Elizabeth Bishop nasceu em 1911, em Worcester, Massachusetts. Nas palavras de David Orr, sua biografia inclui suficiente tormento para satisfazer São Sebastião. Perdeu o pai aos oito meses, a mãe enlouqueceu quando tinha cinco anos (foi internada em um sanatório e Bishop nunca mais esteve com ela), passou a infância estagiando em casa de familiares, ficou asmática, alérgica e deprimida. A partir da juventude, tornou-se alcoólatra. Assim mesmo, ou por isso, decidiu escrever poesia.
Publicou um livro, bem recebido, aos 35 anos. Em 1951, aos 40, após persistente experiência em infelicidade, tomou um navio cargueiro sem destino definido. Parou no Rio, conheceu Lota de Macedo Soares, também com 40 anos. Apaixonaram-se e Bishop mudou-se para o Brasil, aqui vivendo 15 anos no seu primeiro lar, ao lado da companheira. “Morri e fui para o céu sem merecer”, protestava ela. Em 1967, Bishop não agüentava mais o Brasil, sujeito a turbulências políticas (estava aqui quando Getúlio se suicidou, Juscelino quase foi impedido de tomar posse, Jânio renunciou, Jango governou sob parlamentarismo e presidencialismo, os militares deram um golpe). Chocava-a a desmedida convivência entre pobreza e corrupção. A relação com Lota se esfacelara. Bishop retornou aos Estados Unidos. Lota foi em sua busca e suicidou-se na noite da chegada.
Bishop faleceu inesperadamente em 1979, aos 68 anos, de aneurisma. Deixou publicados poucos menos de cem poemas, que mereceram o Pulitzer, o National Book Award e o Newstadt International Prize. Passou a ser a mais estudada entre os poetas norte-americanos. Seus dois livros — Poesia completa e Prosa completa — ocupam alguns centímetros, enquanto a bibliografia sobre eles toma prateleiras.
Bishop celebrizou-se pelo grau de exigência a que submetia sua criação, revendo e alterando um poema, às vezes durante anos, até sentir-se encorajada a liberá-lo para publicação.
Por exemplo, o poema Santarém foi iniciado após sua viagem à Amazônia em 1960. Começava com os versos: “Claro que posso estar lembrando de tudo errado/ Após dois anos”. Como só foi terminado em 1978, depois de incansáveis modificações, os versos iniciais mudaram para: “Claro que posso estar lembrando de tudo errado/ Após, após — quantos anos mesmo?”.
Imagine a perplexidade que causou o lançamento este ano do livro atribuído a Bishop, com organização de Alice Quinn, intitulado Edgar Allan Poe & a vitrola automática — poemas não coligidos, esboços e fragmentos.
Helen Vendler, afamada bishopóloga, não se conformou com a divulgação de versos imaturos ou decididamente malsucedidos da poeta, como, por exemplo, aqueles que lamentam a morte de seu tucano Tio Sam, por uma interpretação errônea que ela dera às instruções do aplicador de inseticida:
Sammy, meu querido tucano… Eu matei você! Não tive intenção
claro; chorei, chorei
Foi minha culpa
Sammy, querido Tio Sam
Vendler analisa impiedosamente algumas das tentativas de Bishop em que o ritmo é canhestro, as rimas pobres e as palavras são tapa-buracos. Para ela, é inaceitável a exposição de uma autora que se manteve sempre tão cuidadosa em relação ao que levar para o leitor. Por isso, sustenta que o título do livro não se deveria referir a poemas não coligidos, mas a “poemas repudiados”. O próprio poema que dá título ao livro foi riscado de alto a baixo pela poeta, em clara demonstração de recusa. Coerentemente, Vendler recomenda aos que se sentirem curiosos sobre Bishop que leiam os poemas que integram sua Obra completa, e não esses “irmãos mutilados e aleijados”.
A esses vitupérios e cutucões de Vendler, a organizadora Alice Quinn, que é a editora de poesia de The New Yorker, opõe o argumento de que também foram aparentemente desprezados por Bishop poemas de ótima qualidade, “terrific”. E também que o conjunto dos manuscritos descortina o percurso inventivo de Bishop, com todas as correções, eliminações, inserções e apostos da própria autora em busca da melhor solução.
Vários críticos se aliaram à posição de Alice Quinn e do editor Robert Giroux, que a encorajou a vasculhar os 3.500 documentos de Bishop guardados na biblioteca de Vassar. Realmente, já imaginou se Lavínia tivesse jogado fora a papelada da irmã Emily Dickinson, que em vida publicara apenas meia dúzia de poemas, sob pseudônimo?
Será ético trazer à luz peças que a autora não julgou prontas para publicação, mas que trazem revelações sobre sua identidade pessoal? É o caso de Matinas e elegia, tentativa desesperada para exprimir sua dor pela morte da amada Lota:
Nenhum café pode acordar você nenhum café pode acordar você nenhum café
Nenhuma revolução pode captar sua atenção
Você está chateada com todos nós. É verdade, somos uns chatos.
E interminavelmente:
No coffee can wake you no coffee can wake you no coffee
can wake you
No coffee
Alice Quinn transcreveu para uma língua inglesa legível rascunhos, fragmentos e rabiscos variados. Acrescentou 116 páginas de notas, onde recorreu a biografias publicadas, cartas e anotações em diários, para procurar situar o momento durante o qual o poema foi escrito e apontar as modificações que ocorreram à poeta. Seu objetivo foi o de aproximar o leitor do processo criativo da poeta. Se Bishop não tivesse morrido inesperadamente, talvez ela mesma tivesse feito a triagem que está sendo cobrada de Quinn. Jogaria fora o poema de Tio Sam e manteria apenas os “terrific”.
Por outro lado, se Bishop tivesse dado cabo dos poemas repudiados que foram escritos no Brasil, deixaríamos de nos surpreender com “poemas políticos”, como Suicídio de um ditador moderado e Brasil, 1959. Em diversas ocasiões Bishop se pronunciou contra o recurso a causas sociais como tema apropriado da poesia. Contudo, o último poema que deu por terminado, em 1979, foi A cadela cor-de-rosa, em que denuncia a operação mata-mendigos do governo Lacerda.
Suicídio de um ditador moderado começa delineando a expectativa do impacto da notícia da morte de Vargas e termina causticamente, dizendo que o dia amanheceu claro e bonito, as atividades na praia começaram às sete horas, e “às oito dois garotos soltavam pipas”.
Em 1959, Bishop escreveu a sua tia Grace mencionando que Cacareco havia sido o mais votado para vereador nas eleições de São Paulo. O povo preferiu votar em um rinoceronte, e não nos políticos. Em Brasil, 1959, Bishop enumera mazelas do cotidiano das cidades brasileiras: as longas filas que aguardam os ônibus, em cuja traseira está escrito “lave-me”, do que a chuva se incumbe; as enchentes; as migrações de nordestinos famélicos. A inflação dispara, o feijão preto sobe 500% em um ano, enquanto se ergue Brasília, “uma quinquilharia encantadora, cara como uma jóia, num árido campo de lama”. Na política, “escroques escroques estúpidos estúpidos escroques”. “Devemos trocar de políticos?”
Uma surpresa final nesses repudiados é um poema sobre o fim do mundo, que Bishop imagina muito diferente do Armagedon. Todos teriam paz e fariam a coisa que Bishop sempre mais apreciou na vida: ficar à-toa.
Poema inédito de Elizabeth Bishop, traduzido por Carmen L. Oliveira
A lua arrombou a casa
O fim do mundo
acabou não sendo nada drástico
quando tudo era feito de plástico
dormimos mais e mais, mesmo depois
que todas as pílulas foram consumidas
e vastas gotas dos rios correram
para os ressequidos cânions do mar
o sol ficou pálido como a lua e a seguir
mais pálido que ela
embora ainda pudéssemos enxergar
Era agradável; era adorável e lânguido
ninguém sentia vontade de fazer nada.
mesmo as crianças —
sonhávamos e sonhávamos todos os carros
permaneciam estacionados, ninguém ia a lugar algum
simplesmente ficavam em casa de mãos dadas,
primeiro, depois soltavam as mãos —
paz paz exatamente o que tínhamos querido
o tempo todo —
o mundo inteiro dobrou-se como uma
violeta emurchecida, virou-se gentilmente
para morrer, enroscou-se não fedeu
de jeito nenhum mas soltou um longo suspiro — doce suspiro