Miguel Sanches Neto produz crítica, ensaio, poesia, crônica, conto e romance, modalidades essenciais da criação literária. Mas o crítico parece incomodar o poeta. Em Pisador de horizontes, ele abre mão de qualquer aparato paratextual, seja prefácio, posfácio, texto de orelha ou recomendações de quarta capa. O poeta insere sua própria poesia como reflexão anticrítica, ocupando os espaços da opinião de pretensos avalistas. Diz ele na primeira orelha: As orelhas desse livro foram cortadas./ Pouco importa o que dizem/ sobre estas páginas/ e menos ainda deve importar/ ao imprevidente leitor/ o que fui ou o que sou”. E reafirma na segunda orelha, no poema A arte de fingir: “Escrever suas orelhas? Prefiro não escrevê-las./ Vamos tirar a sujeira,/ livrá-las da baboseira”. Está claro: num gesto de afirmação, o poeta nega o crítico, numa dialética de reconhecimento transverso. Assim, Sanches Neto impõe, irônica e implacavelmente, uma “saia justa” a sua poesia, deixando-a à própria sorte diante da leitura crítica de terceiros, sem os anteparos da “opinião amiga” dos prefácios e das orelhas. De fato, o poeta não precisa de amparo do discurso alheio. A atitude de Sanches sinaliza, talvez, a denegação do seu próprio discurso crítico em proveito do texto lírico e ficcional que agora representam a voz principal do escritor.
Neste livro, surpreende a aparente simplicidade dos versos que, no entanto, configuram sentidos existenciais e filosóficos profundos. É com essa simplicidade que o “pisador de horizontes”, leia-se, o poeta, desestabiliza o estado natural das coisas com sua presença difusa, quase etérea, de simples “passante”, como consciência em trânsito. Ele devassa e perquire os horizontes da existência, ora a partir de coisas banais, cotidianas, aparentemente insignificantes, ora em curtas “tiradas” filosóficas, em que a matéria lírica engasta-se no pensar.
Em Sanches Neto, há sempre o toque de um pessimismo existencial, mas de expressão delicada, que perpassa os poemas e dá liga à mistura de sensações, elocubrações e constatações do poeta diante das circunstâncias do ato de existir. Em alguns poemas, ressoam as marcas da leitura de Álvaro de Campos, Carlos Drummond de Andrade e T. S. Eliot naquilo que eles têm de mais visceral, ou seja, o sentido agônico da condição moderna. De Campos, lembra a desistência de fazer e/ou ter sentido no mundo; de Drummond, a constatação doída de que, na modernidade, perdeu-se o domínio da vida; de Eliot, a consciência da desolação que preside a existência moderna de permeio com a degradação de valores autênticos. Aliás, é magistral o diálogo com o pessimismo eliotiano, no poema July is the cruellest month, em que se reafirmam a visão desolada do mundo e a condição de decaído que o poeta carrega na modernidade.
Nesse livro há vários poemas curtos. Talvez o poeta quisesse apenas provocar o leitor e abandoná-lo aos seus próprios fantasmas. Mas, em alguns casos, fica a impressão de que renderiam mais se fossem desenvolvidos. Valem pelo exercício de pensamento, em linguagem lírica, pois cada poema é uma espécie de máxima filosófica. O melhor avulta nos poemas mais longos, quando a comunicação se faz plena e o leitor participa do diálogo de forma mais efetiva.
A poesia de Sanches Neto inquieta o leitor com suas sutilezas agudas e formas simples de afirmar coisas abismais. Quando seu discurso se torna mais horizontal, transmudando-se em prosa poética, atinge mais, aprofundando a perquirição das coisas. E há sempre a percepção da morte como força dominante que, mitigando as pulsões governadas por eros, se impõe em cada gesto, antecipando a visão do fatal e extremo ato da vida, que é morrer. Isso se observa em Mínima erótica, e em Testamento de um solitário: Eis o fim/ de tudo// e não tenho/ a quem deixar/ esses restos/ de futuro.
Enfim, as forças que governam essa poesia e dão equilíbrio ao conjunto provêm de doses medidas de um pessimismo difuso que, alimentando-se de uma recorrente angústia existencial, imanta no verbo a ironia visceral de um poeta que “começa a dizer adeus”. Na verdade, esse poeta exorciza sua sensação de existir encalacrado num paradoxo: o de estar imerso na “plenitude” de uma existência irremediavelmente precária e fugaz.