Quantas versões de uma poeta cabem no espaço de 365 dias? Se na canção de Belchior — “Tenho sangrado demais; tenho chorado pra cachorro; ano passado eu morri” —,o livro de Júlia de Carvalho Hansen percorre memórias de calendário preso ao lado da geladeira. Diversas epígrafes iniciam as páginas da obra: há menção a Bashô, poeta que viveu no século 17, “Nas festas das Estrelas; se não há encontro de corações; resta o êxtase da chuva a cair”. Tem também Adam Zagajewski, poeta contemporâneo polonês, “Temos tão pouca terra; e demasiado fogo”, e Louise Glück, estadunidense, “death cannot harm me; more than you have harmed me”, cerceando, então, possíveis inspirações da autora de Ano passado.
Existem ainda aberturas em página preta e tipografia em cor branca, destacando os capítulos. No primeiro, Que Oyá nos guie; e Ovídio se insinue, misturam-se universos completamente diferentes, já que Oyá ou Iansã é uma orixá de religiões de matriz africana, a senhora dos ventos, das tempestades e dos raios, a comunicação entre os mundos, um pedido de clareza para seguir adiante. Contrapõe-se Ovídio, poeta romano nascido quando Cristo ainda não existia, autor de Metamorfoses e A arte de amar. Assim, pode ser um pedido para o lirismo atravessar o ano de maneira transformadora ou uma ligação entre o sagrado e a estética. Invocações.
Verão
Ano passado inicia em 4 de março com imagem doméstica comum. Uma das características da produção literária de Hansen é também essa, a de colocar palavras a serviço de obviedades para sedimentar significados complexos, ocasionando, contudo, emoções de difícil descrição. No trecho, sentir — seja o cheiro do incenso ou o ruído dos insetos — produz efeitos nítidos. A estação do ano, sob o signo de peixes, distancia coincidências.
Foi ainda durante o verão
que aprendi
existirem incensos
para espantar mosquitos
que uma cabeça explode
como se acendessem
e o próprio espírito
pode fugir de nós
como os mosquitos
escapam da combustão.
De 7 a 18 de março, o primeiro capítulo do livro é conduzido com sensibilidade e desejo de liberdade. As águas de março fecham o verão com promessas, muitas delas de conforto, já que “Ser livre é às vezes estar confortável”, recordações melancólicas em vento quente que parece desistir em voz poética transitante, demonstrando desencaixe, mas com lampejos de esperança, como se algo de bacana pudesse acontecer e, provavelmente, não fosse uma boa ideia para o momento. O lirismo, a poesia, rendidas, reféns do tempo e dos dias feitos de sentimentos colecionáveis em doses nocivas.
Outono
A estação em Ano passado recorre a T. S. Eliot, americano-britânico modernista, para desequilibrar um mundo: “Do I dare; disturb the universe?”. Decisões desfeitas, a voz ganha impulso a partir de 21 de março, poema de movimento: “O medo que a gente sente é delas ou é do medo?”. Dia de escrever. Cotidiano fragmentado, respostas que chegam à noite, aniversários, médicos consultados, memórias familiares que estão no ritmo apressado, do ontem, do passado, rendidos pela urgência. É possível visualizar afirmações, intensidade, insurgências sobre dias difíceis, ou seja, que a vida possa ser revelada no começar, insistir, desistir, resistir. “Tem calma com a velha vida; a que desaba. Há uma semana pela frente; mas ainda não é hoje.” Meio sem clima, seco, difícil o respiro.
Na minha vida
nunca fui compreendida
na minha alegria
nunca lidei bem com os outonos.
O poema 12 de junho, dia dos namorados, “ouvindo Marília Mendonça. Porque preciso aprender a escrever”. Qual música? “E aí vai ser a ela a quem vai enganar; você não vai mudar”. Dia de mostrar para o pai imagens do Google, “javaporcos”, enter! Texto que explode em cores pulsantes.
A mistura de sensações pode ser o ponto alto da literatura de Hansen, exemplificado aqui pela volta de ônibus pela cidade em um dia dos namorados, a música no fone em tristeza, fuga pelas montanhas, o que é muito paulistano, inclusive, ir para o mato, sair da cidade para sempre, o encontro com o espelho, refletindo a personalidade escondida, a verdadeira: “como pode uma cidade; ter os rios podres; passando por dentro de si”. A estação do ano potencializa tudo, trânsito para o frio.
Inverno
Capítulo aberto com menção a Davi Kopenawa, importante líder político yanomami: “Ele havia prevenido: ‘Assim que meu fantasma tiver partido para as costas do céu, vocês não verão mais queixadas na floresta’”, a angústia de um mundo colapsado, muito bem posta com uma frase conhecida por moradores das grandes metrópoles, estações de metrô: “Você chegou ao seu destino”. Afinal, o poema de 16 de junho, quase inverno, aponta para qual designação? Enquanto o mundo explode, queima, arde, somos, mesmo indignados, impotentes de ações. “Se acreditarmos que o pior nos espera; o pior já aconteceu.”
De 21 de junho em diante as estruturas são mais densas, Ano passado é embebido por contradições diárias, a natureza grita por socorro, esta está ocupada por outros assuntos. No entanto, a memória continua presente, mesmo esvaindo-se pouco a pouco.
O meu pai está perdendo a memória.
Justo o meu pai.
Podiam ser os tantos pais dos outros
e muitas vezes são.
É um brilho que insiste em sobreviver à escuridão. Sustentador do corpo, palavra, mesmo quando o frio é intenso, sufocante. Queimadas inquietantes paralisam, contudo, viver é ainda preservar a chama, como postulado no último poema de inverno, 21 de setembro: “raiz da metamorfose; está no descanso”.
Primavera
Caetano Veloso abre a estação do ano: “Já temos um passado, meu amor; a bossa, a fossa, a nossa grande dor”. Estamos em 1º de outubro, “buscando a Terra; pra regressar”. Os sentimentos, antes ásperos, tornam-se esperançosos: “Faz as coisas começarem a brotar”. Entretanto, os dias são um pouco mais brandos, as boas notícias, quando surgem, vêm por coisas simples, dessas que tiram os móveis do lugar para as poeiras das coisas serem expulsas. Até 15 de dezembro, a transição para a primavera tem um certo clima de exaustão, território corpo cansado de colapso, aceitando o que inevitavelmente está perdido.
Verão, verão
“Any day now”, Bob Dylan em dias em que tudo parece ser rápido e devagar ao mesmo tempo. Não à toa, dezembro está por toda parte, pressas e exageros múltiplos do terminar e recomeçar do ano que está prestes a ser passado, o ontem, para o amanhã as promessas de um ano não tão bom assim, possam ser diferentes e parecidas com as do anterior. O verão pulsa em plenitude, fundindo a vida cíclica que insiste em se repetir.
Em paradoxo, estação de euforia, quente, vívida, em igual medida, nostálgica, mergulhada e desmanchada entre a vulnerabilidade da vida humana, frustrações, carne agulhada, as recordações estão em narrativa de dispersão, que avança e recua: “Por vezes não entender nada. E tudo ficar bem. Bonito assim”.