Retratos com erro se divide em três partes, ou três “dobras”. Sendo que a primeira dobra, a número 1, está ausente. O livro já começa na dobra nº 2 e segue até a nº4. Cada dobra contém 22 poemas, somando um total de 66 textos: números dobrados, espelhados como o retrato é um tipo de espelhamento do retratado. A primeira dobra, ausente, será o próprio livro, articulado por sua lombada? (Antigamente, carregavam-se correntinhas no pescoço com um pingente que se abria como um livro: de um lado o retrato do pai, do outro a imagem da mãe.) Ainda: não é todo livro, também, um tipo de dobra espaço-temporal que suspende a contiguidade e permite saltos inesperados entre perto e longe, presente e passado?
Do início ao fim do livro surgem poemas nostálgicos, reflexões autobiográficas do eu lírico, tentativas de entender seu próprio processo de formação e o perigo recorrente — às vezes mesmo procurado — de desaparecer. Cada poema funciona como retrato de um momento específico dessas ambivalências do sujeito. Os primeiros são mesmo com as primeiras páginas de um álbum de fotografia. Eu em formação, minha avó, uma festa de aniversário.
Imediatamente em seguida surge um dos temas principais do livro, a violência, já em seu tratamento muito específico dado pelo livro: elipsada, transformada em fábula, nunca olhada de frente. Como na luta contra a Medusa, o combate é travado com um olhar paralelo, em um tipo de espelho retorcido, em um retrato errado, menos perigoso do que a coisa em si. Em Flores, recortes de jornal com linguagem plenamente identificável pelo leitor são modificados, as descrições mais cruas como “assassinado”, “morto”, “violência”, “crime”, desaparecem: “A arma foi encontrada/ mas o corpo até o momento”. Dada a banalidade da violência (ressaltada no poema pela numeração dos recortes, 11, 17, 22, em cujas lacunas se vê justo a multiplicidade de casos), talvez não falar já diga mais.
A poesia parece oferecer como estratégia de sobrevivência, a mesma estratégia utilizada por Perseu de não olhar diretamente para os telejornais sangrentos, que gritam toda tarde nas televisões entediadas das lanchonetes do país. Em Duas, ele diz “(porque seus olhos não se voltaram para ver/ o esqueleto dos acontecimentos)”. Reconhecer a violência, portanto, mas sem dizer seu nome, transformá-la, ao modo das crianças, em fantasia. Roteiro, já no título, reforça a previsibilidade, a repetição da miséria transformada em crime, transformada em morte. Em alguns momentos saímos do fabular já quase rumo ao Evangelho: o ladrão espancado e assassinado no fim do poema “seguiu a pé sentido Paraíso”. Levanta-te e anda, como diria um mágico de batina e cartola.
(Não ter de olhar a violência nos olhos, se pode ser, como o livro mostra, uma estratégia produtiva, um jeito de honrar com flores os mortos e não a morte, não é também já um privilégio de quem mora onde o sangue não vai escorrendo para cada vez mais perto do vão embaixo da porta?)
Escapismo fabular
A violência não é a única presença tornada fábula. Reis, rainhas, bobos da corte, reis momos, mágicos, aberrações circenses, objetos animados, a Branca de Neve, a Dorothy d’O mágico de Oz, os personagens de Hamlet, em todas essas figuras vão se transformando a miséria, a desigualdade social, o preconceito, a violência bruta e simples produzida no cotidiano. (As dores metafísicas menos, mas também: envelhecer, esquecer, ser abandonado.) Este escapismo fabular tem o mérito de nunca perder de vista completamente o referente, a realidade. O real é seu ponto de partida, como o armário em que entram as crianças de As crônicas de Nárnia, fugindo da Londres bombardeada da Segunda Guerra Mundial. A guerra contra os nazistas se transforma em luta mágica contra uma bruxa má. Nos sentimos mais seguros. Na fantasia, o perigo é colocado a uma distância mais segura, seu assombro recebe o cuidado (não o controle) da razão, como bem explica Motel.
A aura de conforto se marca nos versos às vezes pelo recurso à métrica fixa, sobretudo ao pentassílabo e o heptassílabo. Há espaço para todo mundo, às vezes são só duas ou três palavras no verso. As tônicas variam de posição, menos a última, que dá a segurança buscada: com ela se pode contar. Não chega a ser musical, o efeito fabular vem mais pelas imagens. (Isso como opção, quando insiste na repetição de sons produz efeitos assustadores até, como no belíssimo e triste Coração do Brasil.) O verso medido é uma segurança, um palco onde as criaturas fantásticas entretêm o leitor sobre os horrores do mundo. Essa dobra espaço-temporal, que leva o leitor para um tipo de Europa Medieval ainda encantada, esses “retratos com erro” do aqui e do agora, encontram conforto também no recurso ao amor.
Alguns dos poemas mais bonitos do livro tentam retratar esta bolha fora de tudo, este “junho” que o eu lírico quer tanto que não passe nunca (um junho que não é de 2013), e que é um espaço de segurança, indestrutível por aquela violência exterior. (“Quem disse que a morte existe?”, entre a repetição dos sons, entre o disse e o existe, quase um dito popular tornado feitiço.) O amor é auratizado, é a proximidade experimentada no longe, num jardim suspenso persa. É a vitória sobre o noticiário, o envelhecimento, o tédio que aborrece até os diamantes. A mulher do eu lírico, em A sua esposa, retratada como um tipo de Rapunzel que desta vez não é resgatada, mas resgata, protege e avança maternalmente com seus cabelos em companhia do homem:
Essa mulher de cabelos escuros e tremendos
desde que a vi pela primeira vez nos casamos
e não paramos de avançar contra os cabeleireiros
contra o fogo contra os livros contra as leis que nos casaram.
O que significa cabeleireiro, neste contexto? O mesmo que a bruxa nos contos de fadas. Uma violência exterior modulada, reposicionada em termos de um imaginário fantástico infantil, não encarada diretamente, mas transfigurável, assimilável e, assim, quem sabe, derrotável.