Poesia e transfiguração

Jorge de Lima instaura uma poesia de base mítica, épica e transcendental
Jorge de Lima: inspiração cristã não se dissocia de certa abordagem da natureza decaída do homem
01/05/2004

Multiplicidade de vozes dramáticas, amplitude de visão e enquadramento, apelo sacramental que beira o mítico, diversidade vertiginosa de motivos e formas, mergulho na paisagem ancestral da memória, história da literatura plasmada pela consciência poética, biografia total e cósmica, reminiscências da Queda e procissão de mártires sobre a terra, sagração da vida comum e divinização da arte, itinerário imaginado e factual de viagens e descobertas, murmúrios de personagens célebres e resíduos de antepassados, gnose de demiurgo em delírio, febre, sonho, alucinação a serviço da maquinaria de um engenheiro noturno, amor, morte e transfiguração: esses são alguns dos epítetos e subtítulos que poderíamos apor à poesia de Jorge de Lima, doravante referidos à sua obra maior e mais conhecida, Invenção de Orfeu, de 1952.

Como bem notou Murilo Mendes, em artigo publicado em três partes durante o mês de junho do mesmo ano, no suplemento Letras e Artes do jornal carioca A Manhã, essa fertilidade formal e metafísica da odisséia teológica de Jorge de Lima é conseqüência da grande permeabilidade de sua voz poética a outras vozes. Isso, antes de se configurar como uma crítica, é sim um elogio e uma virtude, pois demonstra a elasticidade de sua criação, capaz de dialogar com outros poetas, tradições e obras criadas, incorporando-os a seu repertório imaginário. Essa característica, atípica no panorama da poesia brasileira, será a base para a confecção deste gigantesco afresco poético da história, de traço oblíquo e enviesado, de volumosos jogos de luzes e sombras narrando a origem do mundo e do homem.

Penso aqui nas obras magníficas da escola de Siena do século 15, em um Simone Martini, por exemplo, ou na sobreposição de planos de um Piranesi, misto de poeta-arquiteto e artesão dos meandros do imaginário.

O mesmo Murilo Mendes chegou a definir a Invenção de Orfeu, com graça e leveza, como uma obra escrita pelo menino Lautréamont depois de ter sido amamentado nos fartos seios da musa de Camões, Góngora, Tasso e Marino. Isso quer dizer que sua inspiração fortemente cristã não se dissocia nunca de certa abordagem da natureza decaída do homem, que é mostrado, em sua essência, como um ser irreconciliável com a pureza da origem divina que um dia lhe dimanou o ser, como vaticina Santo Agostinho. Sendo assim, perpassa toda a obra do poeta alagoano um duelo de forças centrífugas e centrípetas, de impulso natural do caos ao cosmos e da matéria amorfa à lapidação das mãos do artífice, que lhe dá forma e lhe insufla vida.

Esse ritual de passagem pode ser visto alegoricamente como a batalha do Anjo contra as forças ínferas, do Herói contra o desconcerto do mundo e, tomado por antonomásia, do próprio Poeta contra a perda e o esvaziamento do espírito humano em um mundo sem Deus, tomando-se aqui ares de uma espécie de autobiografia total, hipótese de leitura que pode ser identificada nos próprios versos da obra. Já em termos poéticos, pode ser visto como a ordenação que a palavra empresta ao mundo, redimindo-o de seu estado de latência e transitoriedade e elevando-o além da frugalidade da experiência onde os sentidos se vêem presos aos dados sensíveis como um pássaro que vivesse preso pelo próprio vôo.

Com isso Jorge de Lima recupera uma vertente artística e filosófica que, feitas algumas exceções, é até hoje muito pouco cultivada entre nós, e praticamente ignorada em terras brasileiras pela nossa herança crítica hegemônica. Ou seja: instaura em língua portuguesa uma poesia de base mítica, épica e transcendental, em certo sentido na contracorrente da linhagem modernista que se tornou hegemônica, ainda que sob o signo de um paulatino declínio, e que culminou nas patotas e cartilhas deprimentes que hoje grassam em meios espiritual e intelectualmente pouco afortunados, para não dizer palustres. Creio que esses dois aspectos centrais de sua obra, a maleabilidade da voz que incorpora outras vozes e a visada transcendental radical, são os principais motivos de uma série de equívocos interpretativos e de más aferições críticas ulteriores. Vejamos alguns pontos dessa trajetória.

É notório o débito altíssimo que a intelectualidade brasileira paga ao positivismo, e já foi mais do que ressaltado os estragos monumentais que esse conjunto de idéias acarretou. Não se trata de fazer terra-arrasada de toda uma tradição do pensamento. Até porque sabemos a importância que o afluxo das idéias positivas teve para a construção da República, para a consecução de um Estado laico e para o fim da escravidão. Mas não deixa de ser intrigante ver um poeta da altitude de Jorge de Lima se manter em um segundo plano, quase que em uma zona de sombras da nossa tradição, sabendo que essa mesma tradição é crivada e referendada por um conjunto de valores críticos que ressaltam a inserção da arte na realidade mais imediata e o diálogo produtivo com as matrizes culturais que, ao que dizem, seriam constitutivas de nosso modo de ser.

Nessa abordagem equivocada, caberia ao autor de Mira-Celi desempenhar o papel de espírito telúrico, religioso e mágico da cultura brasileira, ou seja, alguém que estaria próximo de seus aspectos mais arcaicos, não conseguindo assim inserir decisivamente o Brasil no debate internacional e na descolonização do nosso imaginário, incumbência que recaiu, sobretudo, àquela arte de inspiração construtivista, sintonizada com as vanguardas européias, propusessem essas vanguardas a porcaria que fosse, e isso se deu, malgrado a completa vacuidade estética e ideológica que lhe revestia e reveste como o feno reveste o espantalho.

É desnecessário apontar aqui os traços falaciosos e obtusos desse tipo de raciocínio salvífico e evolucionista, diluído em um maniqueísmo pueril que reparte o mundo entre forças retrógradas e outras, iluministas. Esta cisão, mais do que uma positividade, parece antes caracterizar a própria hipnose utópica e subdesenvolvida que funcionou como uma espécie de pulmão artificial dos países pobres ao longo do século 20. Hoje, para a nossa saúde e felicidade, esses impasses ideológicos e formais estão totalmente esgotados. E os nomes mais sensatos, como Ferreira Gullar, em ritmo de mea culpa, estão repensando, via imprensa, uma série de crenças e atitudes de tempos atrás. É fato que já deveriam tê-lo feito bem há uns 50 anos. É o preço que se paga pelas atitudes entusiásticas: ter que reescrever a história sempre com décadas de atraso.

É inquestionável que, na obra de Jorge de Lima, o lado mais engajado na causa cristã, sobretudo Tempo e Eternidade, sofre dos defeitos que todo o engajamento traz à arte, seja ele político ou religioso. Também não podemos fazer vistas grossas a algo evidente: a pletora de vozes, estilos, motivos, temas e divagações que flagramos em sua obra e que lhe conferem uma feição de excesso é, ao mesmo tempo, sua maior virtude e também a causa de boa parte de seus defeitos. Mas nada disso é capaz de ofuscar o brilho próprio que ela, em seu conjunto, dimana ao leitor.

O grande crítico Alceu Amoroso Lima, em meados da década de 50, em tom de triste prognóstico, disse certa vez que a poesia de Jorge de Lima só seria entendida e devidamente apreciada dentro de 50 anos. Parece que profecia veio se cumprir agora. Assim, à parte tudo isso, a reedição da poesia completa do poeta pela editora Record dispensa intrigas ideológicas, estéticas ou circunstanciais. É algo da ordem dos grandes acontecimentos literários. Seja como forma de manifestação de Deus no mundo ou como morada do ser, na acepção de Heidegger, a poesia nasce do espírito do tempo e a ele retorna transfigurada. Talvez seja essa a sua magia: conseguir brotar daquilo que lhe circunscreve, sendo tanto mais eterna quanto mais temporal. Nesse sentido, a obra de Jorge de Lima, no bojo dos tempos e espaços sobrepostos que mobiliza em si, ironicamente previu e erigiu a sua própria ressurreição.

Poemas
Jorge de Lima
Record
128 págs.
Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho