temática urbana ganhando ênfase e visibilidade a partir das antologias organizadas por Nelson de Oliveira)— gêneros artísticos cujos exercícios críticos superaram dilemas e contradições fermentadas durante os anos de chumbo da ditadura —, a poesia continua presa em cismas — ou falsos cismas — que a paralisam. É importante ressaltar, no entanto, que essa paralisia é da crítica, e não da produção poética. Incapaz de compreender a poesia contemporânea, a crítica à qual Willer se refere, encastelada em sua maioria nas universidades e no sudeste do país, ignora grande parte da atual produção da poesia brasileira; talvez — o que é grave, pois isso inverteria a relação secular entre crítica e criação — por não se sentir representada por ela; talvez — o que é lamentável — por preconceito ou incompetência, ao insistir em utilizar um instrumental crítico inadequado para abordar produções pós-modernas, ou por utilizá-lo de forma imprópria.
Dentro do sistema
Evidentemente, é injusto afirmar — ainda que o poeta tenha o direito de reclamar e de sentir alijado —, genericamente, que “nossos críticos continuam preferindo os poetas racionais, precisos, rarefeitos e bem-comportados; e continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor”. Há críticos e críticos e, além do mais, não se trata de criar uma falsa oposição entre poetas e críticos; principalmente quando sabemos — como já notamos — que, como conseqüência de um fenômeno que se acelera desde a década de 1980, grande parte dos críticos atuantes hoje nas universidades do país são também poetas[4].
Apesar das duras (e por vezes pertinentes) críticas que sofreu, Heloísa Buarque de Hollanda, em sua antologia Esses poetas (1998), reconhece que “assistimos ao que poderia ser percebido como um neoconformismo político-literário, uma inédita reverência ao establishment crítico” e esforça-se, ainda que muito timidamente, para incluir poemas que se articulam de algum modo com outros gêneros artísticos e, principalmente, dar voz a poetas provenientes da periferia ou representantes de minorias. Para ela, como assinala na própria antologia, “a causa aparente dessa possível apatia literária poderia ser o ethos de um momento pós-utópico, no qual o poema não parece ter mais nenhum projeto estético ou político que lhe seja exterior”.
O conceito de poema pós-utópico foi formulado por Haroldo de Campos que, renunciando ao “projeto totalizador da vanguarda”, propõe uma poesia de pós-vanguarda “em dialética permanente com a tradição”, em O arco-íris branco. Infelizmente, a renúncia ao projeto totalizador da vanguarda não significou a renúncia ao projeto totalizador do concretismo; e o poema pós-utópico não é o poema pós-moderno, e sim apenas o desdobrar de uma tradição específica (a da paidéia concretista) em manifestações como a poesia digital, a poesia visual e o neobarroco[5]. Tampouco a renúncia ao projeto totalizador da vanguarda significou, para os descendentes do concretismo[6], a renúncia de uma feroz militância pela supremacia de sua visão sobre a poesia[7].
Desta forma, excluídas da linha evolutiva da poesia[8] ficam as linhagens poéticas não sancionadas pelo crivo da paidéia, especialmente aquelas abertas pelas experiências neoconcretas — genuinamente pós-modernas. Por outro lado, também ficam excluídas do corpus da poesia brasileira contemporânea aquelas produções que, de acordo com os críticos filiados às idéias de Antonio Candido, fogem do processo sistêmico de formação de um cânone; e aqui poderíamos incluir, por exemplo, as contribuições de Antônio Risério, Pedro Cesarino e Douglas Diegues com suas traduções de cantos ioruba (Oriki orixá, xamânicos e guaranis, respectivamente). Tampouco vejo interesse na crítica especializada — o que seria legítimo objeto de estudo; se não em seus aspectos estritamente literários, ao menos em seus aspectos culturais — pela profusão de blogs e pequenas editoras, manifestos, saraus e iniciativas como o site As escolhas afectivas e o Corujão da Poesia, que há anos agita toda a semana a madrugada do Rio de Janeiro.
A crítica de poesia no Brasil parece ter escolhido, como objeto privilegiado de estudo, um “núcleo duro” de poetas de altíssimo nível, que se encaixam nos sistemas e esquemas Candido/Campos, mas que não representam a totalidade da produção contemporânea. São os poetas que Willer chamou de “inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem-comportados”. Esse mesmo “núcleo duro” pode ser percebido na abordagem crítica que restringe a produção da poesia brasileira contemporânea a um suposto antagonismo entre concretismo e poesia marginal[9].
É nesse antagonismo que Marcos Siscar, em seu ensaio A cisma da poesia brasileira, publicado em 2005 na revista Sibila, situa a “cisma”, o nó crítico, que seria “o sintoma de um mal-estar teórico que consiste em uma indecisão quanto à natureza e à situação da poesia contemporânea”. Para o poeta e professor da UNICAMP, “essa herança não é senão aquela fundada na cisma da oposição entre a poesia concretista, semiótica, tecnológica, formalista de um modo geral, e a poesia do cotidiano, a poesia que busca inspiração na língua e na cultura popular”, ou, em outras palavras, entre experiência e experimentação.
Ora, a poesia marginal não é páreo para o concretismo nem em termos de rigor teórico, nem historicamente, e, portanto, uma síntese entre eles não pode representar uma superação entre experiência versus experimentação. O contraponto ao concretismo, o lado da “experiência” que se opõe a “experimentação”, foi pautado pelo neoconcretismo; e podemos compreender a ruptura entre concretismo e neoconcretismo como uma dobra entre o modernismo e as práticas pós-modernas[10].
Considerando-se um movimento de vanguarda, o concretismo insere-se numa linhagem modernista, ou seja, purista e progressista. O neoconcretismo, ao contrário, não admitia fronteiras nem taxonomia entre as artes. Poetas interessados em práticas de suportes múltiplos ou de intervenções em espaços sociais — e podemos citar Lygia Pape como exemplo — eram desde logo forçados a buscar exílio exclusivo no campo das artes visuais. O concretismo não foi apenas um projeto poético, mas também um projeto crítico — e, portanto, político — que, emitindo vistos e passaportes, declarava quem era ou não era poeta[11]. Se nas artes visuais o neoconcretismo torna-se vitorioso e alinhado com o contemporâneo, na poesia a vitória — com trocadilho — é do time com menos imaginação.
Entrincheirada na academia paulista, a visão moderno/concretista da poesia reina absoluta. Malgrado a louvável contribuição que faz para a poesia, a crítica e a tradução no Brasil, o projeto concretista peca por — assim como o capitalismo e o estado autoritário que ele não soube combater — estar cego para qualquer alteridade, combativamente impermeável àqueles não eleitos à sua paidéia.
O real problema
Em Condenados à tradição — o que fizeram com a poesia brasileira, ensaio publicado em 2011 na revista piauí, a crítica Iumna Maria Simon escolheu dois poetas do “núcleo duro” — Eucanaã Ferraz e Carlito Azevedo — para combater o que chama de “permanência da retradicionalização frívola” na poesia brasileira contemporânea, denunciando a prática de uma “noção conciliatória de tradição que, em lugar da invenção de formas e das intervenções radicais, valoriza a convencionalização”. Valendo-se de declarações dos dois poetas citados, Iumna nota “as implicações estéticas dessa maneira de compreender as formas de apropriação literária e de inscrição nas linhagens da tradição, nas quais o poema se espelha e tende a se acomodar”, apontando para alguma política por trás desses “usos e abusos”[12]. Como a maioria dos seus pares, a crítica termina seu ensaio lamentando a situação atual da poesia:
Atualmente há sinais de que o complexo cultural do neoliberalismo foi abalado em sua hegemonia, que o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade, embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo, mesmo após uma crise sistêmica de proporções ainda não reveladas de todo, como a que atravessamos desde 2008. Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone.
Não acredito que sejam raras, como afirma Iumna, as reações da poesia brasileira às conjunturas impostas pelo “complexo cultural do neoliberalismo”, ou seja lá o que for que decidamos denominar ou justificar uma suposta falta de potência — estética, política, existencial — na poesia brasileira contemporânea, simplesmente porque não acredito que exista essa falta de potência. Muito pelo contrário: a poesia brasileira poucas vezes produziu tanto e de tão alta qualidade. Seria dispendioso tratar de enumerar aqui a vasta produção poética de diferentes filiações e alta voltagem publicada no Brasil nos últimos cinco anos[13] — produção que ofuscaria a também ótima produção do “núcleo duro”.
Em minha opinião, a eminente crítica paulista acerta o tiro, mas erra o alvo. Se a crítica é incapaz de perceber a potência da poesia brasileira contemporânea; se quase toda essa rica produção está sendo (para usar um termo cunhado pela própria tradição da crítica) seqüestrada; se a crítica de modo geral parece valorizar quase exclusivamente somente aqueles poetas que lidam com a tradição, com o mainstream, então é a crítica que deve ser repensada; é a crítica que deve ser questionada em seus valores, métodos e posicionamentos. Que Carlito e Eucanaã — apenas para prosseguirmos no mesmo exemplo — sejam poetas ligados à tradição e possivelmente identificados com um pensamento neoliberal, não me parece de forma alguma condenável; pelo contrário, apesar de sua relativa facilidade, por que não deveríamos tolerar, em um ambiente plural, poetas de interesse com tais características? Muito mais grave — gravíssimo — é a existência de uma crítica literária em nosso país que parece apenas enxergar esse tipo de produção na poesia brasileira, seja para louvá-la, como faz a maioria, seja para — sentindo em si o próprio mal-estar — execrá-la.
Crítica à altura
Sabe-se que uma das características do pós-modernismo é a diluição das fronteiras entre as artes; fronteiras estas ferozmente guardadas pelo conceito de especificidade de cada gênero artístico. Outra, não menos importante, é a uma nova relação entre arte e poder. Como percebe Teixeira Coelho, agora — para o bem e para o mal — há uma separação entre saber e poder[14]. Ao contrário das vanguardas modernistas, que lutavam umas contras as outras e contra os movimentos culturais e artísticos que as precediam, num constante esforço pela hegemonia cultural e embate entre inovação e tradição, num momento pós-modernista os bens culturais da tradição elevam-se à mesma plataforma do possível ao lado das novas tecnologias e todas (ou quase todas) as escolas artísticas, que se tornam “produtos” disponíveis por seu mero valor de uso, liberadas de sua carga histórica[15]. Isso não resulta, necessariamente, como temem muitos — inclusive a já citada Iumna Maria Simon —, numa frouxa apoteose pluralista, sem rigor ou critérios. Há uma dinâmica e frutífera troca de papéis, mais explicitamente visível nas artes visuais (artistas-curadores, curadores-críticos, críticos-galeristas, galeristas-artistas, etc., etc., etc.), que se tornam, assim, dessacralizados e passíveis de serem objeto, por exemplo, da paródia e da ironia.
É comum concentrarem-se na mesma pessoa várias “funções” do circuito, que se torna, portanto, também aberto. No Brasil, um dos precursores dessa prática foi o crítico Frederico Morais, criador de eventos marcantes na década de 1960[16]. Na trilha aberta pelo neoconcretismo, artistas passaram a pensar e produzir exposições, assumir o papel de curadores, escrever textos críticos e lidar com as instituições. Também na poesia a multiplicidade de papeis se dá, e se acelera, com dezenas de poetas-críticos, poetas-professores universitários, poetas-editores, poetas-editores de revistas. Cláudio Daniel, Marcos Siscar, Alberto Pucheu, Sergio Cohn e Carlito Azevedo, entre muitos outros, encontram-se nessas categorias. A diferença de suas posturas, a eficácia de suas estratégias e o resultado de suas práticas talvez possam ser mais claramente compreendidas se pensarmos nelas sob o viés da dobra entre o modernismo e o pós-modernismo; ou, se quisermos, entre o moderno e o contemporâneo.
Assim Pucheu inicia seu ensaio Pelo colorido, para além do cinzento (quase um manifesto): “Jamais ouvi alguém dizer que sentiu as palavras de um crítico literário brasileiro lhe tocarem a alma, o coração ou os nervos”, reclamando por um pensamento teórico ou crítico brasileiro à altura da poesia, da literatura, ou melhor, por um pensamento poético-crítico-teórico, indiscernível da literatura. Ao invés de, como tende a fazer o poeta-crítico modernista, usar a teoria em suposto distanciamento ou explicitamente como arma para denegrir ou excluir seus oponentes, Pucheu, propondo para a literatura algo que já é corrente nas artes visuais há algum tempo, quer afirmar a crítica como um texto “tão verdejante e áureo, tão colorido, quanto a obra que ele aborda”, em diálogo/embate aberto com a ficção.
Por outro lado, em seu recente livro Linhas imaginárias: poesia, mídia, cinema, o pensador brasileiro Adalberto Müller afirma que “é possível comprovar que a relação da poesia com o livro, e até mesmo com a escrita, é posterior ao seu surgimento. Na origem, a poesia está fundamente associada ao corpo — dança — e à voz — música”. Para Müller, não se trata mais de perguntar o que é a poesia, mas sim onde ela está. Nesse campo ampliado — ou fissura aberta — o poema — como objeto de linguagem, mas não obrigatoriamente linguagem verbal — desloca-se dos seus suportes tradicionais; e requer uma “base epistemológica que possibilite o trânsito seguro de uma área do conhecimento para outra”. Nesse lugar ou lugares fronteiriços ou híbridos (espécie de limbo; invisíveis para a crítica mainstream da poesia brasileira) inserem-se muitos artistas contemporâneos que iniciaram suas carreiras como poetas, em sentido estrito, ou seja, trabalhando a palavra escrita no suporte da página em branco, e continuam produzindo poesia livresca, com fortes elementos multimídia, ou livros de artistas-pesquisadores, obras teórico-crítico-poéticas, instalações e outras produções inclassificáveis.
Legitimamente ocupando um espaço teórico, o crítico, ou o poeta-crítico ligado às tradições modernistas, tende hoje, no entanto, a desempenhar mal o seu lugar, não percebendo as possibilidades abertas por uma prática poética e crítica expandida, e corroborando com as cegueiras, cismas e preconceitos ligados à tradição. Que venha um novo pensamento teórico/crítico, capaz de plenamente resgatar a poesia contemporânea — ou as poesias contemporâneas — de seu seqüestro. Que venha um novo pensamento teórico/crítico, capaz de estar à altura do amplo leque de ações e produções da poesia brasileira contemporânea. Que venha um novo pensamento teórico/crítico, pois a poesia contemporânea brasileira está — desde muito — em renovação. Não podemos permitir reduzir a vasta galáxia da poesia brasileira contemporânea a um pequeno sistema solar, de onde sentimos que não conseguimos sair, mantendo nas trevas poetas de riquezas insondáveis. A crítica da poesia precisa estar à altura de um país que se pretende contemporâneo, plural, inclusivo e democrático.
Notas
[1] Pensemos em Macunaíma, por exemplo, obra que de certa forma inaugura o modernismo literário brasileiro e que não pode ser pensada indissociada dos posicionamentos críticos e teóricos de Mário de Andrade, servindo inclusive como suporte para tais posicionamentos.
[2] Podemos afirmar que Haroldo obteve pleno êxito em sua justa demanda e hoje, além do movimento neobarroco conduzido na poesia por alguns de seus epígonos, encontramos referências ao barroco para pensar manifestações coletivas brasileiras como o carnaval e filiações explícitas na produção artística de artistas visuais como Tunga, Adriana Varejão e Miguel Rio Branco e músicos como Armando Lobo.
[3] Também essa demanda obtém êxito, ao notarmos a franca filiação surrealista de jovens poetas, como Augusto de Guimaraens Cavalcanti e exposições como “Espelho refletido — O surrealismo na arte contemporânea brasileira”, que reúne 57 artistas brasileiros contemporâneos com a curadoria de Marcus Lontra.
[4] O legítimo refúgio social que muitos poetas contemporâneos encontram no exercício da profissão acadêmica não deixa de ser algo a ser estudado com mais profundidade em termos das conseqüências tanto potencializadoras como empobrecedoras do íntimo convívio entre produção e crítica ou, na mesma pessoa, entre o poeta e o teórico. É de se esperar, nesse contexto, um gosto maior por uma idéia de poesia como “aventura intelectual”, e talvez isso ajude a explicar, ao menos em parte, a injustificável exclusão na atual formação processual de um cânone de linhagens poéticas potentes que escapam a esse ponto de vista.
[5] O termo neobarroco foi forjado pelo poeta cubano Severo Sarduy em 1974 e, em grande parte, é o termo que designa pós-modernismo na América hispânica. Segundo Cláudio Daniel, em A escritura como tatuagem, “o neobarroco não é uma vanguarda; não se preocupa em ser novidade. Ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso; dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as. O ponto de contato entre o neobarroco e a vanguarda está na busca de vastos oceanos de linguagem pura, polifonia de vocábulos. No lugar da mímesis aristotetélica, do registro preciso, fotográfico da paisagem exterior, esta é recriada e retalhada como objeto de linguagem, numa reinvenção da natureza mediante o olhar”.
[6] São muitos os descendentes do Concretismo, e a título de ilustrar as típicas batalhas pelo poder poético, tão praticadas por esse assim chamado “último movimento de vanguarda”, citarei dois deles: Cláudio Daniel e Carlito Azevedo. A edição de Figuras metálicas, que reúne a “travessia poética” de Daniel foi, de acordo com a orelha, organizada pelo autor a convite de Haroldo de Campos, e é a ele dedicada. Já Sob a noite física de Carlito traz na orelha o seguinte depoimento de Haroldo: “Mesmo com o termo desgastado, prefiro ser vanguarda do que retaguarda. Tenho consciência da importância que o nosso trabalho teve para a poesia brasileira, e identifico herdeiros, como Carlito Azevedo e Arnaldo Antunes”.
[7] Cláudio Daniel, em seu ensaio Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis, apesar da abertura sugerida pelo título, afirma que “a poesia da Geração 90 tem como marcos fundadores os livros Rarefato (1990) e Nada feito nada (1993), de Frederico Barbosa; Collapsus linguae (1991) e As banhistas (1993), de Carlito Azevedo; Saxífraga (1993), de Claudia Roquette-Pinto; Ar (1991) e Corpografia (1992), de Josely Vianna Baptista”, todos, segundo ele, representantes da poesia neobarroca. Vale lembrar que o próprio Cláudio Daniel — neobarroco — estréia nessa época, junto a dezenas de outros poetas de diferentes filiações. Igualmente excludente, em sua resenha para o livro Elefante, de Francisco Alvim, publicada no JB em 2000, Carlito Azevedo se posiciona e divide os poetas entre “novos” e “anacrônicos”: “[Elefante] parece estar se transformando num divisor de águas na poesia brasileira. Melhor assim. Sabemos que um livro é vivo não só pelo entusiasmo que causa entre seus admiradores — e diga-se de passagem que Chico Alvim parece ser o autor que os poetas novos do Brasil elegeram como preferência e referência explícita — mas também pela intolerância (por vezes travestida de desdém irônico) que passa a despertar entre os que lhe fazem oposição. O livro de Alvim vem sendo lido como uma questão política: ‘você é contra ou a favor do Elefante?’. A resposta errada pode custar amizades. Enquanto alguns comemoram, certa ala conservadora, que vê no humor e na capacidade de Chico de extrair sua poesia do mais comum algo assim como um tomate lançado sobre o projeto anacrônico de ‘exaltar os estados de alma de um indivíduo fora do comum’, parece irritada”. Já não mais um neobarroco, Carlito agora é alvo de Daniel, em artigo publicado na revista mallamargen.: “O “artesanato furioso” (Marino) de nossa poesia mais recente tem revelado uma força semântica e imaginativa que contrasta com a lírica morna e insossa da linha coloquial-cotidiana, hegemônica nos cadernos culturais, que tem como ícone o livro Elefante, de Francisco Alvim, que recicla o poema-piada e o poema-crônica-de-jornal já exauridos em nosso Modernismo, quase um século atrás”. Essas histéricas e hilárias táticas de guerrilhas entre poetas (e Carlito e Daniel não foram os únicos a cometê-las), típicas das pelejas modernistas, parecem ser desdenhadas e ignoradas pelas novas gerações de poetas, que, sem que isso necessariamente signifique uma perda de critério e de rigor, demonstram conviver de forma mais harmônica com as diferenças.
[8] Em 1955, Augusto de Campos publicou os artigos Poesia, estrutura e Poema, ideograma no Diário de São Paulo, onde, nas palavras de Paulo Franchetti, “afirma a existência de uma linha mestra evolutiva da poesia moderna à qual responde e se filia a Poesia Concreta”. Também a música popular brasileira possui uma linha mestra evolutiva, que culmina com o Tropicalismo — um movimento parelho ao Concretismo em inúmeros momentos e aspectos, inclusive em seus mecanismos totalizantes, que pretende carregar em si a chave de leitura para tudo que virá depois.
[9] Em What’s Neo in the Neo-Avant-Garde?, Hal Foster compara as vanguardas históricas do início do século 20 com as novas vanguardas dos anos 1950 e 60, e procura elementos para diferenciar o retorno a uma forma antiga que promove tendências conservadoras no presente de um retorno que desafia e revisa formas estabelecidas de criação e crítica. Se a questão é válida para o próprio Concretismo, o é com ainda mais rigor para a Poesia Marginal, que busca, quase diretamente, sua fonte no modernismo de Oswald. Em depoimento para Sergio Cohn, Chacal diz: “Foi o Charles que trouxe um livro que seria um grande marco na minha vida, que era o volume do Oswald de Andrade daquela coleção da Agir, ‘Nossos Clássicos’. Era um livro pequeno, com apresentação do Haroldo de Campos, e trazia os manifestos, alguns poemas, além de trechos de Serafim Ponte Grande e do Miramar. Aquele livro me fascinou, eu achei aquele mundo ali maravilhoso, porque ao mesmo tempo em que havia toda uma postura de contestação através dos manifestos, tinha um humor e uma irreverência muito grandes nos poemas e nos textos em prosa. Eu fiquei sorvendo aquele livro durante um bom tempo, lendo e relendo…”.
[10] Denunciando o “objetivismo mecanicista” da poesia concreta, os neoconcretos clamavam pela integração entre arte e vida e pela valorização da dimensão existencial, subjetiva e afetiva da obra de arte. De acordo com Ronaldo Brito, em seu Neoconcretismo – vértice de ruptura do projeto construtivo brasileiro, “a prática da arte concreta, para excluir o idealismo clássico, acabou por se prender aos limites de um certo empirismo. Na recusa da instância do inconsciente, por exemplo, acabou vítima da racionalidade do ego e da crença no sujeito cartesiano”. Por outro lado, “o artista neoconcreto”, continua Brito, “não abordava propriamente o espaço, ele o experimentava. Dispunha-se a vivenciá-lo, atuar contra o relacionamento tradicional entre o sujeito observador e o trabalho. Tinha uma concepção não-instrumental do espaço, desejava imantá-lo, torná-lo campo de projeções e envolvimento num registro quase erótico. O desejo neoconcreto se opunha ao modo de relação vigente com a arte e ao processo de leitura estabelecido: contra a passividade, o convencionalismo, o platonismo da fruição ‘normal’, buscava tencioná-la, explodi-la em seus limites tradicionais”. Ainda que tenha mantido alguma relação com outros gêneros artísticos, especialmente as artes visuais, o concretismo mantinha o controle sobre essas relações, cerceando-as sob seu campo teórico e aproximando-se, na prática, no máximo ao que Antonio Risério chamou de “texto intersemiótico”. Por outro lado, explorando conceitos e experiências como o espaço imantado, o livro-objeto, a linha orgânica, o não-objeto, e a atitude e os corpos do artista e do espectador, o Neoconcretismo constituiu-se em uma das primeiras manifestações pós-modernas, abrindo um enorme leque de possibilidades para o poema se desvelar no campo ampliado da performance, da vídeo-arte, dos objetos e das intervenções sociais.
[11] Enquanto resgatava alguns interessantes poetas que poderiam enriquecer sua tradição, como Souzândrade e Qorpo Santo, os concretistas barravam outras linhagens poéticas. Esse foi o caso, por exemplo, do próprio Surrealismo, já citado, e que existiu entre nós em poetas como Murilo Mendes, Jorge de Lima e Adalgisa Nery. A linha mestra do Surrealismo poderia oferecer instrumental crítico, não para rotular e reduzir, mas para compreender e afirmar a singularidade de poetas contemporâneos como Roberto Piva, Cláudio Willer, Manoel de Barros, Floriano Martins e, entre os mais jovens, Rodrigo Petrônio e Augusto de Guimaraens Cavalcanti.
[12] Tomando os mesmos poetas eleitos por Iumna em sua análise, poderíamos dizer — sem que isso de forma alguma venha em detrimento de suas conquistas formais — que as poéticas de Eucanaã Ferraz e Carlito Azevedo, com sua luminosidade e reverência à tradição (o uso e a citação da tradição em ambos os poetas não carrega a carga de ironia e paródia que caracteriza muito da produção pós-moderna), representam as aspirações da pequena burguesia subserviente e levemente burocrata que finalmente conquistou seu lugar ao sol no apogeu do neoliberalismo.
[13] Além dos poetas da “safra 2010-2011” citados por Willer, só para não deixar o leitor no vácuo, sem nenhuma pretensão de ser exaustivo, e me restringindo apenas à poesia livresca, cito as publicações: em 2008, de Como se caísse devagar(Annita Costa Malufe) e A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora (Gregório Duvivier); em 2009, Transpaixão (Waldo Motta); em 2010, Depois do vértice da noite(Gabriela Marcondes), Dezembro (estréia de Ana Tereza Salek), Saber o sol do esquecimento (Case Lontra Marques) e A Morte de Tony Bennett(Leonardo Gandolfi); em 2011, Pulsatilla(Luis Maffei), Ciclópico olho (Horácio Costa) e os dois volumes de Clínicas de artista (Roberto Corrêa dos Santos); em 2012 houve a coletânea de Sergio Cohn (O sonhador insone)…
[14] “A tendência é a busca da separação entre saber e poder: o saber não deriva do poder, o saber está à deriva em relação ao poder. O poder não é a meta, o que se busca é a autonomia. Não há heróis e vanguardas na autonomia; uns e outros prevêem o fenômeno da filiação, da subordinação, enquanto na autonomia o que há é um suceder simples de movimentos que se ligam por coordenação. Na autonomia existem apenas os co-manianos, como na utopia de Fourier: todos coexistem, assumidas como tais, fugindo da monomania neurótica, terrorista. A vanguarda e o herói, assim como o poder, são desnecessários”. COELHO, Teixeira “Pós-modernidade: ‘paradigma de todas as submissões’?”. In: Moderno pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 2005.
[15] Para o filósofo americano Arthur C. Danto, em After the end of art — contemporary art and the pale of history, já não há mais um critério possível que determine o que é e o que não é arte: todas as formas de mediums e estilos são legítimas. Isso significa que o artista contemporâneo, ao construir sua poética, tem à sua disposição não apenas as novas tecnologias, mas toda a arte do passado — tenha sido ela reconhecida ou não — e seus meios e estilos (com exceção do espírito em que esta arte foi realizada): “O pluralismo do mundo da arte atual define o artista ideal como um pluralista”.
[16] Em entrevista publicada no portal Cronópios, em 2008, Frederico de Morais afirma, por exemplo, que “a curadoria (termo que nessa época não se usava) deve ser para mim uma extensão da tarefa crítica-criativa, deve ter características semelhantes a uma obra de arte com uma leitura visual que deve ser tão sedutora como a mesma obra de arte”.