Poesia magmática

"A voz que vem dos poros", antologia poética de Salgado Maranhão, inventa uma gramaticalidade ritual do ser e mítica da terra
Salgado Maranhão, autor de “A voz que vem dos poros”
01/08/2024

A voz que vem dos poros, antologia poética composta de 113 poemas, percorre a trajetória de mais de 40 anos da carreira literária de Salgado Maranhão. A coletânea não segue a ordem linear e cronológica dos livros do poeta maranhense, mas uma ordem outra, propensa aos ditames da leitura em seu prazer estético e diversificado, revelando a multiplicidade de sua escrita madura como a casca das coisas, assim como uma maior liberdade na sequência. O título da obra é homônimo ao último poema (inédito). A orelha é de Vagner Amaro, que ressalta a voz “ancestral” e “afrodiaspórica” em Salgado Maranhão. O prefácio, de Rafael Campos Quevedo, nos mostra que o título e o poema nos dão a “dimensão de corporeidade que assume a voz poética em toda sua obra”.

A voz que vem dos poros tem poemas dedicados a Moacyr Costa, Domingos Fernandes, Olga Savary, Nauro Machado, Alejandra Pizarnik, Elza Dimuro, Torquato Neto, Arthur Bispo do Rosário, Sapain e Américo Peret, assim como seus familiares, como sua mãe, com uma epígrafe no poema Mater, de Raimunda Salgado: “Fico aqui debaixo destas palmeiras, assuntando o tempo, recebendo a mensalidade das plantas”, seu filho Tiago, sua avó. E uma epígrafe de Gonçalves Dias no poema Terra minha: “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá”. Todos são referências para seu labor poético, demonstrando a teia mítica que o enreda num tecido cuja malha fia o interior de um rito que vem dos poros de dentro, de suas memórias e debulhamentos do pensar, do existir e sentir.

A sua poesia magmática, como as lavas de um vulcão, se torna lavra, de uma colheita que, no seu âmago, é um desenho mimético do ser e do mundo. O seu sumo, o eu-lírico, retira essa casca mítica para de seus poros fazer latejar o silêncio e a espera da germinação. No poema de abertura, A sagração dos lobos I, percebemos algo constante em seus textos poéticos: versos curtos, incisivos, duros, cortantes como uma adaga afiada:

Por hoje, aguardo
essa fatia de amanhãs
sob o peso
                dos calcanhares.
as ruas turvas
das estações
e seus ossos floridos.

Salgado Maranhão vai até a etimologia mítica e ritualística da palavra em sua tecelagem, na origem do texto como tecido, que se mescla, de forma simbiótica à natureza, à terra, com sua flora e fauna características. Vale-se de neologismos, utilizando a invenção como em “canterrático” e usa o grafismo e o desenho da página em branco como o poema acima, em “dos calcanhares” (que está avançado para adiante no verso em comparação ao anterior), movimentando as palavras em sua rotação contínua de forma a nos levar a um jogo textual, em que natureza/verbo, telúrico/cósmico, ritual/mítico, selvagem/artifício lingual, primevo/contemporâneo se perfazem em moto-contínuo. O verbo se sobrepõe às coisas. E essas se interpõem no sujeito, fazendo-o entrever outros códices, secretos e revelados, numa dinâmica de chiaroscuro.

Metalinguagem
Além dos mitos, ritos poéticos e a ancestralidade, a metalinguagem também se faz presente com uma sonoridade que se expande para todas as palavras entre si nos seus versos e não apenas nas rimas fortes que nos absorvem em sua encantaria de arremedos. Como no poema Pré-logos:

De algum rugir indomável
(submerso como o pulsar/das pedras) sinto 

o vórtice
do seu brilho
na jugular.

O som sibilante do “s”, assim como outras sonoridades marcantes nesses versos, produz as três sensações em gradações decrescentes e crescentes, dependendo do ponto de vista, do mais duro, o rugir, passando pelo pulsar das pedras até o vórtice do seu brilho, que é a luz mais delicada de Eros a desferir seu golpe na jugular. O erotismo aqui tem sua força inventiva e o vórtice pode ser a culminância mais alta também no trato amoroso. Outro elemento é a utilização de parênteses, outra característica marcante na poesia de Salgado Maranhão, no sentido de imersão na linguagem interior, em seu intimismo meteórico que incendeia como magma. Há um casamento entre o céu e o inferno, como no eixo de William Blake, em que percebemos toda ambiguidade do poeta brasileiro.

No poema Trans, Salgado Maranhão transforma uma palavra substantiva em verbo, criando um neologismo de classe gramatical, quando escreve no seguinte verso: “Por eles me relâmpago…”. Dessa forma, o poeta trabalha com o jogo interno das palavras e seus ritmos variados como os abalos sísmicos que ele mesmo perscruta. Ele também tece poemas de cunho social em que se vê a enfermidade de nossa sociedade com seus tiranos e assassinos e olhando de forma solidária para os renegados, os desvalidos e os mortos, esses últimos vistos como uma “relíquia”. No soneto como O sol de Sócrates, em que o passado dialoga com o presente: “Tu não lutaste contra humanos ou/ contra Delfos. Mas contra a sombra inculta/ que ainda agora inunda o teu clamor;” ou ainda no poema Yanomami, que, com suas metáforas belas e duras, cita o massacre de povos originários: “Quando vier a luz sangrenta/ quando vierem os deuses homicidas/ com sua sede de pedras// chama Tupã/ chama Xamã”. Nesse poema, temos uma ambiguidade original e impactante, quando ele escreve: “Pois estarei me pondo/ fraco;/ a noite virá como o vento/ pois estarei morrendo: …” Aqui, o eu (indivíduo/voz do povo) e o sol se dinamizam numa mesma imagem, ao morrerem, como o poente. O despotismo é duramente criticado por Salgado Maranhão em todas as suas facetas. E a potência lingual da poesia pode desmascarar a face oculta do medo.

No poema Aboio, vemos toda sua ancestralidade, com um rito íntimo como numa iniciação que vai do conhecimento das entranhas internas ao mito externo em sua pele/labor. Uma aprendizagem do chão duro e mítico da terra: “Quem olha na minha cara/ já sabe de onde eu vim/ pela moldura do rosto/ e a pele de amendoim// eu aprendi matemática/ descaroçando algodão// Carcarás, aboios, lendas/ são minha história e destino…” A memória caminha lado a lado com esse tempo dos mitos da terra, que estão na sua existência imemorial, que ele carrega desde pequeno: “na quebrada do tambor/ eu sou velho e sou menino”.

Salgado Maranhão, também, com toda sua versatilidade produz poemas em prosa, como Flash, construído com um único parágrafo. Com períodos longos, começando com letra minúscula, colocando um ponto final entre as frases e começando logo a seguir com letra minúscula e usando de pouca pontuação, em que a dureza e a docilidade se misturam, dialoga nesse poema com Amar: verbo intransitivo, de Mário de Andrade, quando escreve: “bombear o coração de fôlegos transitivos”. Com seu experimentalismo e não seguindo a norma padrão, o poeta aqui mostra como seu estilo é plural, indo do padrão, como o soneto, até o haicai, do poema em prosa aos poemas mais curtos e longos. Em O poeta e as coisas, a metalinguagem se faz presente a partir do lúdico, em que a arte é um trabalho de artesania verbal, que mostra a dificuldade em domar essa tessitura: “e poema rasga/ a arquitetura/ do poeta”. Já em Haikai II, o tom de comicidade joga com as palavras, em que o tradicional e já conhecido “nada” do dizer já habitual, transforma-se em nado, ou seja, o adensar-se, o mergulhar no texto e, na própria existência, em seu sentido ontológico: “Depois que se chega ao tudo/ é preciso voltar/ a nado”.

Portanto, a poesia de Salgado Maranhão nos revela o ser e o indivíduo em sua potência de rito e da raça mítica como os povos, sejam eles afros, indígenas etc. O poema A voz que vem dos poros nos apresenta o carnal e o íntimo, a voz que vem de dentro, que conclama os ritos secretos e os poros da pele exterior do mundo, o real e o além do real, a realidade mais crua e o espaço do sonho e do onírico, como nesses versos para finalizar esta resenha:

O tempo voraz ensinou-me
a escrever contra o vento: a tecer
malharias sobre o pó.

A voz que vem dos poros
Salgado Maranhão
Malê
252 págs.
Salgado Maranhão
Nasceu em Caxias (MA), em 1953. Estudou Comunicação Social na PUC-Rio e Letras na Santa Úrsula. É poeta, jornalista, compositor, letrista e consultor cultural. Seus primeiros poemas foram editados na antologia Ebulição da escrivatura (1978). Venceu vários prêmios, entre os quais, o Jabuti em 1999, com Mural de ventos, e em 2016, com Ópera de nãos; o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, em 2011, com A cor da palavra. Seus poemas estão traduzidos para o inglês, o italiano, o francês, o alemão, o sueco, o hebraico, o japonês e o esperanto.
Alexandra Vieira de Almeida

É professora da rede estadual do Rio de Janeiro. Foi tutora a distância durante oito anos da faculdade de Letras do Consórcio Cederj – UFF. É doutora em Literatura Comparada pela UERJ e atualmente está fazendo dois pós-docs. Tem oito livros de poemas publicados, sendo o mais recente, A mecânica da palavra, 2022 (Penalux).

 

 

Rascunho